A verdade já não é o que era, nem na igreja

Antigo núncio dos EUA desencadeou guerra civil na Igreja Católica, acusando o Papa de proteger abusadores sexuais. Mas o que parecia verdadeiro pode ser profundamente falso. 

Passava pouco das nove da manhã em Roma quando o arcebispo Carlo Maria Viganò entrou no apartamento do jornalista vaticanista italiano Marco Tosatti. Estava de cabeção e com um boné de basebol a dizer Rocky Mountain e anunciou que tinha uma história «explosiva» para contar. A seguir, sentou-se e começou a escrever as 11 páginas que, esta semana, desencadearam uma guerra civil dentro da Igreja Católica.  

Tosatti admitiu há dias ao The New York Times que, ainda nessa manhã, editou o texto do arcebispo. Diz ter apaziguado a linguagem de um «homem enraivecido». Já perto da hora de almoço, Viganò decidiu ir-se embora. Antes, confessou-se «preocupado com a sua segurança» e explicou que iria «desaparecer» e desligar o telemóvel. «Não te digo para onde vou para que não tenhas de mentir quando to perguntarem», acrescentou.

Horas depois, o arcebispo Viganò tornava-se no nome mais falado e polémico da Igreja Católica. E o conteúdo da carta que escreveu –  classificado por alguns de «bomba atómica» – não é para menos. Entre as muitas frases explosivas conta-se o pedido de resignação do Papa Francisco, a quem Viganò acusa de ter protegido e promovido o cardeal americano Theodore McCarrick, implicado no mais recente escândalo de pedofilia da Igreja americana e que foi expulso do cardinalato no mês passado, quando a polémica rebentou em todo o mundo. 

Viganò, que foi núncio (embaixador do Vaticano) em Washington entre 2011 e 2016,  garante que as mais altas cúpulas de Roma ignoraram, durante 18 anos, sucessivos avisos e denúncias a respeito da conduta sexual desviante de McCarrick. Apesar de não apresentar provas ou documentos, o arcebispo garante que a nunciatura apostólica (embaixada do Vaticano) nos Estados Unidos informou o Vaticano, em novembro de 2000, que McCarrick «partilhava a cama com seminaristas». A denúncia não deu em nada e, seis anos mais tarde, o próprio Viganò escreveu ao então secretário de Estado da  Santa Sé, Tarcisio Bertone, a expor o assunto, propondo «medidas exemplares». Novamente sem resposta. 

Em 2008, Viganò terá escrito mais uma vez, depois de o Papa Bento XVI ter condenado publicamente os atos de pedofilia cometidos por membros da Igreja. Ninguém lhe respondeu, mas o antigo núncio diz ter sabido entretanto, «de fonte segura», que o então Papa aplicara sanções a McCarrick, em 2009 ou 2010: «teria de deixar o seminário, ficou proibido de celebrar [missa] em público, de participar em encontros públicos, de dar palestras, de viajar», tendo ainda sido obrigado a recolher-se numa «vida de oração e penitência». Só que, em 2013, com a chegada do Papa Francisco a Roma, a seguir à resignação de Bento XVI, a vida terá mudado para McCarrick. Viganò conta que o cardeal recomeçou a viajar – chegou a representar a Igreja numa viagem à República Centro Africana – e passou a participar em palestras e seminários e a dar entrevistas.

O Papa Francisco poderia ter pecado por falta de informação – até porque as supostas sanções aplicadas por Bento XVI ao cardeal só agora foram foram tornadas públicas, com a carta de Viganò -, mas o antigo núncio assegura ter alertado o sumo pontífice para os abusos de McCarrick  em junho de 2013.  Sem que, mais uma vez, alguma coisa tenha mudado. O arcebispo garante que Francisco sabia de tudo, mas que optou por proteger o cardeal americano, porque este fez lobby pela sua eleição no último conclave.  E não só lhe retirou as sanções aplicadas por Bento XVI, como o chamou para seu «conselheiro» para os assuntos relacionados com os Estados Unidos. Viganò vai mais longe e acusa o Papa de proteger outros abusadores sexuais, bem como homossexuais bem posicionados na hierarquia da Igreja. 

E dá o exemplo do cardeal  hondurenho Óscar Maradiaga, nomeado por Francisco para coordenador do Conselho dos Cardeais (o C9, grupo de confiança do Papa responsável pela reforma da Cúria). O antigo núncio diz-se convencido de que em breve rebentará um  «escândalo» de pedofilia nas Honduras e culpa Francisco por isso, por dar cobertura a Maradiaga. «A corrupção atingiu o topo dos topos da Igreja», denuncia.  

