À distância, Bruxelas olha para o caos vivido em Londres e não dá margem de manobra. No epicentro do furacão político estão o acordo técnico para a saída do Reino Unido da União Europeia e a fragilidade do Governo da primeira-ministra britânica, Theresa May. Dois anos de negociações imergiram Downing Street em várias crises, mas nenhuma como a que agora vive, uma das mais profundas na história da democracia-liberal britânica. May aposta todo o seu capital político num documento em que poucos acreditam e menos votarão a favor. Mudança de líder do governo, segundo referendo, eleições antecipadas, adiamento da saída, retirada do acordo, saída sem acordo, são cenários que não podem ser afastados como desfecho para o impasse.
Na quarta-feira, May conseguiu que o conselho de ministros aprovasse o documento, uma pequena vitória que apenas antecedeu um cataclismo político: a demissão de seis membros do Governo no dia seguinte. O primeiro a fazê-lo foi Dominic Raab, o ministro para a Saída da UE e apenas há seis meses no cargo. Esther McVey, ministra do Trabalho e das Pensões, e Shailesh Vara, secretário de Estado para o Brexit, e os deputados Ranil Jayawardena e Anne-Marie Trevelyan, nomeados para fazer a ligação entre o Governo e o parlamento, seguiram-lhe os passos.
Com o objetivo de fortalecer o seu Governo, May nomeou ontem Stephen Barclay, até agora ministro da Saúde e um dos defensores mais acérrimos do plano, para o antigo cargo de Raab, e Kwasi Kwarteng para ministro-adjunto do Brexit. Já Amber Rudd ocupará o Ministério do Trabalho e Pensões e John Penrose para o cargo de secretário de Estado da Irlanda do Norte. Stephen Hammond substituirá Barclay à frente da Saúde.
A primeira-ministra ainda recuperava das baixas nas suas fileiras quando entrou em Westminster para apresentar e explicar o acordo aos deputados. Foi questionada, criticada e a sua liderança colocada em causa durante três horas por membros do seu próprio partido, aliados de coligação e deputados da oposição.
May defendeu com unhas e dentes o acordo, desafiando os deputados e apelando à unidade nacional para um Brexit bem sucedido, mas poucos a ouviram. Enquanto discursava, membros das suas próprias fileiras movimentavam-se pelos corredores, entre os quais o líder da fação conservadora pró-Brexit Jacob Rees-Mogg, para a retirarem da liderança do Partido Conservador. Rees-Mogg entregou uma carta a Graham Brady, presidente do poderoso Comité 1922, espécie de gabinete de apoio à liderança conservadora, a pedir uma moção de confiança interna. Ontem, mais cartas, ainda que insuficientes, chegaram às mãos de Brady – são precisas 48 para convocar a votação. A imprensa britânica chamou-lhe golpe, mas o deputado conservador foi taxativo ao descartar esse termo, dizendo que «um golpe é quando se usam procedimentos errados». «Isto não é o Brexit. É um falhanço do Governo», explicou, não deixando de reafirmar a necessidade de «mudar de líder». No espetro político oposto, Jon Trickett, ministro trabalhista sombra para o Brexit, não foi leve nas palavras: «O Governo está a desmoronar-se à nossa frente e, pela segunda vez, o ministro do Brexit recusou apoiar o plano da primeira-ministra».
Sob enorme pressão, May garantiu, em conferência de imprensa em Downing Street, ir lutar pelo acordo «com todas as forças». Uns chamaram-lhe coragem, outros suicídio político. E, entre novos desafios e apelos, a primeira-ministra argumentou que o documento «cumpre as prioridades do povo britânico» e recusou qualquer hipótese de um segundo referendo: «No que me diz respeito, não haverá um segundo referendo». «Se vou para a frente com isto? Vou», afirmou em tom desafiado, passando de seguida as responsabilidades por um eventual falhanço do Brexit aos deputados que se recusem a votar favoravelmente.
