Os incidentes com obras de arte em museus não são raros. Em novembro de 2017, um visitante com uma mochila às costas derrubou inadvertidamente uma escultura do século XVIII no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. A peça de madeira, uma representação de S. Miguel Arcanjo, ficou seriamente danificada e teve de ser sujeita a restauro.
Esta segunda-feira, em Serralves, na cidade do Porto, o descuido de um turista italiano teve consequências ainda mais graves. Sobretudo para o próprio: o homem, na casa dos 60 anos, aproximou-se demasiado de uma instalação do artista britânico Anish Kapoor e caiu de uma altura de 2,5 metros. Descida ao Limbo encontra-se no interior de uma pequena câmara construída para o efeito e é constituída por um círculo no chão cuja profundidade é difícil de discernir à vista desarmada, parecendo não ter limites. Segundo uma nota do museu, caracteriza-se «pelo jogo formal e metafórico entre luz e escuridão, interior e exterior, o contido e o infinito».
Uma obra ‘assustadora’
Terá sido precisamente para conferir os limites desse vazio que o turista se acercou, acabando por perder o equilíbrio. Na sequência da queda teve de ser transportado para o Hospital de Santo António, onde ficou internado. Fonte da Fundação de Serralves disse esta sexta-feira ao SOL que o italiano está a «recuperar francamente» e deverá ter alta muito em breve. A instituição descarta responsabilidades no incidente, esclarecendo que «foram cumpridas todas as medidas de segurança protocoladas». Todos os visitantes assinam um termo de responsabilidade em que se comprometem a não tocar nas obras e a cumprir as instruções dadas pelos funcionários – as visitas são sempre acompanhadas por um assistente de sala.
Inspirada numa pintura homónima de 1492 de Andrea Mantegna, que representa Cristo a entrar para um enigmático buraco na sua descida para o Hades, Descida ao Limbo foi criada para a bienal Documenta, de Kassel, de 1992. O artista descreveu-a como «um edifício cúbico com um buraco escuro no pavimento». «Quando se entrava, havia um buraco no chão, um vazio – um buraco bem grande e bastante assustador – que parecia estar cheio de escuridão. Como um tapete preto, não se tinha a certeza se era ou não um buraco».
Tal como nessa primeira aparição na Alemanha, em Serralves a obra também se encontra no interior de uma câmara. Lá dentro, o buraco é revestido por um pigmento que suscita dúvidas se é azul muito escuro ou preto, o que intensifica a aura de mistério.
«Uma parte muito importante do sublime, para mim, é o medo», disse Kapoor numa entrevista ao Guardian em 1998. «Sempre quis fazer uma obra que fosse assustadora, da forma que a arte tibetana o é. E, para mim, tem sempre que ver com a vertigem, com a queda».
Na mesma ocasião, o artista referia um episódio a que assistiu em Kassel e que o deixou encantado. «Quando se faz um edifício com uma porta e se fecha a porta, forma-se uma fila. E houve este homem que esteve na fila durante 45 minutos. Quando entrou na sala ficou absolutamente furioso por ter estado 45 minutos à espera numa fila para ver… um tapete».
A vagina vandalizada
Nascido em Bombaim em 1945, Anish Kapoor não faz esculturas convencionais. As suas instalações evocam frequentemente os conceitos de vazio, de avesso, de orifício e de concavidade, usando por vezes os pigmentos característicos da cultura indiana. Uma das suas obras mais célebres é a Cloud Gate, em Chicago, popularmente conhecida por ‘the bean’ (o feijão) devido à sua forma. Trata-se de um enorme volume espelhado, em cuja zona inferior se encontra aquilo que o artista designa por um ‘umbigo’, uma câmara que distorce os reflexos.
Mais controversa foi Dirty Corner, uma grande estrutura de ferro exposta no jardim de Versalhes em 2015. A imprensa chamou-lhe ‘a vagina da rainha’ MAria Antonieta – Kapoor disse que a conotação sexual era apenas uma das formas de interpretar a obra.
Mostrada num dos locais mais simbólicos de França, Dirty Corner foi vandalizada com mensagens anti-semitas (a mãe de Kapoor era judia). À segunda vez que isso aconteceu, o autor decidoi manter as mensagens ofensivas: «Deixar a cicatriz parece-me a coisa certa a fazer. A obra chama-se Dirty Corner, a peça parece atrair algo sujo, e agora estamos a ver política suja», considerou.
De volta a Serralves, a exposição Anish Kapoor: Obras, Pensamentos, Experiências está patente até 6 de janeiro de 2019. Além de Descida ao Limbo, que se encontra fechada para restauro, há mais três esculturas de grande dimensão no parque, uma no interior do museu e 56 maquetes de projetos realizados ou não.