Quem passasse pelo Terreiro do Paço nas últimas duas semanas e olhasse de esguelha diria, assim de repente, que devia estar a acontecer outra Comic-Con ou um evento do género. A imponência do recinto ali montado, bem como as barraquinhas de comida e a zona destinada à imprensa, assim o levavam a crer. Um olhar um bocadinho mais atento – ao recinto e à envolvência, com muitos indivíduos munidos de bandeiras dos respetivos países – permitia perceber que tinha a ver com desporto. Futebol de praia?, perguntavam alguns. Dava todo o ar disso, é verdade, mas o piso (relva artificial) denunciava outra realidade: era o Mundial de Socca, como é conhecido internacionalmente o minifutebol.
E o que é de facto o minifutebol? Não, não é futebol para crianças… ou indivíduos de estatura invulgarmente baixa. É mesmo uma variante do desporto-rei, misturada com futsal e futebol de sete. Pode jogar-se com três, cinco, seis e sete elementos de cada lado – no caso da competição que decorreu de 23 a 29 de setembro em Lisboa eram seis jogadores em cada equipa. Pela Praça do Comércio desfilaram 32 países, com o mini estádio montado especificamente para o evento a ficar praticamente lotado na abertura e na final – cerca de três mil espetadores.
Falta referir, contudo, o aspeto mais distintivo desta competição: é só para amadores. Ou seja, nenhum dos atletas que ali participou é remunerado, seja no futebol, no futsal ou nas equipas em que compete nesta variante. Pode já ter sido, no passado (e mais à frente daremos exemplos concretos disso mesmo), ou aspirar a sê-lo no futuro – e para o concretizar desse sonho, que melhor montra do que um Mundial?
O sonho do profissionalismo
Entre os participantes esteve Portugal. A comitiva de 15 atletas, liderada por Luís Ramalho, partiu para a prova com o objetivo de ultrapassar pela primeira vez a fase de grupos. No primeiro Mundial de futebol organizado em Lisboa, a meta foi cumprida e até amplamente superada: a seleção lusa chegou às meias-finais, caindo aí aos pés da Polónia. Terminaria em quarto, após ser derrotada pela Rússia (1-2). No total, quatro vitórias (3-1 à Grécia e 3-2 à Turquia na fase de grupos, 5-3 à Moldávia nos oitavos de final e 3-0 à França nos quartos), um empate (2-2 com o Paraguai na fase de grupos) e duas derrotas (1-2 com a Polónia nas meias-finais e 1-2 com a Rússia no jogo de atribuição dos terceiro e quarto lugares).
«O objetivo base foi mais do que cumprido», confirmou ao b,i. Hugo Costa, presidente da Associação Portuguesa de MiniFootball, um organismo que fundou em 2014 com o intuito de dar organização ao futebol amador. «Havia uma série de entidades a realizar torneios de 5×5 ou 7×7 mas cada um usava as suas regras, os seus métodos, não era nada organizado. Eram grupos de amadores, amigos, entidades. Então decidimos organizar-nos e depois juntámo-nos à Federação Internacional e começámos a participar nos Europeus (já foram três). Este ano entendeu-se que já havia desenvolvimento suficiente para fazer um Mundial e Portugal candidatou-se, achámos que podíamos tornar a modalidade mais conhecida – se não tivéssemos este evento, ia demorar muito mais a acontecer. E não havia sítio melhor para organizar: o Terreiro do Paço é um cenário idílico», realça o dirigente.
No entender de Hugo Costa, o minifutebol «nunca vai chegar ao patamar do futebol de 11 e do futsal», até pela obrigação de ser praticado exclusivamente por amadores. «As regras do campeonato assim o exigem. Não há dinheiro envolvido, salários ou prémios, é mesmo só o prazer de jogar», salienta, revelando ainda assim acreditar que a modalidade «tem espaço»: «Tem muitos golos, é muito agradável de ver, joga-se ao ar livre. Tem jogadores virtuosos, que aqui têm mais espaço para fazer o que querem, ao contrário do que acontece nas outras variantes.»
E os números corroboram as suas palavras: em Portugal já há 700 equipas e mais de dez mil jogadores a participar nos torneios desta variante um pouco por todo o país – primeiro de base regional e depois numa fase final onde é apurado o campeão nacional. E é da participação nesses torneios que saem os atletas para representar cada país em competições internacionais, como esta.
Foi o caso de José Carlos. Campeão nacional de futebol de 11 pelo FC Porto nas camadas jovens, onde defrontou nomes como Ricardo Quaresma ou Cristiano Ronaldo, acabou por abandonar o sonho do profissionalismo assim que entrou na casa dos 20 anos, devido a uma lesão contraída no União de Lamas, onde ainda chegou a jogar na II Liga. O futebol ficou para trás, mas «o bichinho nunca morreu», e assim que tomou conhecimento da existência da liga de minifutebol nunca mais voltou atrás. «Há cinco anos surgiu a possibilidade de criar uma equipa de futebol de 7, o Lusitânia de Lourosa, do qual sou o proprietário, que é a campeã atual. Logo no primeiro ano apurámo-nos para as finais nacionais e comecei a sonhar com a possibilidade de um dia haver uma seleção – e não é que quando acabou a final, anunciam que nesse ano iam recrutar jogadores para representar Portugal no Campeonato da Europa? Pensei logo: ‘Vai ser aqui a minha oportunidade para mostrar que sou alguém no futebol’. Comecei logo a sonhar e a preparar-me e felizmente fui logo chamado», revela aquele que é, há já alguns anos, o capitão da seleção portuguesa.
