Sexismo, racismo e misoginia. Foram estas as acusações que não tardaram a surgir depois de Bernard Giudicelli, presidente da Federação Francesa de Ténis, anunciar há uma semana que, a partir de agora, estavam proibidos trajes como o macacão preto que Serena William usou no último Roland Garros. «Temos de respeitar o jogo e o lugar. (…) Acho que, às vezes, somos demasiado liberais. A indumentária de Serena este ano, por exemplo, não vai voltar a ser aceite», afirmou Giudicelli.
O fato no centro da polémica foi concebido pela Nike especificamente para a atleta. Desenhado para comprimir o corpo, facilitar a circulação sanguínea e assim prevenir a formação de coágulos, problema com o qual Serena se debateu após dar à luz, há um ano, a vestimenta – que a própria Serena batizou de ‘cat suit’ – foi inspirada em Wakanda, uma nação africana do universo da Marvel, que fez recentemente parte do filme Black Phanter.«Sinto-me uma princesa guerreira», afirmou a tenista que voltou a pisar os courts pela primeira vez depois de ser mãe precisamente em Roland Garros e que, no Instagram, partilhou uma imagem sua com o ‘cat suit’ dirigida a todas as mulheres que, como ela, tiveram difuldades na recuperação pós parto: «Se eu posso fazer isto, vocês também podem. Adoro-vos a todas», escreveu.
Depois da bonança, veio – para alguns – a tormenta em forma das declarações de Bernard Giudicelli. Kristen Clarke, presidente do Comité de Direitos Civis dos Advogados norte-americano, foi uma das pessoas a considerar racista e sexista a posição da Federação Francesa de Ténis. «Políticas arbitrárias de código de vestuário têm sido desproporcionalmente usadas para visar as mulheres negras nas escolas, no trabalho e agora no court de ténis. Este é um injusto policiamento dos corpos das mulheres negras», afirmou no Twitter.
Também a Nike reagiu nas redes sociais com uma imagem da atleta com o seu macacão acompanhado da legenda: «Podem tirar o super-herói do seu fato, mas jamais podem tirar-lhe o seu poder».
Roland com novas regras que não batem as de Wimbledon
Para José Morgado, jornalista, comentador desportivo e fundador do site especializado em ténis Bola Amarela este foi um caso «bastante extrapolado» já que o ‘cat-suit’ não é, simplesmente, permitido. «A roupa dela basicamente era ilegal: as regras indicam que só podes usar leggings até meio do gémeo», refere ao b,i. E quem optar pelas leggins terá, obrigatoriamente, de usar por cima saia ou calções. O jornalista entende que as declarações do presidente da Federação francesa foram desnecessárias, mas não as vê como um ataque à tenista. «Não creio que isto seja contra a Serena, que é uma enorme campeã e que aparentemente já sabia da opinião do torneio sobre a roupa».
Além disso, recorda, e «ainda que tenha sido há 30 anos e que os tempos tenham evoluído», a única vez que uma jogadora usou um macacão daquele género, viu o seu outfit ser banido. Estávamos em Wimbledon, em 1985, e a jogadora em causa foi a norte-americana Anne White. O dito macacão, todo branco, gritava anos 80.
Polémicas à parte, já é certo que, em 2019, o Roland Garros terá novas regras que, ainda assim, não serão tão exigentes como as de Wimbledon. O torneio do Grand Slam britânico, o mais antigo mundo, é conhecido por ser também o mais conservador nestas matérias: só são admitidas roupas brancas (até o bege faz parte da paleta proibida), os ténis e respetivas solas também têm que ser brancos e os logótipos das marcas ou patrocinadores também têm que ser discretos. Os únicos apontamentos de cor permitidos não podem exceder um cm da parte da costura externa das roupas (dos calções e saias, por exemplo) e têm que ser blocos de cor: ou seja, nada de padrões. No ano passado, Venus Williams foi obrigada a mudar de soutien no intervalo porque as alças cor-de-rosa estavam a aparecer.
