O assunto divide até os especialistas em Direito. Durante a evacuação de um local, pode um cidadão cuja casa esteja em risco de ser atingida por um incêndio escolher não sair? Um ponto é quase unânime: numa situação de emergência, a atuação das polícias – mandar sair – está legitimada. «Mesmo que um cidadão não queira abandonar o local, as autoridades estão devidamente autorizadas. Pretende-se salvaguardar a vida e a ordem está legitimada quando há perigo concreto que possa lesar o bem jurídico que é a vida», diz o advogado Ricardo Vieira.
Rui Pereira, jurista e antigo ministro da Administração Interna, recorre à Lei de Segurança Interna, que, no artigo 28, inclui na lista de «medidas de polícia» a «evacuação ou abandono temporários de locais ou meios de transporte». Além disso, diz, «o que está em causa numa situação assim não é só a vida de quem escolhe ficar, mas também a vida de outras pessoas». Isto porque, quando um popular decide permanecer em casa, «obriga, mesmo assim, o Estado, através da Proteção Civil e dos bombeiros, a protegê-la», o que pode criar «perigo para os agentes que estão no terreno» e «desviar atenções do teatro de operações». Rui Pereira sublinha, por outro lado, que as forças de segurança são obrigadas a atuar «com adequação e proporcionalidade». Sendo que, no caso de um incêndio, estão a agir «sob grande pressão». «E, na dúvida, optam por proteger a vida». Também o advogado Pedro Proença cita a Lei de Segurança Interna. «Há quem defenda que a GNR pode pressionar, mas não forçar a retirada de pessoas. Em caso de estado de necessidade, sobram poucas dúvidas quanto ao dever que têm de retirar à força», defende.
Só se a ordem das forças de segurança fosse ilegítima é que o cidadão poderia não obedecer, invocando o direito à resistência. Porém, sendolegítima, quem não obedecer pode incorrer num crime de desobediência – punível com uma pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias. Caso a resistência vá mais longe e envolva violência, poderá mesmo estar em causa o crime de resistência e coação sobre funcionário, cuja moldura penal varia entre um ano e cinco anos de cadeia.
Mas este entendimento não é unânime. O advogado Carlos Pinto de Abreu entende que esta é uma situação clássica em que os poderes do Estado colidem com o direito do indivíduo, «mais a mais em propriedade privada que não se confunde com local público». E defende que o cidadão, sendo maior e estando na posse das suas faculdades, deve poder, depois de «devidamente advertido sobre os perigos a que se sujeita», decidir. Caso desobedeça a uma ordem da polícia, poderá escudar-se no «direito a ficar em casa e no facto de isso em nada prejudicar o combate ao incêndio». Além de poder, ainda, invocar que a ordem não era legítima e, por isso, não foi acatada. O especialista em direito criminal ressalva, porém, que, para que isto possa acontecer, é necessário salvaguardar três aspetos: «Devem ter sido devidamente relatados os riscos ao cidadão, deve ficar registado quem saiu de sua casa e as razões invocadas e deve respeitar-se a decisão informda da pessoa».
Questões legais à parte, há ainda os aspetos de Proteção Civil. Domingos Xavier Viegas, que liderou a equipa da Universidade de Coimbra que estudou o comportamento do fogo de Pedrógão Grande, concluiu, no relatório final, que boa parte das vítimas mortais poderia ter sobrevivido se tivesse ficado em casa. «Somos contra as evacuações em massa, a não ser em casos absolutamente excecionais», admite o especialista, acrescentando que «as casas que têm pessoas a defende-las têm maior probabilidade de resistirem». «Deveria ser permitido às pessoas ficar para ajudar os bombeiros», diz Xavier Viegas, reconhecendo que é necessário um «trabalho de preparação prévio e diálogo com as populações» sobre medidas de auto-proteção. «Só nos casos em que as pessoas não tenham meios, recursos ou capacidade para o fazer é que devem ter de abandonar», remata.