São 11 da manhã e se não estivéssemos com redobrada atenção não conseguiríamos reconhecer o sócio n.º 76827 do Sport Lisboa e Benfica. O número não lhe confere estatuto de notável, mas pelo que foi e representou para o Benfica desde dezembro de 2006, é uma figura incontornável do clube encarnado. No cartão de sócio que leva a assinatura de Luís Filipe Vieira, a fotografia ainda mostra um rosto jovem com cabelo preto. A imagem é antiga e já não corresponde ao rosto atual, castigado pelo tempo, pelos muitos combates nos vários organismos do futebol português e, claro está, pelas polémicas do último ano.
Depois de tanta exposição mediática, de tantas fotografias e de tantas imagens televisivas em que nos últimos tempos foi repetidamente mostrado de fato e gravata, era difícil imaginá-lo de outra forma. Mas lá estava ele, à civil, de calça de ganga e polo preto, à entrada da Igreja da Piedade, no centro de Santarém.
A imagem pode soar contraditória, alguém repetidamente citado como infrator, apresentado como um todo poderoso do maior clube português, a entrar discreto na igreja. Não é surpresa para os paroquianos, é uma rotina na vida de Paulo Gonçalves. Já o era antes do acidente do seu filho Gonçalo, mas foi ali que encontrou refúgio depois disso, recorda o padre Joaquim Ganhão, que dentro de minutos iniciará a celebração da eucaristia.
Quando Gonçalo foi atropelado em 5 de maio de 2013 na estrada nacional n.º 3 da Póvoa de Santarém tinha 13 anos – e as primeiras notícias eram terríveis. Foi um golpe duríssimo, daqueles que ninguém espera. Os amigos dizem que ele sempre foi capaz de relativizar todas as pancadas, por pior que elas fossem, mas não naquele caso. Impossível. Naqueles dias o rosto duro do advogado não conseguiu conter as lágrimas muitas vezes. O pior era a incerteza e a angústia de não controlar o futuro do seu filho mais novo.
Os médicos, já em Lisboa, prepararam os pais para o pior, mas com o passar das semanas, não só Gonçalo se agarrou vida, como superou todas as expectativas de recuperação inicialmente esperadas pela equipa médica do hospital Santa Maria, em Lisboa, onde esteve internado durante quase um mês.
Entre maio e junho desse ano, Paulo Gonçalves dividia o seu tempo entre o hospital em Lisboa, a Igreja da terra e Fátima. «Agarrou-se à fé para suportar esses dias», recorda um amigo, e «isso ajudou-o a acreditar que o Gonçalo voltaria a ser o que era». E voltou.
Até ao acidente do filho, foram tempos felizes. E o Benfica tinha-se sagrado tetra-campeão. Profissionalmente, todos lhe reconheciam a competência e a capacidade de trabalho e liderança que tinham ajudado a terminar com a hegemonia desportiva do FC Porto. Não foi de estranhar, por isso, que passassem pelo hospital de Santa Maria ao longo de todo o mês em que o Gonçalo esteve internado, quase todos os jogadores do Benfica, sinal do reconhecimento e da gratidão em relação a uma das primeiras pessoas que quase todos eles conheceram à chegada ao clube. Salvio, dois dias depois do acidente, dedicou-lhe a vitória frente ao Rio Ave, num tweet expressivo e carinhoso. Cervi – que, como veremos mais à frente, tem uma ligação especial a Paulo Gonçalves – mostrou e vestiu uma camisola que ostentava o nome do Gonçalo, uma semana depois, na vitória que confirmaria o tetracampeonato, frente ao Guimarães.
Manifestações inequívocas de reconhecimento e carinho de um plantel reconhecido ao trabalho do ex-diretor jurídico.
«O Paulo é uma pessoa justa. Defende o Benfica até ao limite, mas sabe reconhecer se as reivindicações dos jogadores são justas. Consegue fazer o equilíbrio», recorda José Iribarne, empresário de Nico Gaitán, atualmente a jogar na China. «Sempre foi uma pessoa preocupada não apenas no capítulo profissional, mas também na vertente pessoal, por isso só tenho razões para dizer bem dele», conclui o empresário argentino.
O até há poucas semanas diretor jurídico do clube da Luz gera empatia com facilidade e isso é notório ali, no centro da cidade.
Paulo Gonçalves mudou-se há quatro anos para Santarém e é lá agora que procura recuperar a paz e a tranquilidade entretanto perdidas. Esteve no centro do furacão durante quase um ano. Percebe-se que está integrado na comunidade. Aqui não querem saber das notícias: o Paulo Casimiro de Jesus Leite Gonçalves, de seu nome completo é um deles.