Voltando ao fato de guerreira, a própria Serena já veio deitar água na fervura e de uma forma muito dela: primeiro, desvalorizou a polémica. Depois, apresentou-se no US Open com um… tutu. Se o sentido estético é discutível, o sentido de humor é bem difícil de ignorar.
Dos corpetes da Inglaterra vitoriana aos calções de ganga
Desde que o ténis se popularizou que as roupas usadas para o praticar têm tido uma palavra a dizer no mundo da moda – e chegaram até a ditar tendências depois usadas por milhões de pessoas que nunca puseram os pés num court: as camisolas usadas aos ombros com um nó frente, as fitas e até os óculos com armações em massa são apenas alguns exemplos num universo que tem como epítomes os pólos Lacoste e os ténis Stan Smith. Vamos por partes.
Quando o ténis se tornou num dos desportos preferidos da aristocracia na Inglaterra vitoriana, os aristocratas punham as redes e improvisavam courts nos relvados em frentes aos seus palácios e, no início, muitas vezes jogavam com a roupa que tinham vestida, referiu Ben Rothenberg, autor do livro The Stylish Life: Tennis (ed. teNeue) à CNN. Nesses eventos, mais sociais do que desportivos, homens usavam camisas e calças e as mulheres saias compridas, meias que não deixavam aflorar uma pontinha que fosse de pele, chapéus, cintos e até corpetes por baixo das blusas rendadas com grandes mangas. «Pelos seus padrões, olhariam para uma pessoa nos courts hoje e achariam que estava praticamente nua», comenta o autor.
Na década de 20 do século passado, as saias sobem ligeiramente e a roupa usada para praticar este desporto começa a tornar-se num caso sério. É por essa altura que chega aos courts a chique Suzanne Lenglen, uma tenista francesa descrita como «escandalosa» e que fez furor. «A Suzanne foi realmente um ícone do ténis que teve uma enorme influência na moda no geral. Até as bandanas que usava na cabeça para manter o cabelo afastado dos olhos se tornaram num acessório indispensável na moda dos anos 20 nas mulheres pela Europa e EUA». Nos loucos anos 20, deu-se o adeus definitivo às roupas que restringissem o movimento e começaram a cometer-se ousadias antes vistas: por essa altura, algumas tenistas usavam até casacos enfeitados com peles de animais.
Na década de 30, chega um nome que, quase cem anos depois, continua mundialmente conhecido: René Lacoste, o jogador de ténis que inventou os pólos para homem e cuja marca continua a fazer parte do guarda-roupa elegante de hoje em dia. Até maio deste ano, a marca teve um português aos comandos: Felipe Oliveira Batista. René Lacoste tornou-se, em 1927, o jogador número 1 do ranking, mas a história por detrás do crocodilo remonta a 1923. Nesse ano, o francês foi a Boston disputar a Taça Davis e reparou numa mala em pele de crocodilo. «Se ganhares, compro-ta», disse-lhe o seu treinador Alan Muhr. O episódio foi testemunhado por um jornalista do Boston Evening Transcript e, desde aí, a alcunha ‘O Crocodilo’ pegou. Claro que quando criou a sua marca de roupa, em que os polos, sweaters e casacos desportivos eram as principais estrelas, o emblema estava mais do que escolhido.
Nos anos 40 e 50, glamour é a palavra de ordem. Em 1949, a tenista Gertude Moran, conhecida pela alcunha de ‘Gorgeous Gussie’, apareceu em Wimbledon com uma saia bem acima do joelho que deixava ver, por baixo, a lingerie de renda – um episódio que, lembrava há dias o Independent, causou comoção.
Nos anos 50, segundo o livro de Ben Rothenberg, o grande ícone de estilo na hora de pegar na raquete veio dos EUA: Jackie Kennedy. E, no ténis, reafirmou-se a aura de elegância e um certo coquetismo que prevalece até hoje. Também nessa década, Katharine Hepburn foi outra das inspirações ao surgir a jogar ténis com uns calções brancos subidos no filme A Mulher Absoluta (Pat an Mike, de 1952).
