Apostou toda a sua estratégia para o Brexit no plano de Chequers, mas, diz a imprensa britânica, saiu do encontro informal dos chefes de Estado e de Governo da União Europeia desta quinta-feira, em Salzburgo, Áustria, «humilhada». Sob pressão dos seus críticos internos, a primeira-ministra britânica, Theresa May, recusou remeter-se ao silêncio e ontem, numa conferência de imprensa de última hora, reagiu ao impasse da cimeira informal. Com um tom dramático, criticou a União Europeia dizendo que sempre a tratou «com nada além de respeito» e que espera tratamento semelhante. «Uma boa relação no futuro deste processo depende disso», assegurou May. Na quinta-feira, o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, publicou uma fotografia em que aparecia a mostrar um bolo a May com a seguinte legenda: «Uma fatia de bolo, talvez? Lamento, não há cerejas».
Na comunicação ao país, a líder britânica afirmou que ambos os lados da mesa das negociações «permanecem muito distantes». Depois, explicou que as negociações atingiram o impasse em dois temas: a futura relação económica e o «acordo-tampão» – o backstop –, relacionado com o primeiro. May recusou um acordo ao estilo da Noruega com a UE, que permitiria a livre circulação de bens, mercadorias e pessoas sob as regras europeias, por desrespeitar o referendo e negou-se a assinar um acordo de zona de comércio livre, à semelhança do que o Canadá tem com a UE. Neste último, a Irlanda do Norte teria de permanecer na união aduaneira europeia, dividindo o espaço territorial britânico em dois. «Não podemos aceitar nada que ameace a integridade da nossa união, como eles [UE] não podem aceitar nada que ameace a integridade [do mercado comum]», afirmou May.
A primeira-ministra garantiu ainda que desde a sua tomada de posse tem trabalhado «dia e noite» para encontrar um acordo favorável para ambas as partes, mas que, por outro lado, sempre disse preferir um cenário de «no deal» a um «mau acordo». E não tem dúvidas de que o impasse se deve em grande medida à intransigência dos líderes do outro lado do Canal da Mancha: «Nesta fase das negociações, não é simplesmente aceitável rejeitar as propostas do outro lado sem explicações detalhadas nem contrapropostas». E se a Europa não está preparada para negociar, Londres «não irá reverter o resultado do referendo» ou «partir ao meio» o Reino Unido. «Se a UE pensa que o vou fazer, então está a fazer um erro fundamental», alertou.
As duras palavras não foram bem recebidas por alguns diplomatas europeus, que, ao Guardian, alertaram para o facto de cenário «no deal» ser cada vez mais provável, ao mesmo tempo que expressaram as suas surpresas pelo tom belicoso da líder britânica. «Ela está agora a entrar numa dinâmica negativa», avisou um diplomata ao jornal britânico. «A minha melhor avaliação é que aquela retórica não resultará numa saída ordenada. Acho que deveria ter aderido à abordagem dos 27 [em Salzburgo]», complementou.
Entre as palavras menos amigáveis, May garantiu pela primeira vez aos mais de três milhões de cidadãos da UE a viverem no Reino Unido que não precisam de se preocupar: os seus direitos estão salvaguardados. «São nossos amigos, nossos vizinhos, nossos colegas. Queremos que fiquem», disse a primeira-ministra, dirigindo-se a todos os cidadãos europeus a viverem no Reino Unido.
Numa última tentativa para desbloquear as negociações, May avançou que poderá aceitar controlos regulamentares se o parlamento da Irlanda do Norte os aceitar. Espera-se agora por um qualquer sinal europeu.
A emboscada
Com os líderes dos 27 Estados-membros a ouvi-la atentamente, May garantiu no encontro informal que a «única forma credível» para se evitar uma fronteira alfandegária entre a Irlanda e a Irlanda do Norte era o plano de Chequers. A afirmação não foi bem recebida, vendo-se forçada a recuar e a comprometer-se a apresentar «nos próximos dias» uma nova proposta a Bruxelas. Insatisfeita, a líder britânica não poupou nas críticas, acusando a UE de não ter sugerido «qualquer proposta» que «respeite a integridade» económica do Reino Unido. Foi ignorada.
«Embora haja elementos positivos na proposta de Chequers, o quadro previsto para a futura parceria económica não funciona, porque coloca em causa o mercado único», disse o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk. E, como se as suas palavras não fossem suficientes para pressionar Londres, os outros líderes europeus alinharam na narrativa. O primeiro-ministro belga, Charles Michel, afirmou que «hoje [quinta-feira] consigo ver que são necessários vários passos por as propostas não serem suficientes para se chegar a acordo». «Ficou hoje claro que precisamos de um substancial progresso em outubro para podermos finalizar tudo em novembro», acrescentou Angela Merkel na quinta-feira. «Não se pode pertencer ao mercado único se não se é parte do mercado único, mas podemos arranjar formas criativas para procurar soluções boas, práticas e próximas», avisou a chanceler.
As negociações entre Londres e Bruxelas entraram na «fase crítica» e no «momento da verdade», com outubro a ser o mês das grandes decisões. Tusk já avançou inclusive com uma data para uma cimeira extraordinária, a 17 e 18 de novembro, cujo único objetivo é a assinatura do acordo de saída do Reino Unido da UE. «Tivemos uma boa discussão, estou mais convencido de que será possível chegar a acordo», garantiu Tusk. Mas para Dominic Raab, ministro britânico para o Brexit, a cimeira de Salzburgo não passou de uma «emboscada» à líder britânica por parte dos chefe de Estado e Governo europeus, que tentam assim ganhar um novo pulso nas negociações.
Com o prazo de saída da UE a aproximar-se e as negociações num impasse, os receios entre a comunidade internacional crescem. A diretora-geral do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde, alertou, pela primeira vez desde o referendo, que uma saída desordenada terá «custos significativos» para a economia britânica e, em menor medida, para a europeia. «Se isso acontecer haverá sérias consequências. Levará inevitavelmente à redução do crescimento, ao aumento do défice [orçamental] e à depreciação da moeda», vaticinou.
Novo referendo afastado
Desde que o ‘sim’ ganhou, em 2016, que os apelos para que se organize um segundo referendo sobre a saída da Grã-Bretanha da UE se têm multiplicado. Todavia, May sempre os recusou, defendendo que não irá trair a vontade popular expressa. «O referendo foi o maior exercício democrático por que este país alguma vez passou. Negar a sua legitimidade ou frustrar o seu resultado ameaça a confiança pública na nossa democracia», disse ontem a líder.
Mesmo um referendo sobre o acordo final, dizem especialistas constitucionais ouvidos pelo Guardian, é impossível até 29 de março de 2019, data em que Londres deverá abandonar o projeto europeu. Se May vier a decidir por um referendo ao acordo final, a saída terá de ser adiada – e Bruxelas terá de decidir se o aceita. No entanto, o governo britânico já garantiu em inúmeras ocasiões que não irá travar o processo de saída, com ou sem acordo.