Em tempos pré-internet Enéas Carneiro conseguiu tornar-se ‘viral’ com poucos segundos de tempo de antena ao terminar todas as suas intervenções de campanha com a frase “meu nome é Enéas”. Criou um partido ultranacionalista que era todo um programa político desde o nome – o Partido de Reedificação da Ordem Nacional (Prona) -, candidatou-se por três vezes à Presidência da República e chegou a ficar em terceiro em 1994, com 4,6 milhões de votos. Eleito deputado federal em 2002 (com um valor recorde de 1,57 milhões de votos que foi ultrapassado agora por Eduardo Bolsonaro), ainda chegou a ponderar uma quarta candidatura à Presidência antes de desistir por causa dos problemas de saúde que acabariam por resultar na sua morte em 2007.
Jair Messias Bolsonaro, Presidente eleito do Brasil na segunda volta das eleições do passado domingo, é um admirador confesso de Enéas Carneiro. O ano passado, ele e o filho Eduardo apresentaram uma proposta na Câmara dos Deputados para incluir o médico cardiologista no Livro dos Heróis e Heróinas da Pátria, onde constam apenas 41 nomes, de Tiradentes a Getúlio Vargas, passando por Santos Dumont e Zumbi dos Palmares: «Seu valoroso nacionalismo e sua oposição ao comunismo o qualificam como herói da pátria», dizia o projeto de lei que acabaria chumbado como todos os projetos de lei do deputado ao longo da sua carreira no Congresso (onde está desde 1990). O único que passou, apresentado em 1996, foi aprovado em 2001 e prolongava benefícios fiscais para o setor da informática e automatização. Um dos seus projetos mais polémicos, o da castração química de violadores, apresentado em 2013, está a aguardar ainda hoje parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.
A castração química é uma das medidas incluídas no Programa de Governo de Bolsonaro, como salienta uma página de Facebook de apoio ao deputado do PSL intitulada ‘Bolsonaro vai vingar Enéas Carneiro’. Sinal de que o Mito, como lhe chamam muitos apoiantes, ou Messias, que é o segundo nome e apropriado para quem é visto como salvador da pátria, é olhado como seguidor dos passos do médico que chamava às Forças Armadas «o braço armado do povo».
O Prona, criado por Enéas, desapareceu em 2006, quando se fundiu com o Partido Liberal para dar lugar ao Partido da República. Bolsonaro chegou a pensar recuperá-lo para a sua candidatura à presidência, quando rompeu com o PSC e o Partido Ecológico Nacional se disponibilizou a mudar de nome.
Acabou por não acontecer, porque no meio dessa corte política, quase semelhante a defeso futebolístico, Bolsonaro acertou com o PSL, com o qual foi a votos. Mas o filho Eduardo chegou a gravar um vídeo no ano passado a explicar a ideia, falando no apelo das pessoas a que haja «um partido de direita, com ideias conservadoras, contra a legalização das drogas, contra a ideologia de género, a favor de uma educação séria, com regras, dentro das nossas escolas, enfim, as bandeiras de ordem já levantadas pelo falecido Dr. Enéas». Vídeo esse onde o agora Presidente eleito garante que foi «um privilégio ter sido deputado federal com o Dr. Enéas Carneiro».
Ao contrário de Enéas, que veio do socialismo científico de Engels na juventude e foi admirador da União Soviética antes de se tornar nacionalista, anticomunista e contrário ao neoliberalismo, Bolsonaro sempre andou pela extrema-direita. E se ambos devem os seus estudos e a sua formação aos militares (Enéas nasceu pobre no pobre estado do Acre, começou a trabalhar aos nove anos quando o pai morreu e foi o exército que lhe permitiu ser médico), a passagem pela instituição foi mais brilhante para um que para outro. Enquanto um escreveu uma obra de referência O Electrocardiograma, a quem chegaram a chamar a «Bíblia do Enéas», o outro chegou a capitão, patente com a qual entrou na reserva aos 33 anos, depois de ter sido julgado por planear uma série de explosões em unidades militares do Rio de Janeiro para mostrar a insatisfação dos oficiais com o reajuste salarial que iria acontecer. A ideia era colocar pressão sobre o poder político, dois anos depois do fim da ditadura militar. «Só a explosão de algumas espoletas», brincava então Bolsonaro em declarações à repórter da Veja, explicando sem constrangimento como se preparava uma bomba-relógio. As declarações valeram a Bolsonaro duas semanas na prisão, porque a revista não respeitou o sigilo das fontes por serem afirmações graves que podiam valer a prisão se fossem caladas. Analisado o caso pela justiça militar, Bolsonaro acabaria por ser condenado por três coronéis que formavam o coletivo de juízes do denominado Conselho de Justificação. No entanto, recorreu e o Supremo Tribunal Militar acabou por absolvê-lo. Mas esse foi o fim da carreira militar do capitão, que passou à reserva a tempo de se candidatar a vereador do Rio de Janeiro, iniciando um percurso político de 30 anos que o fez chegar agora ao Palácio do Planalto, como o 38.º Presidente do Brasil.