Com os anos 60, veio o rock e as mini saias, algumas feitas de piqué, entraram nos courts para não mais sair. Chegam as camisolas com decote em v, normalmente com riscas de duas cores e, tanto para mulheres como para homens, populariza-se a forma de as pendurar às costas e atá-las em cima do peito. No final dos anos 60, a tenista Billie-Jean King, que ganhou Wimbledon seis vezes, U.S. Open quatro e o Roland Garros por uma vez , apresentava-se sempre em campo com os seus óculos de massa, com extremidades pontiagudas – um modelo muito semelhante ao que esteve em voga este verão – que se tornaram quase obriagatórios.
Mais uma década, mais uma tendência. Nos anos setenta chegam, para os homens, aqueles calções muito curtos – usados com os cabelos compridos – e marcas como a Dunlop tornam-se muito desejáveis – também por influência de Diana Keaton no filme Annie Hall, de Woody Allen (1977).
Nos anos 80 as camisolas estampadas com um design mais gráfico começam a ficar na moda e é precisamente a meio desta década que surge o tal macacão de Anne White. A norte-americana apresentou-se em Wimbledon com um fato de uma peça de lycra branco, completado com uma espécie de caneleiras -, e a organização também lhe mandou um recado. Houve ainda outro momento que causou perplexidade: em 1989, um imberbe André Agassi apresenta-se para a final do U.S. Open maquilhado, de brincos e com uns curtos calções… de ganga. Uma escolha que quase lhe valeu a expulsão, mas o estatuto de um dos melhores do mundo salvou-o.
Já na última década do século, as saias calção mostram estampados mais arrojados. Nas cabeças, às fitas, junta-se aquele elástico grosso que de quando em vez (como quase tudo na moda, é certo) volta ao topo das preferências capilares: o scrunchie.
As it girls do court
Neste milénio. as manas Williams, principalmente Serena, têm perseguido títulos e o estatuto de ‘it girls’ dos courts. Principalmente quando jogam em casa – até porque dos quatro Grand Slams o Open dos EUA parece ser o mais permissivo nestas matérias. Serena tem sido, ainda assim, mais arrojada do que Venus.
Logo em 2002, o seu primeiro ‘cat-suit’ – mas em formato calção – «abriu a caixa de Pandora», resume a Business Insider. Dois anos depois elevou a fasquia: jogou com uma saia de calção de ganga e uma espécie de ténis-bota subidos, tendo mudado a meio da partida para uns micro calções pretos.
Bethanie Mattek-Sands é outra tenista que tem marcado pontos (ou nem por isso…) na hora de inovar: em 2007, também no U.S. Open, usou um fatinho muito decotado todo dourado e, noutra partida, optou por um padrão tigresa – vale a pena ver as imagens. Em 2010, foi o mini vestido rosa choque de Venus Williams, pontuado por uns brilhantezinhos, que deu nas vistas. Ainda em 2010 e, mais uma vez, Venus Williams escolhe outra roupa peculiar para uma das partidas no open francês: um vestido de renda preta, debruado a vermelho, que lembra uma sexy camisa de noite.
Mas de uma forma geral, as roupas de ténis e o próprio jogo continuam a evocar uma certa finesse, que parece pedir uma etiqueta diferente do que qualquer outra modalidade. Talvez por isso, e com o passar dos anos, muitas peças que nasceram nos courts continuam a inspirar gregos e troianos: e que o diga Stan Smith. «Muita gente pensa que eu sou um sapato. Nem sequer sabem que sou um tenista», disse certa vez à revista Tennishead.
A história conta-se rápido: em 1963, Stan Smith era o número um do mundo quando a Adidas lhe pediu para dar nome ao seu recém-criado modelo de ténis – umas sapatilhas em pele, com buraquinhos na parte exterior para que os pés dos atletas pudessem transpirar. O modelo nunca deixou de ser produzido e voltou a estar na moda em 2014, tornando-se nos ténis mais comercializados de sempre pela marca que, estima, já vendeu mais de 44 milhões de pares.
Este é, provavelmente, o caso mais paradigmático de como o ténis influenciou a moda. Será que, como temos visto em anos mais recentes, passou a ser a moda a influenciar o ténis? Talvez Serena, cujos fashion statements se sucedem, respondesse com um retumbante sim.