O fim da era Merkel

A chanceler alemã anunciou que não se recanditatará à liderança da CDU nem a qualquer cargo político. Mais que uma escolha de rostos, a escolha do sucessor é uma questão de política: a CDU deve manter-se ao centro ou virar à direita?

A era de Angela Merkel à frente dos destinos da Alemanha e da Europa, que dura desde 2005, está em vias de terminar. Será possível uma Europa sem Merkel quando muros são erigidos e o ódio contra os refugiados se tem propagado? «Claro, uma Europa sem Angela Merkel é possível», disse Janis Emmanouilidis, diretor do European Policy Center. Merkel é vista como moderada num continente em que a extrema-direita tem cavalgado o medo dos refugiados e do terrorismo. A futura disputa pela liderança é também sobre o futuro da Europa, sobretudo face à imigração.

Tudo começou quando a imprensa alemã avançou que a líder não iria disputar a liderança da CDU, obrigando-a a confirmá-lo em conferência de imprensa logo na segunda-feira. «É tempo de abrir um novo capítulo», disse a chanceler, acrescentando querer cumprir o mandato de líder do Governo até ao fim e que não irá concorrer a «nenhum cargo político depois de o terminar». Se a sua saída poderá levar a uma acérrima luta interna, Merkel não a vê com maus olhos: «Esta fase está cheia de possibilidades». Em causa não está apenas a mudança de rosto, mas a direção que a CDU deverá tomar: manter-se no centro ou caminhar para a direita?

Há meses que a posição de Merkel se vinha desgastando. O primeiro sinal surgiu quando Horst Seehofer, líder da CSU, partido-irmão da CDU na Baviera e ministro do Interior, começou a pressionar a chanceler para endurecer as políticas de migração do governo, com o reforço do controlo das fronteiras e o acelerar das deportações a serem as principais medidas. Merkel susteve golpes, mas acabou por ceder: «centros de trânsito» serão construídos na fronteira com a Áustria.

Quando estava ainda a recompor-se do conflito interno, deram-se em Chemnitz, no início de setembro, as «caçadas contra os imigrantes» por elementos da extrema-direita, como Merkel as classificou. Entre a condenação geral, o diretor do Gabinete Federal para a Proteção de Constituição, Hans-Georg Maaße, desvalorizou os acontecimentos. A chanceler quis afastá-lo do cargo, mas Seehofer fez-lhe frente e apoiou o diretor. Maaße foi destacado para outro posto no ministério do Interior. A transferência foi encarada como promoção, fragilizando ainda mais a posição de Merkel.

E, no final de setembro, o então líder do grupo parlamentar democrata-cristão e próximo de Merkel, Volker Kauder, não conseguiu renovar o mandato para o cargo que ocupava há 13 anos, sucedendo-lhe Ralph Brinkhaus, crítico da chanceler. A derrota indireta reforçou a disputa silenciosa pelo poder, com muitos a defenderem a mudança da liderança para se travar a AfD. «A derrota de Kauder foi uma mudança importante para o grupo parlamentar. As bases do partido estão descontentes por causa das constantes brigas em Berlim», disse o eurodeputado da CDU Sven Schulze, referindo que uma recandidatura de Merkel «apenas prejudicaria» o partido.

A coligação – CDU, CSU e SPD – ainda não tinha ultrapassado as divergências quando foram conhecidos os resultados das regionais na Baviera e em Hesse. Em ambas a CSU e CDU, respetivamente, tiveram resultados bastante aquém do esperado e encarados como testes à política de Berlim. A queda da CDU em Hesse foi o último golpe contra Merkel.

Os problemas domésticos tomaram conta da agenda da Chanceler, obrigando-a a adiar decisões sobre o Brexit, a imigração e a reforma da zona euro, temas em que o peso da Alemanha faz toda a diferença. Uma viragem da CDU à direita terá impacto nestes assuntos, sobretudo na imigração.

Nos 18 anos em que esteve à frente da CDU, Merkel virou tanto o partido ao centro, escreve o Der Spiegel, que dificilmente se distingue dos seus adversários, principalmente do SPD. Todavia, os governos que formou com os sociais-democratas conseguiram retirar-lhes força eleitoral, tornando a CDU na força hegemónica no xadrez político alemão. O SPD nunca esteve tão fraco eleitoralmente como está hoje e, ao integrar o Governo alemão, tornou a AfD líder da oposição.

A crise do euro foi dada como ultrapassada, mas uma outra bateu à porta: a dos refugiados. Em 2015, a Chanceler avançou com a política de portas abertas para quem fugia da guerra por terra e por mar. Milhares foram recebidos e alojados no país, mas a AfD usou a narrativa de a Alemanha ser vítima de uma invasão muçulmana. Conseguiu furar no sistema partidário alemão, conquistando eleitorado anteriormente afeto à CDU, SPD e até Die Linke. 

Se Merkel deixará de ser líder do partido, continuará a ser a do governo, o que motiva receios sobre a futura relação entre o poder executivo e a CDU, principalmente se ganhar um candidato que queira virar o partido para a direita, caso em que a sua agenda europeia poderia ficar seriamente condicionada. O presidente do Bundestag e ex-ministro das Finanças no anterior governo alemão, Wolfgang Schäuble, deixou avisos a Merkel: «Uma vez eleita chanceler, apenas pode ser sair sem o seu próprio consentimento se houver uma maioria no parlamento que escolha outro chanceler». E acrecentou: «No meu partido concordamos que faremos tudo o que for possível para evitar a impressão de que é um pato manco». Schäuble é um dos barões da CDU e um dos mais prestigiados a defender a ideia de as políticas de imigração de Merkel terem aberto a porta ao AfD.

A chanceler sabia que anos e anos de governação desgastam qualquer liderança e, para o superar, começou a preparar uma sucessora para manter a sua linha política, ao escolher Annegret Kramp-Karrenbauer para secretária-geral do partido. Mas há quem se veja com possibilidades de derrotar a protegida da chanceler. Vai correr contra Friedrich Merz, de 62 anos, e Jens Spahn, de 38 anos e atual ministro da Saúde, que entendem que Merkel levou a CDU para uma orientação política demasiado centrista e é preciso fletir para a direita.