As reações ao polémico acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que decidiu manter a pena suspensa para os dois funcionários de uma discoteca que abusaram sexualmente de uma jovem de 26 anos, tomaram conta das redes sociais nos últimos dias. Foram várias as partilhas e os movimentos feministas que se pronunciaram sobre o tema: será a Justiça em Portugal preconceituosa e sexista? Diminui as vítimas de crimes? Até houve uma manifestação no Largo Amor de Perdição, na cidade do Porto, com o objetivo de lutar contra o sexismo na Justiça.
Os factos que ocorreram em Vila Nova de Gaia, porém, estão longe de ser únicos. Nos últimos anos houve várias decisões polémicas que deixaram os portugueses indignados. Ainda no que diz respeito a crimes sexuais, em 2011, o Tribunal da Relação do Porto absolveu um psiquiatra num caso de violação de uma paciente grávida de 34 semanas.
De acordo com a decisão da Relação, o desrespeito pela vontade da ofendida não foi qualificado como um ato de violência. Os juízes entenderam que a vítima poderia ter resistido, «a não ser que se admitisse que o mero ato de agarrar a cabeça provoca inevitável e automaticamente a abertura da boca».
Em 1989, o Supremo Tribunal considerou que duas turistas sequestradas à saída de Almancil (concelho de Loulé) e que viriam a ser violadas por dois homens tinham sido culpadas, em parte, pelo sucedido, por terem sido ingénuas e provocadoras. «Se é certo que se tratam de dois crimes repugnantes, as duas ofendidas muito contribuíram para a sua realização», refere o acórdão.
Já em julho do ano passado, foi o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) que condenou uma decisão da Justiça portuguesa. Desta vez foi um processo de negligência médica que ocorreu em 2015. Nesse ano, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu reduzir o valor de indemnização a uma mulher que tinha ficado com lesões irreversíveis, após uma cirurgia na Maternidade Alfredo da Costa.
No acórdão que baixou a indemnização a pagar à vítima, os juízes consideraram que o problema de saúde da autora do processo já era de longa data e que a operação apenas agravou as queixas que não eram consideradas como novas. Mas foi a observação que se segue a gerar a revolta dos portugueses: «Importa não esquecer que a autora (da ação) na data da operação já tinha 50 anos e dois filhos, isto é, uma idade em que a sexualidade não tem a importância que assume em idades mais jovens».
Para o TEDH, a infração foi clara: a Justiça portuguesa violou os artigos 14.º e 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a proibição de discriminação e o direito ao respeito pela vida privada e familiar. «A decisão baseou-se sobretudo na ideia de senso comum de que a sexualidade não é tão importante para uma mulher de 50 anos e mãe de dois filhos como é para alguém mais novo», contestou o Tribunal Europeu dos Diretos do Homem.
O TEDH condenou ainda Portugal a pagar 5710 euros à ofendida por danos não pecuniários e despesas. A crítica, porém, ficou patente, uma vez que Estrasburgo foi mais longe na análise, ao constatar que, em 2008 e 2014, em dois casos de negligência médica movidos por homens, a Justiça nacional não tinha sido tão condescendente. «Nestes casos, o Supremo considerou que o facto de os homens não poderem voltar a ter relações sexuais normais afetara a sua autoestima e resultou num ‘choque mental tremendo’, independentemente da sua idade ou se tinham filhos ou não».
Também em 2017, o juiz desembargador Neto de Moura absolveu um arguido num caso de violência doméstica. Em outro acórdão, o juiz criticou a vítima por ter cometido adultério: «Uma mulher que comete adultério é uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral. Enfim, carece de probidade moral». E mesmo após ter sido provado o caso de violência, o juiz relatou que «não surpreende que [a ofendida] recorra ao embuste, à farsa, à mentira para esconder a sua deslealdade e isso pode passar pela imputação ao marido ou ao companheiro de maus tratos».
Mas se as observações sobre o adultério foram criticadas de forma unânime, as opiniões parecem dividir-se na discussão de fundo. A ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, foi perentória: «Não é um caso que faz o sistema». Mediante os casos, a procuradora de carreira salientou que não é possível extrapolar «o estado de consciência da magistratura relativamente a questões de igualdade».