O preocupante problema da habitação: que governo conseguirá solucioná-lo?

Este tornou-se, no Portugal contemporâneo, e em especial nos últimos tempos, um dos assuntos de que mais se fala na comunicação social, mas igualmente um dos temas mais difíceis e complexos de analisar com seriedade, de debater sem histeria, e de solucionar sem que isso implique o extermínio de nenhuma ‘classe social’. Por outro lado,…

Conheci bastante bem este universo nas épocas em que vivi como adulto – o Estado Novo e o regime que teve início em Abril de 1974 -, tanto do ponto de vista teórico (i.e., a legislação aplicável) como em termos práticos (modos de relacionamento entre senhorios e inquilinos, funcionamento de tribunais, etc.). 

Justamente pela sua grande complexidade, e devido à multiplicidade dos aspectos que engloba, seria irrealista pretender que num artigo de jornal fosse possível fazer-se uma análise completa e abrangente deste tema; terá de ser, por isso, um texto assumidamente parcelar, limitado aos aspectos que melhor conheço e que julgo serem os mais cruciais na presente conjuntura.

Uma das razões que tornam especialmente difícil a análise crítica deste tema tem a ver com a inexistência de paralelismo entre a situação económico-financeira da maioria dos portugueses e, por outro lado, a decisão que cada cidadão toma de morar em casa própria ou arrendada – algo que faz do Portugal moderno um caso singular e dificilmente compreensível aos olhos, por exemplo, de um estrangeiro bem documentado.  

Outra das razões para a falta de clareza e de inteligibilidade da situação portuguesa nesta área, é o facto de, ao longo de quase quatro décadas, sucessivos governos democráticos terem produzido, e mantido em vigor, leis sobre o arrendamento urbano que, em termos de racionalidade económica e social, não podiam deixar de causar graves consequências à maior parte da população e ao próprio Tesouro Público – e, no entanto, duma ponta à outra do espectro político, os partidos terem actuado como se concordassem todos com as leis adoptadas; e, por seu turno, a comunicação social, perante tão anómala e grave situação, ter também funcionado, quase unanimemente, como se fosse cega, surda e muda. 

Ainda outra razão para os paradoxos existentes nesta matéria foi o facto de essas leis determinarem coisas que, em seguida, o Estado democrático de direito ia transgredindo por sistema, e sempre impunemente, sem que qualquer entidade ou instituição (desde os P.R. aos tribunais), ao longo de décadas, pusesse em questão tais práticas ilegais, e até inconstitucionais.  

Nos últimos tempos, muitas pessoas têm associado a falta de casas acessíveis nas duas principais cidades (tanto para quem pretende arrendar, como comprar) e a “vertiginosa” subida de preços, ao facto de o turismo e a imigração de estrangeiros ter crescido imenso, para números nunca antes vistos ou sequer imaginados, havendo mesmo quem acuse este inédito “boom turístico” de representar, não uma enorme vantagem para o país (em termos económicos sobretudo), mas sim um mal para a maioria dos portugueses, e contra o qual a esquerda ‘exige’ medidas mais restritivas. 

O que ninguém diz é que os actuais preços das casas nas duas maiores cidades, e a preferência cada vez maior dos senhorios pelos alugueres de curta duração (a turistas e a estudantes), são uma consequência lógica das sucessivas legislações para o sector aprovadas desde 1974, todas elas erradíssimas – e, por outro lado, decorrem do facto (que muitos portugueses lamentam até hoje) de não termos passado a viver submetidos a um regime totalitário de tipo soviético, em que os cidadãos comuns ficariam totalmente privados de liberdades, nomeadamente a de expressarem opiniões contrárias às de quem manda, e a de possuírem a sua própria casa.

Quem queira mesmo entender como as coisas evoluíram nesta matéria não deverá esquecer que, entre 1974 e 2011, os partidos políticos tudo fizeram para que no nosso país deixasse de poder funcionar com normalidade um verdadeiro mercado de arrendamento; também importa não esquecer que desde meados da década de 80, tudo foi feito pelo poder político para convencer os portugueses (fosse qual fosse a sua situação profissional e económica) da conveniência que tinham em serem donos, e não inquilinos, das casas onde morassem. O regime nascido em 1974 nunca hesitou em legislar no sentido de asfixiar economicamente os antigos senhorios (numa época de altas inflações), e de fazer com que o crédito hipotecário para compra de habitação (e não o crédito a empresas produtivas) se tornasse o negócio prioritário da banca em Portugal. Chegou mesmo a parecer (e a ser legítimo suspeitar-se) que os legisladores, ao fazerem leis para o sector do arrendamento, não estavam realmente interessados em favorecer o mais harmoniosamente possível os legítimos interesses de inquilinos e senhorios, mas sim dispostos a beneficiar apenas alguns dos interessados nesta questão: os inquilinos (fossem ricos ou pobres), e os bancos (que, por sua vez, só queriam que os cidadãos comprassem casas por meio de crédito hipotecário, sendo-lhes indiferente, ou até desejável, o eventual desaparecimento do mercado de arrendamento).

Teoricamente, tudo isto foi feito ‘a fim de proteger os cidadãos mais desfavorecidos’; mas, na realidade, o que essas leis de facto fizeram foi manter por tempo indefinido os privilégios de que já gozavam (entre outros) os próprios legisladores que tinham a condição de inquilinos, sem que ninguém se lembrasse que havia que prevenir os ‘efeitos colaterais’ nefastos que das ditas leis poderiam resultar para os verdadeiramente desfavorecidos.