«Estive presente em todos os jogos de todas as competições que Portugal fez até agora: 17 – só falhei dois por estar suspenso. Três Europeus, dois campeonatos do mundo e um torneio dos campeões na Tunísia», enumera o atleta, emocionado pelo facto de poder representar o seu país… no seu país: «Ter a oportunidade de poder ter as nossas famílias, os adeptos, o povo português a ver-nos representar Portugal, a ver que podíamos ter sido alguém no futebol… É perfeito, uma experiência única e maravilhosa.»
As especificidades da modalidade, com uma base de futebol de 11 mas várias regras provenientes do futsal e outras próprias, contribuem igualmente para chamar jogadores. «A bola e a relva são para jogadores de futebol 11 e 7; as medidas do campo e as regras são para jogadores de futsal. O ideal é ter jogadores de futebol 11 e 7 que tenham cultura tática para perceberem o futsal», sintetiza, considerando que o minifutebol «estará sob a alçada da FPF (Federação Portuguesa de Futebol) dentro de pouco tempo.
Aos elementos mais jovens que ainda tenham dúvidas em relação à participação na modalidade, José Carlos deixa um conselho: «Não deixem fugir a oportunidade. Numa competição como esta há muita gente a assistir, seja do futebol de 11 ou do futsal, e podem surgir convites, talentos serem detetados aqui. Na América, por exemplo, esta competição existe e é profissional.»
Luís Ramalho sabe bem o que isso é. Ligado ao futebol desde tenra idade, jogou nas camadas jovens de Benfica e Belenenses e foi profissional em clubes como Louletano, Oriental ou Olivais e Moscavide. Passou depois por vários clubes no futsal, continuando ligado às duas modalidades enquanto treinador. Desde abril, é também o selecionador português de minifutebol. «É um estímulo diferente, onde posso aplicar a experiência que fui adquirindo ao longo da carreira nas duas modalidades. Enquanto me sentir desejado aqui, e se chegarmos à conclusão de que tudo o que foi feito foi bem feito, cá estaremos para dar continuidade», assume o técnico de 38 anos, confessando-se feliz com o percurso da equipa que orienta, com uma média de idades na casa dos 30 anos (o mais novo tem 19; o mais velho, 37).
Como em qualquer registo amador, a grande dificuldade para os treinadores prende-se com a disponibilidade – ou falta dela, em muitas ocasiões – dos atletas para marcar presença em todos os treinos ou mesmo nos jogos. «Cerca de 80 foram identificados para os primeiros estágios, muitos deles jogam em equipas federadas até da II Liga de futsal, e não puderam estar aqui pela vertente profissional. Estes 15 são os melhores que tínhamos disponíveis. Há muita matéria-prima que não está aqui mas tinha qualidade para estar», salienta, garantindo ainda a necessidade de «muito treino» para outra característica específica desta variante: o shoot-out, um modelo de grande penalidade celebrizado na liga norte-americana dos anos 90 onde o jogador arranca com a bola do meio-campo e tem dez segundos para finalizar, ao invés do penálti tradicional, onde só pode dar um toque na bola (o remate, obviamente).
Helton vinha fazer magia… mas não conseguiu jogar
A 1.ª edição do Mundial de minifutebol esteve enquadrada na Semana Europeia do Desporto. A competição tinha como embaixadores nomes míticos do futebol mundial, como Ronaldinho, Ryan Giggs, Roberto Carlos ou os nossos bem conhecidos Simão Sabrosa, Luís Boa Morte, Mantorras, Fernando Aguiar e o croata Krovinovic (atual médio do Benfica), com o jogo de abertura (Portugal-Grécia) e a final (Polónia-Alemanha) a ser apitados por Mark Clattenburg, reputado árbitro internacional de futebol. Marcelo Rebelo de Sousa era igualmente esperado nas duas cerimónias, mas o presidente da República – sempre muito atarefado, como se sabe – acabou por se fazer representar pelo vice-presidente da Câmara de Lisboa, Duarte Cordeiro.
O interesse internacional pela prova foi evidente: mais de 30 televisões de todo o mundo compraram os direitos televisivos e várias das seleções contaram com forte apoio ao longo da competição – com destaque natural para os países de língua oficial portuguesa (Angola, Cabo Verde e Brasil). A seleção brasileira, de resto, tinha um aliciante extra nesta competição: Helton, ex-guarda-redes do FC Porto, fazia parte do plantel… como jogador de campo. O antigo internacional brasileiro, porém, acabou por não disputar qualquer minuto na prova: não jogou nos primeiros dois jogos e no terceiro, quando iria finalmente ter a oportunidade de ‘brilhar’… o Egito não compareceu – a seleção africana viajou sem metade da comitiva, por problemas nos vistos dos atletas, e acabou por ser afetada por uma série de lesões após os dois primeiros jogos, pelo que optou por não realizar o terceiro. O Brasil viria a cair logo no início da fase a eliminar, num encontro em que Helton não pôde comparecer por motivos pessoais, pelo que a sua participação acabou por ser nula.
No fim, como tanta vez acontece no futebol de 11, ganhou a Alemanha, que bateu a vizinha Polónia na final (1-0). Para o ano está já agendada nova competição, desta feita na Grécia. «Estamos já em negociações para definir como fazer o apuramento para o próximo Mundial, porque o interesse é gigante, muito além dos 32 países que participaram este ano. Terá de se criar um ranking», explica Hugo Costa, revelando ainda que o evento, orçado em 500 mil euros (pagos de forma integral pelos patrocinadores) não gerou retorno financeiro direto – as entradas eram gratuitas -, mas os milhares de turistas que se deslocaram a Lisboa de propósito para acompanhar os seus países terão contribuído largamente para a economia nacional.