Previa-se que fosse uma manifestação com poucas centenas de pessoas, mas milhares responderam ao apelo e tomaram, na quinta-feira, as ruas do bairro berlinense de Neukölln. Marcharam contra a violência de extrema-direita e o seu discurso de ódio e racismo. «Seja em Chemnitz ou Neukölln: tomem as ruas contra a violência da extrema-direita», foi o lema da manifestação. Ao mesmo tempo, militantes de extrema-direita avançavam novamente e sem oposição pelas ruas da cidade alemã de Chemnitz. Protestos e contraprotestos de militantes fascistas e antifascistas multiplicaram-se esta semana na Alemanha, com a violência racista a ser encarada como um ataque ao «Estado de direito» e à «democracia» no país.
A faísca que está a levar os alemães a confrontarem-se com o aumento da extrema-direita, não apenas nas instituições, mas também nas ruas, aconteceu na madrugada de domingo, à margem de um festival para celebrar o 875.º aniversário do nascimento de Chemnitz. Dez pessoas envolveram-se numa rixa, com alguém a puxar de uma faca e a esfaquear um homem de 35 anos, Daniel H., carpinteiro de profissão, filho de mãe alemã e pai cubano. A vítima veio a falecer, no domingo, no hospital. A sua morte foi instrumentalizada pela extrema-direita como exemplo da criminalidade dos imigrantes contra os alemães, atribuindo a responsabilidade à política de acolhimento da chanceler Angela Merkel. Na segunda-feira, a polícia deteve dois suspeitos, um iraquiano de 22 anos e um sírio de 23, com ambos a ficarem em prisão preventiva. Depois, informadas por um elemento das forças de segurança, páginas das redes sociais e sites de extrema-direita difundiram a história de que a vítima era um jovem alemão corajoso que terá tentado evitar uma situação de assédio sexual, levando em troca 25 facadas de refugiados. Das palavras aos atos foi um pequeno passo e, subitamente, quase um milhar de militantes e simpatizantes de extrema-direita invadiram o centro de Chemnitz para mostrar «quem manda na cidade».
Nos vídeos que circularam nas redes sociais veem-se muitas pessoas avançando pelas ruas a perseguirem e agredirem. Todos aqueles que pareciam estrangeiros tiveram de fugir, temendo pela sua integridade física, sem que a polícia da cidade fosse capaz de travar a multidão. No final, a polícia conseguiu registar agressões a um afegão de 17 anos, a um sírio de 18 anos e a um búlgaro de 30 anos, mas muitas outras terão acontecido sem registo.
Com a «caçada», como lhe chamou a chanceler Angela Merkel, a ser notícia pelo país, novos protestos foram marcados para segunda-feira, desta vez tanto pela extrema-direita como por militantes antifascistas. A dos primeiros contou com mais de seis mil pessoas, enquanto a segunda se ficou pelas 1500 – normalmente a proporção costuma ser a inversa. Ao contrário do dia anterior, a polícia destacou seis centenas de agentes, mantendo os dois lados afastados durante horas. Garrafas, very-lights e outros objetos foram atirados de um lado para o outro, com a polícia a ter de usar dois canhões de água para controlar os manifestantes da extrema-direita. No meio, jornalistas foram agredidos e viram-se várias saudações nazis – ato proibido na Alemanha.
As perseguições a refugiados e imigrantes é uma prática cada vez mais comum na Europa. Na Grécia, tornou-se habitual com o Aurora Dourada; na Itália, com o CasaPounde e, na Hungria, com o Jobbik. Na Alemanha já tinham acontecido atos similares no início da década de 90, mas os acontecimentos em Chemnitz surpreenderam toda a gente pela rapidez com que se juntaram e apanharam a polícia totalmente desprevenida – com o fantasma da década de 30 a voltar. Para Hans Pfeifer, jornalista da Deustche Welle, o que está em causa a partir de agora é a «democracia alemã como um todo». «É alarmante por a história alemã nos ter ensinado que uma multidão organizada pode chegar longe, se conseguir unir a sociedade por frustração e raiva», continuou o jornalista.