Acabada a missa, entra no supermercado ali ao lado para comprar pão e regressar a casa. Seria difícil imaginar vida mais pacata que esta para quem foi um dos principais protagonistas das notícias desportivas dos últimos meses.
Por duas vezes pôs o lugar a disposição e foi a custo que Luís Filipe Vieira o viu partir. «Conheço poucas pessoas tão empenhadas e profissionais como o Paulo», recorda Nuno Gomes, que regressou à Luz ainda enquanto jogador, tornando-se depois mais um colega de Paulo Gonçalves. «Mesmo perante as maiores dificuldades não desiste e isso é uma qualidade. Independentemente da situação que vive é justo reconhecer tudo o que fez. Sou seu amigo», diz o eterno 21 da Luz.
Nas semanas anteriores à sua saída da SAD encarnada, Paulo foi o alvo de todos os debates televisivos nos intermináveis programas de futebol que enchem as grelhas dos canais de informação. Em muitos deles colocou-se em causa o seu benfiquismo, mesmo por algumas figuras, ditas de referência, do clube. «Um disparate», contesta João Gabriel, o antigo responsável de comunicação do Benfica, que recorda «um amigo e um benfiquista como qualquer sócio com 50 anos de casa». «É verdade que a sua origem foi outra, mas encontrou a luz a tempo, e para sempre», brinca, insinuando que as passagens de Paulo Gonçalves pelo FC Porto e Boavista são isso mesmo, casos passados.
A atestá-lo, os cães de casa com quem o ex-diretor jurídico sai em passeio pouco depois de chegar, Luisão, Trapattoni e Pizzi, um labrador, um cocker e um grand danois. Um treinador e dois jogadores campeões pelo Benfica, três cães com nomes do universo encarnado que o acompanham num passeio de vinte minutos fora da quinta.
Foi aqui que os inspetores da PJ chegaram em março passado para efetuar buscas e o constituir arguido. De lá para cá a sua vida mudou por completo. «As amizades não se negoceiam em função das circunstâncias e independentemente de tudo é meu amigo», faz questão de vincar João Gabriel.
O cenário hoje é outro, e de alguma forma surpreendente. A pequena quinta na Póvoa de Santarém, para onde a família decidiu mudar-se há quatro anos, tem uma área de jardim impecavelmente tratada. Ali há uma tranquilidade que não se consegue respirar em Lisboa e foi isso que os fez mudar e abandonar a zona da Expo. De repente, o homem de leis, especialista em direito desportivo, duro negociador – descrito assim por muitos dos que com ele lidaram – aparecia aos comandos de um pequeno trator, a cortar a relva. Como se tratasse de uma terapia de choque, ali estava Paulo Gonçalves a tratar do jardim. Se alguém testemunhasse aquela cena, e por um qualquer acaso não conhecesse a pessoa nem os contornos recentes da história por ele protagonizada, nunca imaginaria que aquele senhor, ali sentado em cima daquele trator, tinha sido até há poucos dias uma das pessoas mais influentes do Benfica e do futebol português.
Tornou-se cliente assíduo do ‘Chapa 7’, um restaurante ali próximo e onde mais facilmente se pode comer fora de horas. Apesar de estarmos no Ribatejo, o ‘Chapa 7’ é uma marisqueira e das boas, diz quem conhece. Carlos Esteves, o dono, diz que «acredita que o seu cliente vai superar esta fase menos boa». Reconhece que sente Paulo Gonçalves «mais abatido», mas acredita que o advogado «vai lutar até ao fim». «O Benfica vai sentir falta dele, isso tenho a certeza», remata. O proprietário também é presidente da Académica de Santarém, clube com muitos escalões de formação, e onde Paulo Gonçalves é visto com frequência a ver jogos dos pequenos ‘projetos’ de jogador.
Em Santarém, quem já se cruzou com ele, diz que é afável e nada arrogante. A dona Luísa, já bastante entrada na idade, habituada a vê-lo nas fotos e nas imagens de televisão, diz que pessoalmente «nem parece o mesmo». Quando lhe perguntamos se sabe de que é acusado, diz com ar desinteressado que «isso é para os tribunais». A sabedoria popular cá da terra separa o «homem das notícias» do habitante local que, por acaso, é «mais simpático que o que aparece na televisão».
FC Porto dois anos, Benfica para sempre
A adrenalina dos jogos, o frenesim do telefone, a litigância nas várias esferas do futebol português ou algumas das contratações por que foi responsável vão passar a ser apenas recordações para um dia escrever nas suas memórias. Nos próximos meses sentirá nostalgia desses tempos, provavelmente um vazio e a falta desses dias agitados vividos na Luz, mas agora é o tempo de preparar a defesa e resguardar-se da exposição pública.
