Oito anos depois de a troika ter aterrado em Atenas, a Grécia saiu finalmente da alçada financeira do terceiro memorando. Durante anos foi a ‘ovelha negra’ da União Europeia, mas hoje é apresentada pelo Governo de Alexis Tsipras, Eurogrupo e Comissão Europeia como mais um «caso de sucesso» das políticas impostas por Bruxelas.
«Hoje começa uma nova era para o nosso país. É um dia histórico. O memorando de austeridade, recessão e despovoamento social chegou finalmente ao fim. O nosso país conquista novamente o direito a definir o seu futuro como um normal país europeu. Sem compulsões externas, sem quaisquer extorsões, sem novos sacrifícios para o nosso povo», afirmou o primeiro-ministro Tsipras num discurso em Ithaca, Grécia, na segunda-feira. «A partir de hoje, começamos com visão e determinação uma nova era para o nosso país. Com cuidado e responsabilidade para que nunca mais a Grécia volte aos défices e à bancarrota», continuou.
E se um vídeo não bastasse para elencar os sacrifícios do povo grego e a inauguração de uma nova era, o ministro das Finanças português e presidente do Eurogrupo, Mário Centeno, juntou-se a Tsipras com um vídeo próprio. Neste, entre elogios e palavras de esperança, deixou também um aviso: «Os gregos pagaram caro as más políticas do passado e seria um erro voltar atrás».
Mas nem todos partilham nem da esperança nem da versão de a Grécia ser hoje uma história de sucesso das políticas de austeridade.
Uma das vozes que se insurgiu quase de imediato à divulgação do vídeo do presidente do Eurogrupo foi a de Yannis Varoufakis, ex-ministro das Finanças grego que enfrentou o Eurogrupo durante sete meses. «A Comissão Europeia insulta a insuportável miséria da Grécia com um vídeo que tem a estética/imoralidade da máquina de propaganda da Coreia do Norte», escreveu Varoufakis no Twitter.
E uma segunda voz, improvável, juntou-se a Varoufakis para contestar a versão da história de sucesso da Grécia. O antigo ministro das Finanças grego que chamou a troika em 2010, George Papaconstantinou, afirmou, em entrevista ao Observador, que «é ofensivo falar numa ‘história de sucesso’ quando o país perdeu mais de um quarto do seu PIB, o desemprego ainda está à volta de 20%, a pobreza aumentou significativamente, os serviços públicos continuam a sofrer e as nossas instituições continuam a ser tão fracas».
Relembrando que não é a primeira nem a segunda vez que o povo grego ouve tal discurso por quem está no governo, Grigoris Zarotiadis, professor de Economia da Universidade de Salónica, não tem meias palavras quando carateriza o discurso do ‘caso de sucesso’ como «piada política» ao SOL. Recordando que o PIB grego diminuiu 25% durante a vigência dos memorandos de entendimento, Zarotiadis diz que ainda que o desemprego tenha reduzido para os 20,8%, a grande maioria dos novos postos de trabalho «são de part-time e com salários muito reduzidos». Salários de 300, 400 e 500 euros passaram a ser cada vez mais comuns no país, principalmente entre as novas gerações. A precariedade é hoje a regra no país, quando antes tendia a ser a exceção. «Os rendimentos das camadas mais baixas e médias continuam a estar sobrecarregados de impostos», explicou Zarotiadis. «Não apenas nos impostos diretos, mas também com um aumento exponencial nos indirectos», continuou o economista.
‘Fora de qualquer lógica económica ou política’
Se a dívida grega sempre foi um dos temas mais referidos pelas instâncias europeias para legitimar as suas políticas, Zarotiadis refere que a dívida pública sofreu um aumento brutal com os memorandos, estando hoje nos 180% do PIB (345 mil milhões de euros). «Para analisarmos a sustentabilidade da dívida, temos de comparar as taxas de juro com o crescimento da economia, mas na Grécia, ainda que tenhamos conseguido ter taxas de juro mais baixas, não conseguimos ter taxas de crescimento maiores», afirmou o professor. «A questão é: depois da suposta saída do memorando, a Grécia terá de manter excedentes orçamentais nos próximos 40 anos com uma política de austeridade», acrescentou, referindo ser «impossível». Se a Grécia foi o primeiro teste da receita de austeridade de Bruxelas na Europa, agora as instituições europeias estão, explica o economista, a «inovar» ao ser a «primeira vez na História política moderna que uma organização internacional tenta projetar o que acontecerá aos orçamentos do setor público nos próximos 40 anos». «É algo totalmente fora de qualquer lógica económica ou política», afirmou.
O colete de forças da austeridade manter-se-á na Grécia, mas a dívida privada poderá ser uma bomba-relógio, contribuindo para o desacelerar da economia grega. «Uma das reformas estruturais da dívida nos últimos anos foi o forte aumento da dívida privada. Temos um fenómeno a que podemos chamar de ‘privatização da dívida’, com esta a chegar aos 131 mil milhões de euros», explicou. «Este é um problema ainda maior não para a sustentabilidade do Estado, mas para a economia grega, porque o complicado com a dívida privada é que tem de ser paga», continuou, explicando que difere da dívida pública por se o Estado for capaz de cobrir os juros, conseguirá financiamento, ao contrário das empresas que não o conseguem. «Os agregados familiares e empresas que tenham contraído créditos antes da crise vêem-se em dificuldades para respeitar os compromissos», acrescentou.
O discurso de ‘saída limpa’ de Tsipras é influenciado pela proximidade das eleições legislativas de 2019. Admitindo que «o atual governo foi o primeiro a ser bem sucedido a fechar um memorando de entendimento completo sem quaisquer obstáculos políticos», Zarotiadis tem dúvidas de que esse discurso seja positivo para a coligação Syriza-Anel na campanha eleitoral. Por agora, o economista prevê que até às eleições «o governo grego, em colaboração com os credores europeus, tente suspender oss previamente acordados cortes de pensões».