A gota de água para ampliar a agitação interna no Exército foi uma evocação a Victor Ribeiro, falecido em março deste ano, e um dos operacionais do 25 de Novembro ao lado de Jaime Neves. O coronel Pipa Amorim, comandante do Regimento de Comandos até ao passado dia 22 de agosto, prestou-lhe uma homenagem na cerimónia de receção do estandarte das tropas destacadas na República Centro-Africana no passado dia 13 de abril. O Chefe do Estado-Maior do Exército, Rovisco Duarte, não terá gostado da referência, tendo pedido, inclusivamente, que a mesma fosse eliminada depois da homenagem.
A morte do antigo Comando, que tinha sido um dos elementos a mobilizar as tropas no 25 de Novembro, passou relativamente despercebida na comunicação social. Foi Jaime Nogueira Pinto, num obituário publicado no Observador, quem assinalou o falecimento. No mesmo texto, contou que Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República e comandante Supremo das Forças Armadas, tinha agraciado Victor Ribeiro na véspera de falecer, na Fundação Champalimaud, em Lisboa.
Pipa Amorim acabou por lhe fazer referência a 13 de abril: «Permitam-me homenagear e prestar o meu público reconhecimento a este grande português, um dos últimos guerreiros do império, que como militar, adicionalmente à sua promoção por distinção, foi condecorado com as medalhas de Valor Militar e da Cruz de Guerra e como civil foi agraciado, na véspera do seu falecimento, ainda consciente, no leito onde agonizava, com a Ordem do Infante D. Henrique, pelo Presidente da República.», afirmou o coronel, citado pelo DN.
Um mês depois saía um despacho para o seu afastamento. Resultado? Está a ser organizado um almoço de desagravo ao coronel e à família em Lisboa no próximo dia 8 de setembro, em Lisboa. Mais: o patrono da iniciativa é o anterior Chefe do Estado-Maior do Exército, Carlos Jerónimo, que bateu com a porta quando lhe foi solicitado que demitisse o subdiretor do Colégio Militar, António Grilo, após declarações muito polémicas sobre a exclusão de homossexuais naquela instituição, numa reportagem do Observador.
Na altura, Carlos Jerónimo não aceitou que a tutela política tivesse interferência direta na escolha da direção do Colégio Militar. E pediu para sair. Marcelo Rebelo de Sousa acatou o pedido de imediato, tendo colocado uma nota no site oficial da Presidência em poucas horas.
Dois anos volvidos da polémica, o Exército não vive dias mais calmos. O general Rovisco Duarte entrou em cena, mas enfrentou, no imediato, um problema: a morte de dois recrutas dos Comandos em Alcochete. Os processos que se lhe seguiram, o debate sobre o fim dos Comandos, ou a forma como o Exército se absteve do pagamento de custas judiciais dos dezanove arguidos no caso só tiveram uma consequência: o descontentamento crescente no seio dos militares. Segundo apurou o SOL junto de fontes militares, Rovisco Duarte ganhou alguns anticorpos neste processo dentro do ramo.
Este foi apenas o princípio: o roubo de material bélico em Tancos ampliou a tensão. A forma como foram suspendidos militares no processo e a gestão comunicacional de Rovisco Duarte estendeu o descontentamento até outros ramos das Forças Armadas, circunscrito até ali aos Comandos e a outros setores do Exército (o ramo com maior número de efetivos das Forças Armadas). Talvez por isso o almoço de homenagem a Pipa Amorim não seja também exclusivo dos Comandos, estando prevista a presença de paraquedistas.
A evocação de uma figura do 25 de Novembro, fundador da Associação de Comandos, não é pacífica, mas para José Lobo do Amaral, só existem motivos de orgulho: «Acho muito bem que tenha recordado o seu camarada. Não esquecemos aqueles que estão para trás. Não queremos que nos roubem a história», defendeu o presidente da Associação de Comandos ao i. Por isso, José Amaral Lobo garantiu uma presença em « massa» no almoço de homenagem a Pipa de Amorim.
Ecos de Novembro em… setembro
O 25 de novembro de 1975 pôs fim ao Processo Revolucionário em Curso (PREC), num duelo entre a ala mais à esquerda militar e a moderada do Movimento das Forças Armadas (MFA). O grupo dos moderados, acabou por sair vencedor e dar início ao processo constitucional, sob a égide do general Ramalho Eanes, com os Comandos, liderados por Jaime Neves e mobilizados com a ajuda de Victor Ribeiro.
«Se vivemos hoje na sociedade que vivemos, boa ou má, ela deve-se ao 25 de Novembro. O 25 de Novembro é que repôs a democracia e os valores da democracia. Vivemos num regime saído do 25 de Novembro», recordou José Amaral Lobo.
Ainda assim, o almoço de homenagem ao coronel Pipa Amorim «pouco tem de ideológico», confidenciou uma fonte militar que conhece a história da decisão de desagravo ao comandante. Mas nem todos concordam com a iniciativa. O general Carlos Chaves, que assessorou o ex-primeiro-ministro Passos Coelho na Defesa, disse ao i que esta iniciativa e subsequentes ecos «são romarias, são exploração dos sentimentos mais nobres. O que me custa é que tenha de se chegar a isto, está a ver? Isto já é folclore». Por sua vez, o organizador da iniciativa, o tenente-coronel e Comando Pedro Tinoco de Faria, escreveu uma carta aberta na rede social Facebook a responder à letra: «Não me fere tratar-me com um puto com pouco senso comum, fere-me tratar este almoço como uma romaria e um folclore, por parte de um chefe de banda e de fanfarras sem desprestigio para estes. Folclore e romarias… Eu pergunto-lhe o que sabe sobre comando de tropa? Não me vou alongar com este artigo para não desrespeitar camaradas que querem estar presentes a homenagear um amigo e um Comandante e sem aproveitamentos políticos. aproveitamento político foi a sua brilhante carreira».
Já para o general Carlos Chaves, o problema central no Exército é Rovisco Duarte, que já deveria ter pedido para sair. E sobre o caso do roubo de material bélico em Tancos, o general Carlos Chaves vai mais longe: Rovisco Duarte deveria ter saído, dando espaço «para que tudo fosse investigado sem a sua presença, nem influência, e hoje já teríamos, de certeza apurado, a verdade absoluta sobre este caso», declarou ao i.
O caso de Tancos está longe do esclarecimento, mas a exoneração de Pipa Amorim é recente. O Exército nunca assume a palavra demissão ou exoneração e explica «que as rotações de Comandantes das U/E/O do Exército ocorrem sempre que for necessário para cumprimento de aspetos estatutários como, por exemplo, o tempo de comando prescrito na lei». Dito de outra forma: para o Exército, Pipa Amorim saiu em resultado das regras de rotação – normalmente de dois anos – no mesmo posto entre comandantes. Pipa Amorim não cumpriu ano e meio.
Oficialmente, o ramo militar limitou-se a justificar a decisão de substituir Pipa Amorim pelo comandante Eduardo Pombo, «cumprindo o tempo prescrito na lei e também por necessidades estatuárias de carreira».
Segundo fontes militares ouvidas pelo SOL, bem como fontes ligadas ao setor da Defesa, será difícil que o atual Chefe do Estado-Maior do Exército renove o mandato por mais dois anos. O prazo termina em abril e a situação de descontentamento interno aumentou nos últimos meses – e a escalada de críticas ou as manifestações de desagrado em público são situações muito raras entre os ramos militares.