 

Tempestade irlandesa 

Viganò pode até ter escrito as 11 páginas num estado de raiva evidente, como descreveu esta semana Marco Tosatti, mas o momento escolhido para a divulgação da carta parece ter sido criteriosamente premeditado. Aconteceu durante a já por si difícil visita do Papa à Irlanda, que ocorreu sob o manto do escândalo dos abusos sexuais nos Estados Unidos. É que a Irlanda, país que tem perdido católicos à velocidade luz  (ao ponto de, este ano, ter despenalizado o aborto), também passou por um mega caso de pedofilia há oito anos. Ciente disso, Francisco aproveitou a visita para se encontrar com vítimas irlandesas – depois de, na semana passada, ter divulgado uma carta em que pede perdão pelo escândalo americano. 

Além disso, o Papa tem sido fortemente atacado, nos últimos meses, pelas alas mais conservadoras da Igreja (a que Viganò assumidamente pertence), que o acusam de «heresia». Por tudo isto, previa-se um fim de semana difícil. Mas o Papa nunca imaginou que poderia ser ainda pior e que, na conferência de imprensa a bordo do avião, que no domingo o levou de volta a Roma, seria confrontado com a carta bomba de Viganò. «Li esta manhã (…). Digo sinceramente: leiam vocês, atentamente, e façam um juízo pessoal. Não direi uma palavra sobre isto, penso que o documento fala por si», limitou-se a responder. 

E os jornalistas vaticanistas puseram-se, muito rapidamente, em campo. Enquanto isso, assistiu-se ao desfile de opiniões e revelações de um sem número de personalidades da Igreja durante toda a semana. Uns validam a tese de Viganò, como  Jean-François Lantheaume, que trabalhou na nunciatura de Washington na mesma altura que o arcebispo ou o hiperconservador cardeal Raymond Burke, que afirmou ser «lícito» pedir a resignação de Francisco. Outros defendem o Papa, como o cardeal Donald Wuerl, também visado na carta como sendo um dos 15 cardeais que terão ignorado os alertas de abusos. 

A mentira da verdade 

As contradições e omissões da carta de Viganò começaram entretanto a ser expostas, sobretudo em publicações ligadas aos Jesuítas (ordem a que pertence o Papa Francisco). E a primeira incongruência parece bastante evidente: entre 2009 e 2013 – os anos em que o antigo núncio garante que McCarrick foi condenado ao afastamento público -, o cardeal manteve uma presença mediática ativa. Fez parte da organização humanitária Catholic Relief Services e um porta-voz da instituição já veio garantir que o cardeal viajou em serviço mais de 20 vezes para diversos países na Ásia, África, Médio Oriente e América Latina. Ao mesmo tempo, publicações católicas mais conservadoras têm publicado artigos em defesa de Viganò. A  Catholic News Agency, por exemplo, diz que  várias fontes contam ter participado numa reunião, em 2008, em que McCarrick foi instado a abandonar o seminário. E essa orientação teria vindo diretamente de Bento XVI, chegando a haver obras num edifício da paróquia de  Woodley Park, em Washington, para receber o cardeal.

Só que a agenda de McCarrick parece não deixar margem para dúvidas. Entre 2009 e 2013, participou em dezenas e dezenas de eventos e celebrou missas públicas nos Estados Unidos e em vários outros países. Deu pelo menos duas conferências de imprensa e desdobrou-se em palestras. Em 2012, chegou mesmo a ser fotografado a apertar a mão a Bento XVI, por altura do aniversário do agora Papa emérito. Entretanto, o secretário de Ratzinger, Georg Gaenswein, disse à  ANSA, a agência de notícias italiana, na terça-feira, que Bento XVI não confirma o teor da carta de Viganò. O alemão terá mesmo descrito o texto como «fake news, uma mentira».   

Pelo meio, já há uma petição a circular (no site www.popefrancispetition.com) em que fiéis de todo o mundo pedem ao Papa que não passe ao lado das denúncias de Viganò. Chama-se «O povo de Deus reage» e ontem já contava quase quatro mil assinaturas. Também já há quem peça, como o bispo de Dallas, um sínodo extraordinário para a «reforma do Clero». Do Papa não se tem sabido quase nada. Continua em silêncio, mas anteontem, numa entrevista ao Vatican Insider, o secretário de Estado Pietro Parolin garantiu que está «sereno».