Na verdade, e em larga medida, os políticos envolvidos conseguiram o que pretendiam: Portugal passou a ter uma taxa de ‘proprietários imobiliários’ muito superior à que existe nos países europeus mais ricos (Alemanha, Holanda, etc.), e uma situação francamente próspera e saudável do seu sistema bancário, tal como antes nunca houvera no País, sobretudo durante a “longa noite da ditadura”…

Economicamente, a situação que existiu em Portugal entre 1974 e 2011/12 e, mais especificamente, desde a nossa adesão à CEE até ao mais recente resgate pela troika, pode ser caracterizada, em suma, do seguinte modo: todos os sectores de actividade económica puderam funcionar de acordo com as leis e regras de uma economia de mercado – todos, menos o arrendamento urbano. Os agentes económicos puderam beneficiar das vantagens que sabidamente decorrem da circunstância de estarem a actuar num contexto de sã e livre concorrência – todos, à excepção dos antigos senhorios.

Em 2011, a iminência da 3ª bancarrota pública desde 1974 e a recusa dos bancos em continuar a conceder empréstimos a um Estado endividadíssimo e já incapaz de honrar as suas dívidas, forçaram o então primeiro-ministro socialista a solicitar ajuda financeira aos nossos credores externos – os quais, entre outras exigências, impuseram como condição para o resgate algo de inédito entre nós: uma reforma séria da lei do arrendamento que incluísse o fim das rendas congeladas. Sem essa imposição do exterior, a ruína progressiva de milhares de imóveis em Lisboa e no Porto teria prosseguido, sem que ninguém (nem mesmo os fundos de investimento internacionais) mostrasse o menor interesse na respectiva reabilitação; e só um reduzido número de estrangeiros viria visitar-nos, tal como acontecera até então, curiosos que estavam por ainda existir, na Europa e no séc. XXI, um país tão ‘pitoresco’ que deixava arruinarem-se, e ficarem desabitados, os centros históricos das suas principais cidades, sem que as autoridades públicas (nacionais e municipais) se esforçassem por resolver essa anómala situação – muito pelo contrário.

Também importa recordar que os dirigentes do Partido Socialista, e muito em particular António Costa como ministro de Sócrates, foram, ao longo de muitos anos, os governantes mais apostados em dar cabo do mercado de arrendamento, tendo mesmo havido um, João Cravinho, a afirmar na TV que apenas o passar do tempo (isto é, só a morte de todos os envolvidos na situação, senhorios e inquilinos) tornaria possível acabar-se com as gravíssimas distorções, injustiças e demais efeitos perversos resultantes de tantos anos de rendas congeladas – mas, disse-o também, o PS, por si, decidira nada fazer no sentido de alterar, em termos substanciais e não só cosméticos, a lei das rendas então em vigor.

Por conseguinte, faz o papel de hipócrita ou cínico quem hoje se diz surpreendido, ou até escandalizado, pelo facto de os agentes económicos em questão (os antigos senhorios), que o actual regime prejudicou e empobreceu deliberadamente durante tanto tempo e de forma tão ilegítima, estarem agora, após todos estes anos, procurando finalmente colher algum benefício económico, pelo facto de aquela exigência da troika lhes ter permitido, pela primeira vez na vida, funcionar de acordo com as regras de uma economia de mercado, e tentando ressarcir-se, em parte, das enormes perdas que durante décadas foram forçados a suportar, impostas de forma arbitrária e despótica pelo poder político (e que, aliás, constituem um caso de discriminação e exclusão social sem paralelo na nossa história colectiva). Também não devia espantar ninguém que esses cidadãos tenham deixado por completo de acreditar e confiar num Estado, dito de Direito, que relativamente a eles se portou sem dúvida de modo mais fascista do que o próprio ditador Salazar. 

São estas as verdadeiras razões que estão na base da situação hoje existente, em Lisboa e Porto, no que se refere ao uso que é dado aos edifícios de particulares, aos preços vigentes no mercado imobiliário, e aos consequentes ‘problemas da habitação’ que, pelos vistos, parecem preocupar tanto a esquerda de Costa, Jerónimo, Robles e Companhia.

E só quem seja ingénuo ou pateta, ao ponto de acreditar nas falácias dos nossos políticos mais vocais (sobretudo quando prometem ‘mundos e fundos’, como agora, que já estão em pré-campanha eleitoral), pode ainda permitir-se supor que quem foi responsável activo pela criação e manutenção desta situação indesejável esteja, também, habilitado e apto a solucionar, de modo democrático e decente, os problemas e as dificuldades que hoje em dia se constatam no sector da habitação.

Tendo este regime as características ‘ideológicas’ que mantém, e na actual conjuntura, se eu fosse potencial senhorio e tivesse uma casa disponível, decidia não voltar a aceitar nenhum inquilino – punha a casa à venda ao ‘preço de mercado’ e recusar-me-ia a vendê-la por valor inferior. Arrendar, nem pensar! Já que o governo da geringonça continua a tratar os senhorios como gente a abater, eu por mim preferiria actuar no sentido de contribuir para o desaparecimento do simulacro de ‘mercado de arrendamento’ que ainda existe, e tem enganado tanta gente.

Isto, para já nem falar dos milhares de imóveis pertencentes ao Estado, que se encontram em vários estados de conservação e devolutos há anos, sem que a opinião publicada dê sinais de considerar tal situação questionável, menos ainda intolerável, num país governado por socialistas e comunistas. 

Lisboa, 5 de Setembro de 2018                          
António Silva Carvalho