Acredito que muita gente ainda se lembre da Cambridge Analytica. Além de ter um nome que é fácil de recordar, a empresa dedicava-se à análise e gestão de dados e esteve no centro da polémica quando se falou em manipulação de dados e uso indevido de informação para influenciar os resultados das eleições para a presidência dos Estados Unidos ou o referendo sobre o Brexit. Em março de 2018 a Cambridge Analytica e o Facebook estavam nas bocas do mundo. A primeira já pediu insolvência, a rede social mantém o seu estatuto de colosso da economia mundial.
Enquanto utilizador do Facebook assumi que, após um escândalo desta dimensão, com a Europa a passar um regulamento de proteção de dados pessoais, estava mais protegido. Não digo que me sentisse completamente descansado, mas estava menos preocupado com a possibilidade dos meus dados estarem a ser utilizados sem o meu conhecimento, para finalidades que não autorizei. Mas devia. Em primeiro lugar têm de ser as pessoas a tomar conta dos seus dados e só depois confiar na segurança que os outros, a quem os cedemos, oferecem.
É curioso que ainda não tenhamos despertado para a importância e real valor dos dados, numa era em que as empresas dependem cada vez mais deles para chegar aos seus mercados e para criarem diferenciação e poderem continuar a sua evolução.
Mas quando falamos de dados nem tudo se resume aos dados pessoais. Ou seja, nem toda a utilização abusiva e prejudicial advém da utilização indevida que alguém voluntariamente forneceu, independentemente do seu nível de informação. Os dados que as plataformas fornecem sobre a sua atividade são um destes exemplos.
Imaginemos que o Facebook informa que um determinado vídeo obteve um determinado número de visualizações, um bom número. O cenário cada vez mais improvável é que ninguém reaja a isso, muita gente viu é porque gostaram e avancemos para a próxima publicação. E que esta tenha, pelo menos, o sucesso da anterior – e logo aqui estamos a usar o número de visualizações para estabelecer uma comparação.
Contrariamente ao que sucede com outras plataformas, auditadas e sujeitas a regulação, o Facebook e o Google são, não só os donos das plataformas e de boa parte dos serviços agregados, mas também de praticamente tudo o que se sabe sobre a sua utilização. Aceitar esta condição até pode ser uma inevitabilidade, mas não deve ser ponto assente sem um mínimo de discussão: quantas decisões são tomadas com base nas informações que as plataformas prestam sobre a sua performance? Voltando ao caso do vídeo com um número de visualizações elevado, dizem as boas práticas que devemos tentar perceber porque é que tantas pessoas viram, que ingredientes possui para conseguir uma melhor performance, sejam eles de natureza conceptual ou contextual. E, na medida do possível, tentar incorporar o que de melhor se destaca numa ação subsequente, tentando assim repetir e superar o sucesso alcançado.
O Facebook enfrenta acusações por mentir numa métrica importante, a duração média da visualização de vídeo na sua plataforma. Sucintamente, só contabilizavam para este número visualizações com três ou mais segundos, o que inflacionou qualquer coisa entre 60% e 80% o tempo médio de visualização. Num vídeo de um automóvel pode muito bem ser a diferença entre perceber, ou não, qual o modelo de carro em causa. Quando confrontado com a acusação, o Facebook terá demorado meses a informar os anunciantes do erro na fórmula de cálculo.
O tema das métricas, da sua autenticidade e validade, é crítico para o sucesso de qualquer negócio digital. A quantidade e qualidade das métricas, começando pela simples contagem do número de utilizadores, tem de ser idónea. Apesar das discrepâncias que existem quase sempre entre números consoante a fonte que utilizamos, quando uma plataforma tem uma escala global, biliões de utilizadores e uma parte muito significativa do investimento publicitário mundial, não há margem para erros. Pelo menos para erros que a comprometem junto da sua principal fonte de receita e que, do ponto de vista reputacional, podem causar danos irreversíveis.
Nunca se falou tanto de transparência como hoje, queremos saber tudo, exatamente como acontece e em tempo real. Sem filtros ou intermediários. Depois cada um faz a sua análise e aí valoriza o que entende. Estranho é que o Facebook sabe isto e compreende o seu impacto melhor do que ninguém. E mesmo, apesar de alguma abertura a auditores independentes, ainda está longe de uma política de total transparência. Será que a plataforma não tem uma performance assim tão boa? É a dúvida que se impõe.
Uma coisa é certa, ainda estamos longe de perceber a dimensão do seu real alcance, apesar de ser uma das plataformas favoritas para a maior parte das marcas comunicar com o seu público. Quanto menos disserem melhor? Talvez sim, talvez não. Mas duvido muito que o próximo grande concorrente do Facebook não tenha, pelo menos na questão da transparência dos dados, uma política substancialmente diferente.
*Responsável Planeamento Estratégico do Grupo Havas Media