‘Excessiva ambição’
É curioso que uma ‘ficha de informações’ do exército – da Diretoria de Cadastro e Avaliação do Ministério da Defesa do Brasil -, a que a Folha de São Paulo teve acesso, dava conta, em 1983, era Bolsonaro um tenente de 28 anos, que este tinha «demonstrações de excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente».
O superior de Bolsonaro, o coronel Carlos Alfredo Pellegrino, afirmou aos três coronéis do conselho que o julgou que Bolsonaro tinha a «grande aspiração em poder desfrutar das comodidades que uma fortuna pudesse proporcionar». O coronel Pellegrino acrescentou ainda na audiência que o capitão «tinha permanentemente a intenção de liderar os oficiais subalternos, no que foi sempre repelido, tanto em razão do tratamento agressivo dispensado a seus camaradas, como pela falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos».
Uma mancha no passado que não afetou as ambições do capitão. Pendurada a farda rapidamente se envolveu na política, ganhando espaço numa fatia do eleitorado conservador do Rio de Janeiro, primeiro, ligado mais aos militares e à polícia, alargando-se depois aos evangélicos. Vereador do Rio de Janeiro pelo Partido Democrata Cristão (a primeira de várias siglas que já representou) durante pouco mais de um ano, candidatou-se a um cargo em Brasília pelo mesmo partido em 1990 e desde que tomou posse em janeiro de 1991 nunca mais deixou a Câmara de Deputados, tendo sido sucessivamente reeleito. A última vez, em 2014, com 464 mil votos, foi o mais votado no estado.
Apesar da veterania, da sucessão de mandatos cada vez mais populares entre os eleitores, a verdade é que dentro do Congresso nunca teve papel relevante, nunca foi reconhecido pelos seus pares como líder, negociador, como referência, sempre integrou aquilo a que se costuma chamar na gíria como o ‘baixo clero’. Algo que em tempos de ódio aos políticos, de escândalos de corrupção atrás de escândalos de corrupção, da Operação Lava Jato, acabou por beneficiar Bolsonaro, porque esse marginalismo o manteve afastado dos holofotes do ódio ao político de Brasília. O seu nome não surge envolvido em escândalos de corrupção e o seu low profile permitiu-lhe escapar à baixa popularidade das figuras mais importantes do Congresso, aqueles que poderiam ser vistos como mais capazes para um dia chegar à Presidência.
Aos 63 anos, mudando muito pouco do seu estilo truculento, Jair Messias Bolsonaro beneficiou da mudança do alinhamento dos planetas para ser catapultado para a idolatria. Como se a lua tivesse rodado e o que antes estava no lado oculto agora estivesse iluminado e um político de quase três décadas fosse afinal novo.
Novo sem ser anjo, que isso, sabe, nunca convenceria ninguém. E mesmo garantindo que nunca trocará cargos por favores, passando a campanha eleitoral a insistir que no seu Governo não haverá «toma-lá-dá-cá», Bolsonaro admite que na política exige-se alguma margem de tolerância: «Se eu for escolher só os puros, não vou a lugar nenhum», dizia em 2016, no perfil que a revista Piauí lhe dedicou. «É que nem procurar virgem em área de baixo meretrício. Na Câmara não tem santo. Se aparecer um, botam uma cruz em cima dele. Até eu tenho processo no Supremo», rematava.
‘Sempre foi um líder’
Nascido em Glicério, no estado de São Paulo, a 21 de março de 1955, é filho de descendentes de italianos (Perci Geraldo Bolsonaro e Olinda Bonturi). Frequentou a Escola Preparatória de Cadetes do Exército, em Campinas, entrando depois para a Academia Militar das Agulhas Negras, em Resendes, no estado do Rio de Janeiro. Fez o curso da Brigada de Paraquedismo do Rio de Janeiro, antes de se licenciar em Educação Física no Exército.
O gosto pelo exército chegou-lhe aos 15 anos, lá na terra, no interior de São Paulo, quando terá ajudado os militares que perseguiam Carlos Lamarca, um dos líderes da luta armada dos anos 1970 no Brasil. O então «moleque sabido» (puto esperto, dir-se-ia deste lado do Atlântico) teria dado informação essencial para capturar o capitão que desertara para se tornar guerrilheiro. A história, contada pelo próprio Bolsonaro em entrevista à TV Cultura, omite o facto de Lamarca ter conseguido fugir do cerco que durou 41 dias, morrendo um ano e quatro meses mais tarde, na Baía, fuzilado em Ipupiara.
