Bertolucci morreu. E a polémica morreu com ele?

O filme mais premiado do grande cineasta Bernardo Bertolucci é o O Último Imperador (1987) que conquistou nove Óscares. O mais conhecido, e não só por boas razões, é o O Último Tango em Paris, de 1972. Recordamos a história de uma obra controversa que, devido ao seu conteúdo e às cenas de sexo explícito, foi somando polémicas ao…

Uma baguete, um pedaço de manteiga e uma troca de olhares entre Marlon Brando e Bernardo Bertolucci. História com mais de 40 anos que, qual notícia da morte de Vasco Granja, já foi polémica, pelo menos, duas vezes. A primeira foi em 2007, quando Maria Schneider, que protagonizava com Marlon Brando uma das mais célebres cenas de sodomização da história do cinema, quebrou o silêncio sobre o que aconteceu na rodagem de “O Último Tango em Paris” (1972), quando tinha apenas 19 anos. A segunda aconteceu em 2013, quando o realizador recuperou o assunto. Memória curta, falta de atenção ou sinal de novos tempos, o assunto voltou como novo há quase um ano, depois de um vídeo de uma entrevista de Bertolucci ter sido recuperado a propósito do Dia Internacional Contra a Violência de Género, assinalado a 25 de novembro, pela organização espanhola El Mundo de Alycia.

Declarações que rapidamente se tornaram virais e que geraram uma onda de indignação contra Bertolucci e Brando nas redes sociais, que fizeram do assunto notícia de novo. “Bertolucci admitiu que combinou filmar cena de violação não consensual em ‘O Último Tango em Paris’”, escrevia, por exemplo, a revista “Elle”, no final da semana passada, no título de um artigo que o ator Chris Evans se apressou a partilhar no Twitter, comentando: “Uau. Nunca mais vou voltar a olhar para este filme, Bertolucci ou Brando da mesma maneira. Isto é para lá de nojento. Sinto raiva.” Num outro tweet escreveu ainda que Bertolucci devia ser preso e a ele seguiram-se outros, entre os quais Jessica Chastain, que acusou o realizador e o ator de violação: “Para todas as pessoas que adoram este filme, aquilo que estão a ver é uma pessoa de 19 anos a ser violada por um homem de 48. O realizador planeou isto. Sinto-me enjoada.”

As reações entre as estrelas de Hollywood foram tão longe que o realizador, o único dos três protagonistas do escândalo que ainda era vivo em dezembro de 2017, se sentiu obrigado a divulgar uma nota de esclarecimento em que defende que a cena em causa sempre fez parte do guião e que a única parte improvisada foi o uso da manteiga. “Gostaria pela última vez de esclarecer um mal-entendido ridículo que continua a gerar notícias sobre ‘O Último Tango em Paris’ por todo o mundo”, afirmou na altura em comunicado o realizador, que morreu esta segunda-feira aos 77 anos.

“Há vários anos, na Cinemateca Francesa, alguém me fez uma pergunta sobre os detalhes da famosa ‘cena da manteiga’. Eu expliquei, talvez não da forma mais clara, que decidi com o Marlon Brando não informar a Maria de que íamos usar manteiga. Queríamos uma reação espontânea dela ao uso impróprio [da manteiga]. É aí que está o equívoco.”

Na mesma nota, divulgada, Bertolucci acrescentava que não era verdade que Maria Schneider não soubesse que aquela seria uma cena de violação. “Isso é falso! A Maria sabia de tudo porque tinha lido o guião, onde tudo isso estava descrito. A única novidade foi a ideia da manteiga. E isso, soube eu muitos anos depois, ofendeu-a. Não a violência a que foi sujeita na cena, que estava escrita.”

Bertolucci referia-se às declarações de Maria Schneider numa entrevista ao “Daily Mail” em 2007, em que falou pela primeira vez abertamente sobre a cena que marcou a sua carreira para dizer que se sentiu humilhada, quase violada. “Devia ter ligado ao meu agente ou pedido a presença de um advogado na rodagem porque não se pode obrigar alguém a fazer algo que não está no guião, mas naquela altura eu não sabia disso. O Marlon disse-me: ‘Maria, não te preocupes, é só um filme’. Mas durante a cena, mesmo não sendo real o que o Marlon estava a fazer, as minhas lágrimas eram reais. Senti-me humilhada e, para ser honesta, senti-me quase violada, tanto pelo Marlon como pelo Bertolucci. Depois da cena, o Marlon não procurou consolar-me ou pedir-me desculpa”, recordou a atriz, para acrescentar que “felizmente, só houve um take”.

Bertolucci manteve-se em silêncio e só há quatro anos, depois da morte de Schneider, em 2011, haveria de esclarecer o assunto, para confirmar que a atriz que interpretava Jeannie no seu filme de 1972 não tinha consciência do quão longe ele e Marlon Brando tinham combinado levar a cena. “Estávamos a tomar o pequeno-almoço, com o Marlon, no chão do apartamento onde estávamos a filmar. Havia uma baguete, havia manteiga e nós olhámos um para o outro e, sem dizermos nada, percebemos o que queríamos. Fui horrível para a Maria porque não lhe disse”, reconheceu o realizador em 2013, numa conversa com a imprensa em que disse não se sentir, ainda assim, arrependido pela decisão. “Quando ela morreu pensei, meu Deus, lamento não lhe ter pedido desculpa pelo que o Marlon e eu lhe fizemos naquela cena, por termos decidido não lhe dizer. O sentimento de humilhação foi muito real, mas acho que o que realmente a ofendeu foi sentir que não lhe foi permitido preparar-se para a cena como atriz. Mas o que eu queria era ter a reação dela como pessoa, não como atriz.”

Mas por que é que só à terceira este assunto se fez polémica? Questiona o “Washington Post”, que traça um paralelismo com o caso de Bill Cosby que só depois de anos de denúncias se tornou notícia. Também Tippi Hedren, a atriz de “Os Pássaros” (1963) veio dizer, ao fim de mais de meio século, ter sido vítima de assédio de Alfred Hitchcock. Sinal dos tempos de que finalmente as mulheres começam a ser ouvidas. 

 

Artigo adaptado da versão original publicada em dezembro de 2017 no jornal i