O acordo dificilmente passará no Parlamento e o próprio parceiro de coligação no Governo, o Partido Unionista Democrático norte-irlandês, já anunciou que não apoiará o acordo. Segundo uma simulação do Guardian, apenas 224 deputados apoiam a primeira-ministra, quando a maioria se consegue com 320 – em 639. May não está em minoria apenas no Parlamento, também entre os britânicos, pois, de acordo com uma sondagem do YouGov de quinta-feira, apenas 19% apoiam o acordo, enquanto 42% se opõem. Outra sondagem, esta da Skydata, diz que 54% dos britânicos querem ficar na UE contra 32% que optam pela saída sem acordo. Apenas 14% apoiam o acordo do Governo.
Os críticos dizem que o documento é um não Brexit encapotado, uma traição ao referendo de 2016. Nas 585 páginas do documento estipula-se que o Reino Unido se manterá no mercado comum com as regras europeias por um período de transição de 21 meses, podendo este ser indefinidamente prolongado «até 31 de dezembro de 20XX» (em última instância dá para prolongar este período até 2099), e numa união aduaneira temporária com a UE até nova solução ser encontrada. Londres ficará assim impedida de fazer acordos comerciais com outros países – situação intolerável para os apoiantes do Brexit. Por sua vez, a fronteira da Irlanda do Norte, desde sempre um dos temas mais sensíveis, terá um tratamento aduaneiro diferenciado com «alinhamento total» com as regras europeias. Em suma, o Reino Unido sairá da UE, mas permanecerá sujeito às suas regras e perderá o poder de decisão que antes detinha em Bruxelas.
«São termos deveras predatórios propostos pela UE que sinto serem uma ameaça à integridade do Reino Unido», criticou o antigo ministro britânico para o Brexit que se demitiu em desacordo com May, David Davis, em declarações à Sky News. Já Keir Starmer, correspondente europeu da BBC, caracterizou o acordo como um «falhanço miserável das negociações». Na cimeira de Salzburgo, em setembro, na Áustria, os líderes europeus recusaram o plano, deixando May sem alternativa.
Enquanto Westminster vive um impasse, os líderes dos 27 e Bruxelas dão sinais de que ou o acordo é aprovado na cimeira europeia de 25 de novembro ou haverá Brexit sem acordo. A chanceler alemã, Angela Merkel, garantiu que «está fora de questão» reabrir as negociações; o primeiro-ministro francês, Edouard Philippe, garantiu que a «incerteza» em Londres não é uma emergência para Bruxelas e o chanceler austríaco, Sebastian Kurz, disse que uma «saída sem acordo será mais prejudicial para Londres» do que para a UE. Já Michel Barnier, negociador-chefe de Bruxelas, argumentou que a UE não deve comprometer os seus princípios por o Governo britânico estar em dificuldades.
Bruxelas sabe que tem Londres encostada à parede. May já disse que não irá recuar no acordo, fazendo com que o mais provável seja o seu chumbo no Parlamento, levando, porventura, à queda do Executivo. Se May se defrontar com uma moção de confiança interna e perder, poderá manter-se como primeira-ministra, mas ficará ainda com menos apoios. Noutro cenário, o Governo poderá optar por um segundo referendo, voltando atrás, mas, a menos de seis meses de saída da UE, dificilmente se conseguirá organizar a tempo. O mesmo acontece com a convocação de eleições e a formação de um novo Governo, a que se acresce a indisponibilidade de Bruxelas para renegociar o Brexit. May também poderá pedir o adiamento da saída ao estender o artigo 50.º, mas os líderes europeus, alguns deles pressionados por partidos populistas para acelerar a expulsão do Reino Unido, poderão ver-se constrangidos a fazê-lo, a que se acresce as declarações no passado, entre as quais de Merkel, de que tal não irá acontecer. Se May se vier a demitir, o seu sucessor poderá, caso reúna uma maioria num Parlamento fragmentado, convocar um segundo referendo, desde que com o acordo de Bruxelas. Caso contrário, o mais provável é haver um Brexit sem acordo.