Há um livro extraordinário sobre a relação entre o futebol e o fascismo ao longo da História. É do inglês Simon Martin e chama-se precisamente Football and Fascism. A propósito da visita da seleção nacional, hoje, a Itália, para um jogo que pode ser decisivo para a qualificação para a fase final da Liga das Nações, esta competição meio estranha que nos caiu no colo, assim um bocado de supetão, como uma mosca cai na sopa, nada como revisitar uma das mais fortes ligações entre ambos. Fascismo e futebol, quero dizer.
1934 foi o ano fundamental para o aproveitamento do jogo por parte do regime de Mussolini, o grande prossecutor da ideologia ultranacionalista e autoritária que foi ganhar o nome à palavra latina fasce, simbolizada por um feixe de varas enrolado em redor de um machado. Basicamente, tratava-se de um símbolo de poder conferido aos magistrados de Roma, autorizados a flagelar e decapitar qualquer cidadão com tendências insurrectas.
A organização da fase final do Campeonato do Mundo de 1934, a segunda edição do certame após a experiência uruguaia de 1930, tornou-se uma ocasião formidanda para consolidar a popularidade de Benito Mussolini e o Duce não a desperdiçou. Bem pelo contrário. Lando Ferretti pode ser um nome caído nos poços fundos do olvido mas acabaria por ter um papel fundamental nessa política, nomeado responsável por um comité organizativo que dependia diretamente do Partido Nacional Fascista. O Mundial de futebol era um desígnio do Governo italiano e só a vitória da Itália responderia às ânsias inculcadas no povo do país.
Em Sport e Fascismo, La Politica Sportiva de Regime 1924-1936, Felice Fabrizio não tem dúvidas em considerar que Mussolini estabeleceu as raízes de uma política desportiva com o objetivo claro de fazer da Itália uma Nação Desportiva, tal como viria a acontecer com a União Soviética e, mais tarde, com a República Democrática Alemã. Como se tocam os extremos!
Primeiro passo: projeto e realização de obras públicas assente num modelo estandardizado de estádios destinados à prática desportiva das populações das cidades mais pequenas e marginalizadas, bem como a criação de outros centros desportivos de Estado, como os casos dos estádios de Florença, Bolonha, Turim e Roma, que seriam a imagem arquitetónica do regime.
Atletas de sucesso foram praticamente canonizados: Primo Carnera, o boxeur, Luigi Beccali, primeira medalha de ouro olímpica do atletismo italiano (1500 metros), ou Ondina Valla, primeira mulher italiana a ganhar ouro nuns Jogos Olímpicos (80 metros barreiras).
Entretanto, no futebol, antes de cada jogo para o campeonato, as equipas italianas passaram a perfilar-se em frente às bancadas com os jogadores erguendo o braço direito em saudação.
Perfeccionismo total
O Mundial de 1934 foi disputado entre os dias 27 de maio e 10 de junho. A máquina de Mussolini roçou a perfeição. Os pormenores organizativos atingiam uma espécie de obsessão. Os preços dos bilhetes de comboio foram reduzidos ao mínimo; uma enorme emissão filatélica; propaganda exaustiva a nível nacional; bilhetes para os jogos feitos de cartolina para se tornarem mais duráveis e poderem ser colecionados.
Valia tudo para que a equipa de Vittorio Pozzo, ex-jogador profissional do Grashoppers de Zurique que estudara em Manchester e fora funcionário da poderosa empresa de pneus Pirelli, trepasse até ao topo. Benito Mussolini, esse, estaria lá no alto à espera. A sua vaidade era incomensurável. Um exemplo? Criou um troféu, a Taça Mussolini, para ser entregue aos campeões do mundo simultaneamente com a Jules Rimet. Tudo por Mussolini! Nada contra Mussolini!
A vitória por 7-1 sobre os Estados Unidos no jogo de estreia da squadra azzurra, convenceu os fanáticos adeptos de que o passeio se estenderia até á final do Stadio Nazzionale, em Roma. Ah! Como pode ser breve a mais profunda das certezas. Defrontando em seguida a Espanha – a fase final de 1934 foi disputada em formato de taça, com eliminatórias diretas consecutivas –nos quartos-de-final, a Itália deparou-se com uma das personagens mais prodigiosas das balizas – o espanhol Ricardo Zamora. Giuseppe Meazza, Raimondo Orsi, Giovanni Ferrari, Mario Pizziolo, Luis Monti e o resto dos companheiros não foram além do empate (1-1). Desempate no dia seguinte. Desta vez um golo de Meazza resolveu o problema. Mas a estrada de tijolos amarelos rodeada de papoilas e madressilvas não passara de um sonho. Seria preciso sofrer.
1-0 sobre a Áustria, em San Siro, Milão, nas meias-finais, golo de Guaita. A festa dos sete golos aos americanos não passara de um momento sem repetição. A equipa de Pozzo teria de se superar na final contra a Checoslováquia. No dia 10 de Junho, os checos estavam em vantagem a vinte minutos do fim, graças a um pontapé certeiro de Puc. Roíam-se unhas nas bancadas, suspirava-se de medo, antecipava-se a desilusão. Aos 81 minutos, Orsi empatou. Prolongamento. Schiavio (95’) foi o autor do golo que lançou as multidões para as ruas das cidades italianas. Mussolini impava. E era difícil vê-lo mais cheio de si próprio do que nesse momento. Fora a vitória de uma política, a vitória do novo homem italiano.
Futebol como exemplo
Se Carnera fora o emblema da brutalidade e da força, o exemplo de uma Itália de gigantes poderosos, os novos campeões do mundo de futebol eram modelos e destreza, de habilidade e criatividade.
Guiseppe Meazza foi eleito como representante máximo da squadra azzurra. Era um jovem pequeno-burguês de 24 anos, bem parecido, sorriso disponível e digno de publicidade a algum dentífrico, sedução de ator de cinema.
O regime fascista não preparara apenas a vitória no Mundial. Prepara igualmente as consequências dessa vitória e os benefícios a tirar dela. O aproveitamento da onda de orgulho pátrio foi total.
Os jogadores deixaram de ser simples futebolistas, passaram a ser figuras da sociedade que a imprensa explorou até ao tutano, revelando as suas vidas familiares, os seus êxitos e dramas particulares, a forma como o governo os agraciara, ora com a oferta de automóveis – FIAT para Meazza e Orsi, por exemplo -, ora com o auxílio financeiro para estabelecerem negócios vários.
Felicio Fabrizzi sublinhou: «a população italiana aceitou a ideia de que fascismo e êxito desportivo era uma ligação umbilical». A Itália repetiria o êxito quatro anos mais tarde, em França. Depois veio a guerra. A taça Jules Rimet ficou em Roma até 1950. Ottorino Barassi, dirigente da FIFA, retirou-a de um banco e escondeu-a em casa, numa casa de sapatos, debaixo da cama, para que os nazis não a roubassem. Nunca ninguém tinha ficado na sua posse durante tanto tempo.