O governo estadual e a polícia de Chemnitz foram fortemente criticados por nada terem feito para impedir a «caçada», com o diário alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung a denunciar a «demissão do Estado». Uns acusaram a polícia de cumplicidade, outros de conivência e outros tantos de incapacidade. E o anúncio de que terá sido um elemento das forças de segurança (ver caixa ao lado) a transmitir a informação à extrema-direita da detenção de dois refugiados pela morte de um cidadão alemão levantou mais suspeitas de que os dois lados têm ligações próximas – algo que não é exclusivo da Alemanha.
«Vimos caçadas coletivas, vimos ódio na rua, e isso nada tem a ver com um Estado de Direito», reagiu a Chanceler Angela Merkel na terça-feira. Por sua vez, o ministro-chefe da Saxónia, Michael Kretschmer, garantiu que se trata de uma minoria que tem como objetivo inflamar a opinião pública. «Não há lugar para o extremismo na Saxónia», afirmou, pedindo ainda para que os cidadãos da cidade defendam os estrangeiros. «Acreditamos que pelo menos algumas das convocatórias que circulavam online [para participar nos protestos] estavam baseadas em informação falsa, em fake news», acrescentou.
O Alternativa para a Alemanha (AfD), que está a ser culpado pela «caçada», afirmou ter «absolutamente zero» responsabilidades no sucedido, ainda que uma centena de militantes do partido tenham participado. «Em vez de condenar fortemente os ataques fatais à faca e agir contra eles com todo o empenho, em palavras e ações, só se fala sobre supostas ‘perseguições’», afirmou a bancada parlamentar do partido. «Quando o Estado não consegue proteger os seus cidadãos, as pessoas invadem as ruas e protegem-se a si mesmas. É tão simples quanto isso», justificou o deputado federal da AfD Markus Frohnmaier.
Saxónia, o bastião da AfD
O estado alemão da Saxónia (situado em território da antiga Alemanha Democrática) tem sido, nos últimos anos, um dos bastiões da extrema-direita no país. O grupo neonazi NSU, que operava na clandestinidade e que assassinou dez pessoas, concentrava-se neste estado até ser descoberto e desmantelado em 2011. E o movimento xenófobo e racista PEGIDA organiza, desde 2014, protestos com regularidade. Em termos eleitorais, o AfD foi o segundo partido mais votado nas legislativas de 2017, com 25,4% dos votos, enquanto a CDU de Merkel teve 30,6%, no primeiro voto em candidatos específicos. No segundo, em listas, o partido foi mesmo a primeira força política mais votada, com 27% dos votos, ultrapassando a CDU (26,7%). A Saxónia terá eleições estaduais em 2019 e a AfD não tem descido nas sondagens, antes pelo contrário, há probabilidades de se vir a tornar no partido mais votado no estado.
Nos últimos anos, a extrema-direita conseguiu criar raízes, tanto nas instituições como nas ruas, ganhando peso com uma narrativa anti-imigração. «A extrema-direita é tão grande que formou o seu próprio nicho, onde tudo é oferecido, ocupando espaço. Cria empregos, fornece apoio e ajuda. Vêm-se a desenvolver ao longo dos anos e o problema é que o Estado já não consegue alcançar esses círculos», explicou o psicólogo social Andreas Zick à Deutsche Welle. Em 2017, a extrema-direita cometeu quase dois mil crimes. Destes, 160 foram em Chemnitz, dos quais 95 violentos, relembra a DW. Os alvos principais foram refugiados e militantes de esquerda.
Se a Saxónia é um exemplo claro de como o movimento conseguiu conquistar terreno político, a questão não se deve resumir a este estado do leste da Alemanha, como defende o governador da Turíngia, Bodo Ramelow, do Die Linke. «Se só os estados do leste forem acusados, minimizamos um problema que existe em toda a Alemanha», defendeu. Além disso, corre-se o risco de se criar a imagem de que quem vive nessa parte do país é, por inerência, racista e xenófobo, contribuindo para estigmatizar toda uma população pelo pensamento de uma parte.