Na mesma semana em que a imprensa noticiou a ‘descoberta do século’ – uma nau da Carreira da Índia, ainda com parte do seu recheio, afundada a 12 metros de profundidade perto do ilhéu do Bugio – mergulhadores não autorizados visitaram o local e transportaram para terra despojos do naufrágio. «Logo após o anúncio a 24 de setembro houve mergulhos arqueológicos não autorizados, com recolha de objetos», garante ao SOL Jorge Freire, arqueólogo subaquático e diretor científico do Projeto Municipal da Carta Arqueológica Subaquática de Cascais. Entre os artefactos retirados encontrar-se-iam «uma estatueta de marfim de temática religiosa, pelouros, ou seja, balas de canhão em bronze, e um almofariz de pedra». Ainda assim, o responsável pelos trabalhos de investigação do sítio prefere jogar pelo seguro e fazer uma ressalva: «Não é absolutamente certo se esses objetos saíram dali», como foi afirmado pelos mergulhadores, ou de outro naufrágio.
O que é certo é que após a sua recolha, os objetos foram levados para a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (Universidade Nova), a qual, «depois de informada, pediu a sua entrega nas instalações da Direção-geral do Património Cultural» (DGPC), que detém a tutela de todo o património arqueológico subaquático encontrado nas nossas águas. De uma coisa Jorge Freire não tem dúvidas: «Depois do anúncio desta descoberta o sítio foi prevaricado».
As declarações sucedem-se a uma notícia publicada pelo Diário de Notícias no passado domingo que questionava: «Afinal quem descobriu a nau da Índia do Tejo?». Segundo o artigo, os destroços da nau da Carreira da Índia poderão ter sido descobertos não em setembro de 2018 pela equipa de Jorge Freire, mas um ano antes por dois mariscadores de Setúbal, Pedro Patacas e Sandro Pinto. A tese é defendida por Alexandre Monteiro, um antigo professor de Biologia do ensino secundário que, depois de se licenciar e doutorar em Arqueologia, começou a dedicar-se à descoberta de navios afundados e a quem os mariscadores terão comunicado a sua descoberta.
Pedro Patacas, um antigo oficial da Marinha de Guerra, disse na altura ao DN que quando viu na televisão a notícia da descoberta da nau da Índia as imagens lhe pareceram familiares, o que o levou a pensar que talvez a embarcações fosse a mesma com que se tinha deparado num mergulho em outubro de 2017. Face a isso, decidiu «em conjunto com o Sandro ir verificar o achado. Reconheci logo nas imagens o local e que a história estava mal contada». Quanto à recolha dos objetos, justificou: «Recuperamos alguns artefactos para os preservarmos e para os salvaguardar de serem perdidos ou apanhados numa rede de pesca ou até mesmo por alguém… e ainda dizem que roubamos».
Jorge Freire tem um entendimento diferente: «A cada ano tenho de fazer um pedido de autorização para trabalhos arqueológicos que nada mais é que um licenciamento que me dá uma série de deveres e direitos sobre o sítio em que trabalho. No caso da nau, tenho autorização para trabalhar no sítio, não tenho posse comercial, que em Portugal é proibida, mas tenho o direito científico, e esse direito foi violado. O que temos aqui», continua, «é o não cumprimento da legislação em vigor e um desafio à Autoridade Marítima e à autoridade nacional».
Escavações só para o ano
O anúncio da descoberta de uma nau da Carreira da Índia em setembro de 2018 entusiasmou a comunidade científica mas também os leigos, sendo objeto de notícia em meios internacionais, da CNN ao The Guardian. Contactado na altura pelo SOL, o diretor científico do projeto explicou o que viu quando mergulhou no local: «O que está no sítio são canhões em bronze com o escudo de Portugal e a esfera armilar, âncoras, temos também grãos de pimenta que andam ali à deriva, cerâmica [chinesa] da época Wanli, do século XVI-XVII, e mais alguns elementos que ainda não conseguimos identificar. A estrutura em madeira da própria nau [datada do período entre 1575 e 1625] também é visível».
As escavações, no entender de Jorge Freire, ajudarão a desvendar o quotidiano a bordo de uma nau na transição do século XVI para o XVII. «Uma nau era como uma sociedade em ponto pequeno -além dos marinheiros, levava elementos da nobreza e do clero – que conviva dentro daquele espaço durante meses ou mesmo anos». De facto, a chamada Rota do Cabo, que os portugueses inauguraram, era a mais longa daquele tempo. Como afirmou em entrevista ao SOL o historiador João Paulo Oliveira e Costa, «é uma navegação por dois oceanos, num onde há ventos Alísios, no outro onde há ventos de monção, a meio do Oceano Atlântico há uma zona de calmaria difícil de ultrapassar porque chega a não haver vento». As oscilações de temperatura também eram enormes: «Começa no inverno, passa-se pelo calor tórrido dos trópicos do Equador, para apanhar o inverno austral outra vez. É uma viagem muito complexa do ponto de vista náutico, muito difícil de suportar do ponto de vista físico, muito longa – naquele tempo não havia outra viagem tão longa».
E foi precisamente no final de todo esse longuíssimo percurso, mas no sentido do regresso, que a nau em causa se afundou.
Quanto ao processo de escavação do local, não está para já, esclarece Jorge Freire. «Depois do [furacão] Leslie passámos por uma fase de monitorização para ver como o sítio se comportava e para preparar uma intervenção maior no próximo ano, de escavação e recolha de objetos. A recolha de objetos em sítios arqueológicos tem de ser planeada, programada e submetida à autorização da DGPC, o ciclo é sempre este».
O responsável pelo projeto de investigação mergulhou no local há uma semana. Notou diferenças em relação ao primeiro mergulho, que ocorreu a 3 de setembro, mas não pode garantir que decorram de visitas não autorizadas. «Junto à estrutura havia uma zona que parecia que tinha sido escavada, mas como o sítio está num processo de sedimentação, porque está a assorear outra vez, pode errado dizer que seja visível a zona em que tenha sido violada».
Segurança reforçada
A responsabilidade pela segurança dos vestígios encontra-se a cargo da Autoridade Marítima, mais concretamente do capitão do Porto de Lisboa. Questionado sobre se pode ter havido outros episódios idênticos dos quais não tenha tomado conhecimento, Jorge Freire comenta que «é possível que tenha acontecido ou que venha a acontecer». Ainda assim, na sequência da visita não autorizada dos mariscadores, a Autoridade Marítima «reforçou a vigilância no sítio e interditou toda a zona à pesca submarina, à pesca em geral e ao fundeamento» de navios», explica o arqueólogo. «Só a navegação é permitida». Quanto à responsabilidade da capitania, afirma: «É bom que fique registado que o mar é grande, os efetivos da Armada são poucos para tanta área, portanto é natural que alguma coisa escape».
O diretor científico caracteriza ainda as pretensões dos mariscadores que alegam ter encontrado os destroços da nau um ano antes do anúncio pela Câmara de Cascais como «falsas notícias para menorizar a grande descoberta que foi feita» e que «põem em causa a salvaguarda dos bens culturais».