Em Eldorado, no interior do São Paulo, onde Bolsonaro cresceu, ainda moram vários familiares. A irmã Maria Denise conta ao site G1 que «Jair sempre foi um líder. Em todos os jogos, o campinho era ele quem ajudava a montar, sempre ele, mas não era ele que escolhia isso, caía para ele e vinha dos próprios colegas.» Pequena cidade do Vale do Ribeira, vale que se estende do sul do estado de São Paulo para o leste do Paraná e onde se encontra mais de 60% da Mata Atlântica, Bolsonaro ganhou a Fernando Haddad quase com a mesma diferença com que venceu a eleição a nível nacional, 54,44% contra 45,56%. E nas eleições para a prefeitura, em 2016, nem sequer houve candidato do PT na cidade.
Os resultados das eleições mostram que Bolsonaro ganhou sobretudo nas cidades maiores e mais ricas, perdendo para Haddad nos municípios de menor índice de desenvolvimento humano. E Eldorado, apesar do nome, está mais próxima da pirite que do ouro genuíno: segundo maior índice de mortalidade infantil, 40% de famílias com rendimentos abaixo de dois salários mínimos.
Diz a revista Época, que fez reportagem por lá, que a cidade parece estagnada no tempo e terá poucas diferenças do município que era quando ali se instalou Perci Geraldo com os seis filhos (um sétimo morreu depois de nascer prematuro), vindo de Glicério, para exercer a profissão de dentista-prático (odontólogo sem curso), e de quando Jair Bolsonaro a deixou aos 18 anos para ir para a escola de cadetes. O presidente eleito conta, no perfil da Piauí, que «era muito bom a esculpir dentadura».
«A princípio, sair de onde ele saiu, da vivência da gente, de como foram os momentos difíceis na infância, tudo bem simples, e conquistar o que ele conquistou, eu já achava ele um vencedor», conta emocionada a irmã Vânia, citada pelo G1.
A vida militar levou-o para o Rio de Janeiro e cortou algumas das amarras com o interior do São Paulo, mas não com o estado, onde o filho Eduardo, de 34 anos, foi agora reeleito deputado com 1,81 milhões de votos. Jair tem uma relação muito próxima com os três filhos do primeiro casamento (o presidente eleito tem mais um filho do segundo casamento, Renan, e uma filha do terceiro, Laura), que tiveram um papel importante na campanha eleitoral. Flávio, o mais velho, de 37 anos, foi eleito para o Senado. Carlos, de 35 anos, ocupa um lugar de vereador em São Paulo, onde o pai começou a carreira política.
Eduardo, ex-polícia federal, foi incumbido da tarefa de conversar com Steve Bannon, o homem que ajudou Donald Trump a chegar à Casa Branca e guru da alt-right, em Nova Iorque. Nesse dia 4 de agosto, o deputado colocou nas redes sociais uma foto com Bannon, onde falava da «ótima conversa» com alguém que «partilha a mesma visão do mundo» e um «entusiasta da campanha de Bolsonaro».
«Ele está concorrendo com a corrupção e a incompetência desta classe política permanente, que levou uma nação com tantos recursos naturais a um ponto de crescimento lento ou estagnado, sem aumento dos salários, com pobreza. E agora a estrutura social está desmoronando», afirmou Bannon à BBC Brasil sobre Bolsonaro. O estratega da nova direita garantia na entrevista que vinha observando o político brasileiro «há anos» e sublinhava que «Bolsonaro, os seus filhos e consultores são sofisticados».
Uma parte substancial do Brasil teria dificuldade em associar Bolsonaro à palavra sofisticado. Aliás, nem entre os seus maiores apoiantes seria o primeiro, o terceiro ou o décimo adjetivo que lhe atribuiriam. Nem mesmo o próprio Bolsonaro, o homem que ameaça dar «tiro na petralhada» (ladrões), que popularizou o gesto repetido por crianças e adultos de posar para a foto com as mãos a formarem pistolas, que acusa a imprensa de ser «imbecil» e ameaça meter a esquerda na cadeia na sua cruzada anticomunista, que faz lembrar outros tempos, que elogia a ditadura e o seu grande torturador, que cunhou a frase «Brasil acima de tudo, Deus acima de todos», seria capaz de se clamar sofisticado. Antes pelo contrário, vangloria-se de ser genuíno e nunca ter mudado para agradar aos eleitores: «Eu tenho o direito de falar a besteira que bem entender. Quem tem que decidir se eu falei besteira é o eleitor e, dessa forma, não votar mais em mim».