Apercebe-se da nossa presença. Era difícil não o fazer. Pedimos-lhe para falar com ele. Recusa amavelmente, diz-nos que «não é o tempo de falar, que esse tempo chegará mais adiante». Está sereno, pelo menos é isso que deixa transparecer, diz perceber o nosso trabalho, mas que «gostava de poder ser um cidadão anónimo nos próximos meses». Não insistimos, percebemos que não vale a pena. Fomos à volta, falar com quem com ele trabalhou e quis colaborar connosco. As opiniões são quase todas unânimes quanto ao profissionalismo e lealdade do advogado, mas também em relação à importância que teve para o sucesso do clube na última década. Foi responsável por muitos capítulos da história recente do Benfica: alguns foram públicos, outros ficaram nos registos internos do clube.
Martin Montero, empresário de Cervi, recorda a chegada de Paulo Gonçalves à cidade de Rosário, no interior da Argentina. O Sporting já dava a contratação por fechada, mas o diretor jurídico do Benfica conseguiu reverter o negócio. «Chegou decidido, mostrava que tinha capacidade para negociar e, mais importante, percebia-se que queria de facto o jogador. E para mim e para o jogador isso foi decisivo. Inspirou-nos confiança e tivemos oportunidade de confirmar essa nossa impressão junto de Di María – também ele tinha jogado no Rosário Central – e por Luis Fernandez que ali jogava e passara pelo Benfica», conta Montero.
Com Ramirez foi pior, recorda um elemento da SAD. Paulo passou quase 15 dias no Brasil e, mesmo quando muitos já davam o negócio por perdido, não saiu de lá até trazer o jogador. A persistência é uma característica do advogado.
Luisão, o capitão que recentemente se despediu dos relvados, chegou ao Benfica antes de Paulo Gonçalves e saiu uma semana depois dele, não tem dúvidas: «O Paulo era um profissional cinco estrelas e creio que todos vão sentir a sua falta. Não faltava a um jogo. Espero que tudo se resolva a bem dele porque é uma pessoa que merece que a vida lhe sorria». Outra das pessoas que atesta a importância de Paulo Gonçalves no Benfica é Mário Paiva. O nome pode não dizer muito, mas é ‘só’ um dos advogados mais reconhecidos na área do direito desportivo em Portugal e que se cruzou com Paulo Gonçalves aquando da contratação daquela que é hoje talvez a maior joia do Benfica, João Félix. Mário Paiva recorda que «João Félix estava livre e o meu cliente, Pedro Cordeiro (agente), pediu uma reunião com Paulo Gonçalves. Nós considerávamos que o Benfica seria o clube ideal para o miúdo crescer e o Paulo fez força para o João Félix ficar, acreditou nas suas qualidades e, por isso, foi decisivo para ele assinar pelo Benfica».
Foram doze anos a representar o Benfica nos organismos nacionais, mas também fora de portas. Formou-se na Faculdade de Direito da Universidade Católica do Porto, não era um aluno excecional (teve média de 13 valores), mas a sua popularidade dava-lhe notoriedade entre os colegas, embora o tenha ‘condenado’ a cumprir o curso em seis anos, em vez dos cinco do plano académico. E será no Porto que iniciará o seu percurso profissional.
Sai da Faculdade em 1994 e entra para a sociedade de advogados Graça Moura, uma das entidades que colaboraram na constituição da SAD portista em 1997, projeto no qual se vê diretamente envolvido e que lhe permite posteriormente entrar no clube. Mas seria uma ligação de curta duração: o advogado era amigo de Alexandre Pinto da Costa (conheceram-se no liceu) e, quando este entra em conflito com o pai, as amizades do filho passaram a ser figuras mal vistas na SAD azul e branca. A saída é inevitável e concretiza-se em junho de 1999.
Foram só dois anos no FC Porto, mas a ‘guerra’ com Pinto da Costa duraria para sempre, primeiro no Boavista, onde foi diretor Geral entre 2000 e 2006, ganhando um título de campão nacional, no período mais áureo da história do clube e, depois, no Benfica, onde entra em dezembro de 2016.
O cabelo quase todo grisalho acentuou-se nos últimos meses. Inteligente, simples, perspicaz, Paulo Gonçalves foi ganhando o seu espaço com naturalidade, mesmo nos organismos internacionais em que participava. As suas qualidades profissionais levaram-no, em 2013, ao Legal Advisory Panel da European Club Association.