As aventuras e desventuras de um fora-de-série

Bebia gim puro no intervalo dos treinos e deixou uma longa descendência: 14 filhos oficiais e talvez mais uns quantos espalhados por aí. A vida do grande futebolista brasileiro Garrincha tem todos os ingredientes e o antigo jornalista Ruy Castro soube cozinhá-los e temperá-los na perfeição. O resultado é a brilhante biografia Estrela Solitária, que…

O que pode haver de mais trágico do que um atleta venerado por milhões que acaba os seus dias como um farrapo humano, destruído pelo álcool, na miséria e desamparado?

Ruy Castro encontrou em Manuel Francisco dos Santos (1933-1983), vulgo Mané Garrincha, o sujeito ideal de uma biografia com todos os condimentos: talento, glória, dinheiro, sexo, sofrimento, decadência e miséria. Garrincha, em sentido inverso, teve no jornalista nascido em Minas Gerais há 70 anos o biógrafo perfeito – além do talento e do domínio das palavras, Castro revelou também um empenho e um sentido de responsabilidade notáveis: para escrever o seu livro realizou mais de 500 entrevistas a 170 pessoas, entre amigos, ex-jogadores, treinadores, jornalistas e namoradas.

Na realidade, para a lenda de Garrincha, Ruy Castro foi um biógrafo talvez demasiado perfeito. Não se limitou a contar com mestria as proezas e conquistas do futebolista, como os campeonatos do mundo de 1958 e 1962 (a ‘Copa de Garrincha’) – transformou em ouro literário até os aspetos mais sórdidos da vida do craque.

De facto, em Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha, a biografia recentemente editada em Portugal pela Tinta da China, há páginas dignas de uma comédia negra como Feios, Porcos e Maus, o filme de Ettores Scola de 1976. Vejamos esta descrição dantesca da visita que Garrincha e Elza Soares, sua amante, fizeram à antiga casa do jogador, onde vivia agora a ex-mulher com as filhas: «A imundície da casa horrorizou Elza. Havia objetos que pareciam há meses caídos no chão. As camas davam a impressão de não ser feitas nunca. Os colchões listrados, rotos e com mau cheiro, não tinham nada por cima. Sapatos e chinelos eram atirados para baixo das camas, mas os exalantes urinóis estavam à vista».

Incrédula, Elza terá comentado: «Não acredito que isto seja assim o tempo todo». «Costuma ser pior», respondeu-lhe Garrincha. «Ontem, para a vinda de vocês, matei as baratas da casa. Enchi uma caixa de sapato».

O jogador mais famoso do Brasil e do mundo na sua época – com uma popularidade superior à do próprio Pelé – nasceu na localidade de Pau Grande, filho de um pai alcoólatra e mulherengo inveterado que trabalhava como guarda numa fábrica. «Calcula-se em Pau Grande e adjacências que Amaro teria sido autor de pelo menos 25 filhos, sem contar com os nove de seu casamento. O que significa que Garrincha teria no mínimo trinta irmãos, em vez dos oito oficiais», calculou Ruy Castro.

E de onde vem a alcunha que se tornou quase um sinónimo da magia do futebol? O biógrafo explica: «Garrincha ou garricha é como no Nordeste chamam a cambaxirra: um passarinho bobo, marrom, com o dorso listrado de preto, comedor de minúsculos insetos e aranhas. Canta bonito, mas não se adapta ao cativeiro. […] Garrincha também não se adaptava ao cativeiro. Até os sete anos, sua vida foi caçar passarinhos, tomar banho no rio e jogar pelada. Os passarinhos ficariam poeticamente associados à sua futura imagem – mas, no começo, a atitude de Garrincha podia ser tudo, menos poética, benemérita ou contemplativa. Sua diversão era matá-los».

Começou a dar os primeiros toques na bola no S. C. Pau Grande. Em 1952, o mesmo ano em que se casou por ter engravidado uma rapariga, foi descoberto por um olheiro do Botafogo, Araty Vianna. «Araty falara maravilhas de Garrincha com tanta gente no Botafogo que alguém ali teria de prestar atenção», escreveu Castro. «O problema era que seus hinos a Garrincha pareciam fruto de um delírio alucinatório: segundo ele, no interior do Estado do Rio havia um ponta-direita de pernas completamente tortas, que driblava como um demônio e era imarcável. Quem podia acreditar nisso? […] E que história era essa de pernas tortas? Os treinadores e dirigentes desconfiavam dessas bizarrices. Apareciam, de vez em quando, certos jogadores que eram mais fenómenos de circo que de futebol. Não eram para ser levados a sério».

Garrincha rapidamente provou que essas dúvidas, no seu caso, eram completamente infundadas. As fintas do ‘anjo das pernas tortas’, como ficou conhecido, entortavam os olhos até dos defesas mais experientes. Viria a fazer 614 jogos com a camisola alvinegra do Botafogo.

Tal como o seu pai, Garrincha tinha um apetite sexual quase insaciável – e uma sede a condizer. Sobre o primeiro, talvez baste recordar a espantosa quantidade de filhos que teve. A última descendente, Vanderléa, nasceu a 21 de janeiro de 1981, dias depois de o pai ter alta de um internamento provocado pelo avançado estado de alcoolismo. «Era o seu 14.º filho (e a 11.ª menina), apenas entre os filhos de que se tomou conhecimento – mas suspeita-se de outros filhos que teria plantado em Curitiba, Porto Alegre e, naturalmente, Pau Grande».

Sobre a sede do craque, Castro conta um episódio revelador, passado depois de uma digressão pela Europa em 1955. Os protagonistas são Garrincha e Zezé Moreira, o treinador do Botafogo.

«Zezé já percebera que Garrincha tomava muita água tónica. Resolveu ir à sua mesa conferir.

‘Bebendo sua água tónica, Garrincha?’

‘É isso mesmo, seu Zezé’.

‘Me dá um bocadinho, estou com sede’, pediu o treinador.

‘Mas eu já bebi pelo gargalo, seu Zezé.’

‘Não tem importância, Garrincha, você não é tuberculoso.’

E estendeu a mão para recebê-la.

Garrincha passou-lhe temeroso a garrafinha. Zezé bebeu e a água tónica queimou-lhe a boca. Cuspiu fora. Gim puro».

Enquanto esteve ativo, Garrincha abusava do álcool e cometia loucuras, como jogar uma peladinha depois de uma feijoada bem regada, que deixavam outros jogadores arrepiados. Mas o pior foi quando uma lesão no joelho o atirou para fora dos relvados. «Sem horários a cumprir, sem a obrigação de ir todo dia ao Botafogo e sem a perspetiva de um jogo nos próximos dias, Garrincha tinha agora todo o tempo para beber. O que até então fora um prazer começava agora a transformar-se em compulsão», escreve Ruy Castro.

Mané Garrincha passou os últimos anos de vida literalmente aos caídos – ficava violento e irritável por causa do álcool e às vezes bebia até perder a consciência, para depois ser apanhado na rua e internado num hospital. Andou assim até ao dia em que um médico e um enfermeiro o encontraram «atravessado na cama, debatendo-se e ainda gemendo, certamente em delírio» e o levaram de ambulância para um posto médico. Morreria sozinho nesse 20 de janeiro de 1983 – «uma estrela mais solitária do que nunca naquela noite imensa». Ruy Castro chamou ao derradeiro capítulo do seu livro ‘Epílogo: 

A Última Garrafa’ – mas o título ‘A Última Gota’ não teria sido menos apropriado.