São às dezenas as denúncias de fraude no uso dos fundos concedidos pelo Estado e dos donativos solidários dos portugueses às vítimas do trágico incêndio de junho de 2017.
Numa reportagem da TVI exibida ontem, da autoria da jornalista Ana Leal, são revelados vários casos em que os serviços municipais responsáveis pela recolha e elaboração dos processos candidatos aos fundos favorecem claramente casas de segunda ou terceira habitação em detrimento de casas de primeira habitação.
A reportagem dá mesmo exemplos de casas que assumidamente estavam desabitadas ou que já estavam destruídas antes do fogo e que, mesmo assim, tiveram direito a subsídiação, enquanto proprietários de primeiras habitações consumidas pelos fogos continuam desesperadamente à espera de apoio.
As denúncias já vinham de trás: os fundos destinados à reconstrução de casas teriam sido desviados para casas não prioritárias.
Mas Valdemar Alves, o presidente da Câmara de Pedrógão Grande, desmentiu tudo em em julho: "Não temos dúvidas. Há documentação. Cada casa tem o seu processo que foi entregue na CCDR [Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional] e no Revita. Foi apreciado pelas comissões e, portanto, não tenho dúvidas de que foram feitas com toda a honestidade e sem ferir ninguém. Nem os regulamentos foram feridos pela reconstrução destas casas" – declarações agora contrariadas pela nova investigação da TVI.
A TVI consultou Manuela Henriques, que realizou os censos de 2010 em Vila Facaia, zona do concelho de Pedrógão Grande, que dá o exemplo de uma casa em ruínas e desabitada, já em 2010, que pertence ao irmão do presidente da Junta de Freguesia de Vila Facaia, Augusto Neves. Depois dos incêndios, o indivíduo em questão deu a morada da casa como sendo a sua residência permanente.
Na reportagem, é mostrada a verdadeira, e conhecida por todos, habitação de Augusto Neves. Quando confrontado por ser “cúmplice de fraude”, o próprio Augusto Neves reconhece: “No fundo fui”. Augusto garantiu ainda que teve a conivência de Valdemar Alves, acrescentando que se limitou a preencher os formulários conforme o mandaram, insistindo sempre que a casa era de segunda habitação, mas que no formulário o mandaram escrever que era de primeira habitação – facto negado pelo presidente da Câmara.
Outro caso reportado é o de um funcionário da Câmara Municipal de Pedrógão Grande, Bruno Martins, que “teve direito a uma casa completamente nova”. A repórter confronta a mãe do funcionário, esta diz que alguém terá aconselhado a mudar a morada fiscal e acrescentou que não foi o único a fazê-lo, sendo que houve pessoas que “receberam envelopes cheios de dinheiro”. Relativamente à casa nova, que foi recuperada, encontra-se desabitada e, mais uma vez, Manuela Henriques garante que não habitava ninguém naquela casa permanentemente em 2010, quando realizou o censos.
De acordo com as estimativas do canal de televisão, as obras de reabilitação desta casa terão custado 99 mil euros.
Mas estes não foram os únicos casos de familiares e amigos ligados às Juntas de Freguesia e Câmara Municipal de Pedrógão Grande.
É ainda dado o exemplo da sogra do presidente da Junta de Freguesia da Graça, Pedro Silva. Está a ser construída uma casa para a senhora, mesmo vivendo com a filha e o genro há mais de 17 anos. À TVI, a sogra de Pedro Silva garantiu sempre ter lá vivido até ao incêndio, no entanto, os vizinhos desmentem e afirmam que o presidente da Câmara de Pedrógão favoreceu amigos. Valdemar Alves confirma conhecer e ser amigo de Pedro Silva.
O topógrafo da Câmara de Pedrógão, Paulo Pires, afirma que o sogro recebeu indicações para alterar a morada fiscal quando entregou o processo ao gabinete da Câmara.
Os relatos não ficam por aqui. Houve um casal que tinha uma casa de segunda habitação, mas recusaram-se a mudar a morada fiscal para se candidatarem aos fundos e garantem que Valdemar Alves e Bruno Gomes sabiam do que se passava. O casal chegou a queixar-se sobre estes casos fraudulentos a Bruno Gomes, ao que este terá respondido “o dinheiro acabou por ficar cá em Pedrógão e os processos já foram aprovados”.
A vice-presidente da Câmara Municipal de Pedrógão, Margarida Guedes, recebeu várias denúncias destes casos fraudulentos e reencaminhou para o presidente. Confrontada pela TVI, limitou-se a dizer que reencaminhou as queixas para quem de direito e mais não quis acrescentar.
Quando confrontado, o presidente da Cãmara de Pedrógão afirmou que não teve conhecimento dessas denúncias.
Quanto a Bruno Gomes, recusou-se a prestar esclarecimentos à TVI.
A realidade é que há quem ainda esteja a viver em casas alugadas pela Segurança Social, proprietários de primeira habitação que viram as suas casas arder em 2017. É retratado o caso de Adelaide Alves, 68 anos, a quem foi feito um ultimato para sair da casa que lhe foi destinada pela Segurança Social até final de agosto, mas a casa onde morava ainda não está em condições para receber a idosa, como foi mostrado por um dos seus filhos.
Por seu lado, o presidente da Câmara, Valdemar Alves, continua a garantir que todos “os critérios foram respeitados”, mesmo que casas de primeira habitação não estejam concluídas, ao contrário de casas de segunda habitação ou mesmo desabitadas.