Não falei sobre isto durante décadas, mas o Godard é o meu verdadeiro guru, compreendem? Para mim havia um cinema antes e um cinema depois do Godard – como antes e depois de Cristo. Portanto, a opinião dele sobre o filme significava tudo para mim.» Isto é Bernardo Bertolucci há dez anos, a contar ao Guardian do seu encontro com Jean-Luc Godard depois de este ter assistido à estreia em Paris de O Conformista. Filme de 1970 que adaptou do romance de Alberto Moravia com a história de um intelectual de classe alta que, durante o regime de Mussolini, é contratado para ir a Paris assassinar um dissidente que em tempos lhe tinha dado aulas de Filosofia. Um filme que lhe pareceu que agradaria a Godard. Mas não.
E continua Bertolucci, sobre o encontro: «Não me disse nada. Entregou-me um bilhete e foi-se embora. Peguei no bilhete, tinha um retrato do Mao e um recado escrito à mão com a letra que conhecíamos dos seus filmes. A nota dizia: ‘Tens de lutar contra o individualismo e o capitalismo.’ Foi a reação dele ao meu filme. Fiquei tão irritado que o amarrotei e atirei na direção dos meus pés. Tenho mesmo pena de o ter feito porque adoraria tê-lo agora para o guardar como uma relíquia.»
Com a aprovação de Godard ou sem ela, O Conformista viria a tornar-se, com Jean-Louis Trintignant no papel do protagonista, num dos mais relevantes filmes do pós-guerra. Um filme que, descreverá Stuart Jeffries no artigo para o qual Bertolucci lhe contou esta história, o realizador encarou o passado fascista do seu país para «encontrar no seu coração uma disfunção psicossexual». Um filme que veio no tempo dos sonhos falhados que foram os anos de ressaca do Maio de 68, sem o qual «os subsequentes O Padrinho [1971] e Apocalypse Now [1980] seriam inimagináveis».
Era apenas o princípio do que estaria por vir de Bertolucci, que dois anos depois estrearia O Último Tango em Paris, com o qual se orgulha de ter apresentado ao mundo uma Maria Schneider que não foi apenas atriz nesse filme, mas o centro de uma polémica que o acompanharia praticamente até à sua morte – na segunda-feira, em Roma, vítima de um cancro. Há mais de dez anos que o realizador vivia confinado a uma cadeira de rodas, depois de uma cirurgia mal sucedida a uma hérnia discal, que o deixou sem andar.
Aí, nesse ano de 1970 em que esperou e desesperou por aquela aprovação que não veio, não tinha apresentado ainda ao mundo aquela que se tornaria, para o grande público e para a história da cultura pop do último século, a sua obra maior – pelo menos em polémica. Polémica que abreviadamente se conta com uma baguete, um pedaço de manteiga e uma troca de olhares entre Marlon Brando – a contracenar na mais que badalada cena com Schneider – e o realizador. Uma das mais célebres cenas de sodomização da história do cinema sobre a qual a atriz, que à data da rodagem tinha apenas 19 anos, demorou quase 40 anos a quebrar o silêncio, para contar uma história que Bertolucci demoraria anos a comentar. «Devia ter ligado ao meu agente ou pedido a presença de um advogado na rodagem porque não se pode obrigar alguém a fazer algo que não está no guião, mas naquela altura eu não sabia disso», contou a atriz em 2007 numa entrevista ao Daily Mail.
«O Marlon disse-me: ‘Maria, não te preocupes, é só um filme’. Mas durante a cena, mesmo não sendo real o que o Marlon estava a fazer, as minhas lágrimas eram reais. Senti-me humilhada e, para ser honesta, senti-me quase violada, tanto pelo Marlon como pelo Bertolucci. Depois da cena, o Marlon não procurou consolar-me ou pedir-me desculpa», recordou a atriz, para acrescentar que «felizmente, só houve um take».
