Gato escondido com rabo de fora

Neste processo, Marcelo surgiu inquestionavelmente perante a opinião pública como o ‘derrotado’

Em política, o que parece, é.

Ora, o que ‘parecia’ antes da substituição de Joana Marques Vidal por Lucília Gago?

Parecia que Marcelo Rebelo de Sousa queria renovar o mandato da procuradora-geral da República em funções, e António Costa a queria substituir.

Assim, neste processo, Marcelo surgiu inquestionavelmente perante a opinião pública como o ‘derrotado’.

E até o facto de ter vindo depois justificar-se, dizendo que sempre defendeu o mandato único, mostra que percebeu isso mesmo: que aos olhos do país tinha perdido o braço-de-ferro com o primeiro-ministro.

Aliás, o argumento de Marcelo, não faz o mínimo sentido.

Por que razão deverá haver um mandato único para a procuradora-geral da República e dois mandatos para o Presidente da República?

Não será a Justiça um dos setores onde deve haver maior estabilidade – pois tem de estar acima das instituições e tratar todos por igual –, sendo indesejáveis as ruturas de pessoas e de estratégias?

E se uma procuradora-geral está a funcionar bem, porquê substituí-la?

Portugal terá assim tanta gente de qualidade que possa dar-se ao luxo de dispensar pessoas que estão a desempenhar com competência cargos de grande responsabilidade?

A substituição só se justificará quando exista uma convicção generalizada de que o detentor do cargo não desempenhava convenientemente as suas funções – como sucedeu, por exemplo, com Pinto Monteiro.

Mas o caso de Joana Marques Vidal não era manifestamente esse.

A ideia de que Marcelo queria reconduzir Joana Marques Vidal, e António Costa queria substituí-la, não surgiu por acaso.

Uma semana antes do anúncio da decisão, o semanário Expresso publicou uma inesperada manchete segundo a qual Marcelo e Costa estavam prestes a entender-se para a recondução da PGR.

A notícia foi escrita por Ângela Silva, uma jornalista que trabalhou comigo e é uma profissional séria, experiente e conscienciosa.

Que não iria inventar a informação.

Se a publicou, e o jornal lhe deu todo aquele destaque, é porque a jornalista e a direção estavam muito seguras do que afirmavam.

E só podiam estar muito seguras se alguém de Belém – ou mesmo o próprio Marcelo – lho tivessem dito ou sugerido.

Esta história lembra assim, estranhamente, outra que faz parte do anedotário do jornalismo contemporâneo, também envolvendo Marcelo: a notícia do «nem que Cristo desça à Terra».

Adiante-se que, além do Expresso, também Marques Mendes (que se diz falar quase diariamente com o Presidente da República) defendeu abertamente a recondução da procuradora-geral.

Ou seja: Marcelo Rebelo de Sousa, através de vários ‘canais’ – Marques Mendes e Expresso –, quis apontar a António Costa qual era a solução que preferia.

Dizê-lo de forma mais explícita era difícil…

Só que António Costa não o quis ouvir.

Como aqui escrevi há quinze dias, o assunto era demasiadamente importante para Costa ceder às pretensões de Marcelo.

Curiosamente, dois dias depois do anúncio oficial da nomeação da nova procuradora-geral, José Sócrates – numa daquelas sessões que organiza por aí com gente arrebanhada que o olha como boi para palácio a falar da independência da Justiça – veio a público levantar a tampa do que estava escondido.

Afirmou Sócrates, indignado, que «a direita tinha como única agenda a recondução da procuradora-geral da República».

Ao dizer isto, Sócrates mostrou tudo.

Mostrou que também ele queria a substituição de Joana Marques Vidal.

E porquê?

Naturalmente porque pensa que a nova procuradora-geral lhe pode ser mais favorável.

Sócrates deveria ter sido mais cauteloso e menos precipitado nesta questão.

Vir falar do assunto naqueles termos, dois dias depois de anunciada a substituição da PGR, foi mesmo mostrar o ‘gato escondido com o rabo de fora’.

E ao fazê-lo, José Sócrates traduziu o estado de espírito do Partido Socialista e de toda a esquerda.

Por que é que a esquerda se envolveu tanto no afastamento de Marques Vidal?

Não será isso suspeito?

Basicamente, as razões da esquerda eram as mesmas das do próprio Sócrates: evitar a ida a julgamento do caso Marquês.

E porquê?

Porque muitos socialistas vão ser envolvidos – e isso fragiliza a posição do Governo apoiado por PS, BE e PCP.

Para conseguirem que o caso não chegue à barra do tribunal, Sócrates e a esquerda vão lançar mão de todos os estratagemas possíveis e imaginários.

Vão tentar remover todos os obstáculos que se apresentem no caminho.

Um desses obstáculos era Joana Marques Vidal – e já foi removido.

Outro obstáculo era o juiz Carlos Alexandre – e o sorteio removeu-o ontem.

Vamos ver no que isto dá.

Para já, Marcelo Rebelo de Sousa deu um péssimo sinal ao aceitar, sem um gesto público de discordância, a substituição da procuradora.