Bertolucci manteve-se em silêncio e só há cinco anos, depois da morte de Schneider, em 2011, haveria de esclarecer o assunto, para confirmar que a atriz que interpretava Jeannie naquele filme não tinha consciência do quão longe ele e Marlon Brando tinham combinado levar a cena. «Estávamos a tomar o pequeno-almoço, com o Marlon, no chão do apartamento onde estávamos a filmar. Havia uma baguete, havia manteiga e nós olhámos um para o outro e, sem dizermos nada, percebemos o que queríamos. Fui horrível para a Maria porque não lhe disse», reconheceu então, já em 2013, numa conversa com a imprensa em que disse não se sentir, ainda assim, arrependido da decisão. Apenas de nunca lhe ter pedido desculpa: «Quando ela morreu pensei, meu Deus, lamento não lhe ter pedido desculpa pelo que o Marlon e eu lhe fizemos naquela cena, por termos decidido não lhe dizer. O sentimento de humilhação foi muito real, mas acho que o que realmente a ofendeu foi sentir que não lhe foi permitido preparar-se para a cena como atriz. Mas o que eu queria era ter a reação dela como pessoa, não como atriz.»
Entretanto, no ano passado, num desses fenómenos de velhas polémicas que as redes sociais fazem renascer como se nunca tivessem existido, o vídeo dessas declarações à imprensa voltou a ser partilhado, noticiado, e dessa vez o assunto não escapou entre os pingos da chuva. Era já tempo do #MeToo e a rápida onda de indignação que se levantou contra o ator e o realizador entre os seus pares nas redes sociais fez dessa ocasião a última em que o nome de Bertolucci encheu páginas de jornais por todo o mundo.
Mas separemos disso a obra daquela que foi uma das figuras-chave para uma era dourada no cinema italiano, que na sua história poderemos colocar ao lado de nomes como Antonioni, Fellini ou Pasolini. E adicionemos a isso a transição que foi capaz de fazer para Hollywood com um título que, em dia de balanços para a história, não será possível ignorar entre a sua cinematografia: O Último Imperador. O filme com o qual o realizador trilhou o seu caminho até aos Óscares – nove, ao todo, incluindo o de Melhor Filme e Melhor Realizador em 1987. Depois disso, realizou ainda outro dos seus mais icónicos, Os Sonhadores, de 2003. Depois disso, e já depois das complicações que o atiraram para uma cadeira de rodas, estreou ainda Yo e Te (2012), adaptado do romance homónimo de Niccolò Ammaniti, que ficaria como a sua última longa metragem.
Do realizador-argumentista nascido a 16 de março de 1941 em Parma, Itália, que antes de se fazer homem do cinema foi poeta, depois de ter começado a trabalhar como assistente de realização de nomes como Pier Paolo Pasolini -– Accattone (1961) – haverá sempre mais para contar. La commare secca, logo no ano seguinte a essa colaboração, seria o seu primeiro filme, mas o reconhecimento viria a partir da sua segunda longa-metragem: Antes da Revolução, de 1964. Mas as colaborações com outros realizadores continuaram. Em 1968, por exemplo, Sergio Leone estreava Era Uma Vez no Oeste, cujo argumento Bertolucci assinou. Não tinha chegado ainda a hora de O Conformista.
E aí voltamos para a explicação do realizador para a reação de Godard descrita no início. E disse ele: «Eu já tinha passado a fase em que ser capaz de comunicar era considerado um pecado mortal. Ele não.» Mas não era apenas isso. Era a morada do professor a silenciar que era a mesma de Godard, na Saint Jacques. «O que sempre me deixou orgulhoso – que quase me faz corar de orgulho – é o facto de o Francis Ford Coppola, o Martin Scorsese, o Steven Spielberg, todos me terem dito que O Conformista é a sua primeira influência moderna.» E é verdade que foi essa uma das primeiras longas de Vittorio Storaro, celebrizado sobretudo por Apocalypse Now, como diretor de fotografia.
De uma maneira ou de outra, O Conformista foi além de tudo seu filme de libertação, como diria na mesma entrevista. «A certa altura tive que ter cuidado para não ser um imitador, uma cópia de Godard. Acho que não é uma experiência exclusivamente minha mas de muita gente da minha geração.» Mas o que havia a destruir não era apenas isso, e aqui estará a razão de toda a sua obra: «Através da psicanálise descobri que fazer filmes foi uma forma de matar o meu pai. Naquilo pelo qual faço filmes – o prazer da culpa. Tive que o aceitar a partir de certa altura, e o meu pai também teve que aceitar que era morto a cada filme. Uma vez disse-me uma frase engraçada: ‘És muito inteligente. Mataste-me uma data de vezes sem seres preso.’»