Se fores a esse piquenique, já não voltas!». Cadaquès, 1971: um homem loiro oxigenado exige a outro que saia de um barco prestes a zarpar. O homem em terra, lavado em lágrimas, é o pintor David Hockney; o destinatário dos seus berros é Peter Schlesinger, também artista, e dez anos mais novo. Haviam-se conhecido em 1966 na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, quando Hockney fora para lá dar aulas. Schlesinger estudava arte e tornaram-se amantes.
Como a situação não se resolve – Peter vai mesmo ao tal piquenique – Hockney mete-se no carro e só pára para dormir em Perpignan. A relação não sobrevive à discussão violenta no porto de Cadaquès. «Nunca tinha passado por nada do género. Sentia-me miserável, infelicíssimo», diria mais tarde o pintor, que tinha vivido uma paixão arrebatadora. «Uma consequência disto foi que no ano que se seguiu produzi uma quantidade enorme de trabalho. Comecei a pintar intensamente nesse setembro… A verdade é que estava tão infeliz que não havia mais nada a fazer se não trabalhar».
Naquele outono de 1971 iniciou um duplo retrato: um homem a nadar debaixo de água numa piscina em Los Angeles, o outro em pé na borda, completamente vestido. A ideia para a pintura surgira-lhe quando o acaso juntou duas fotografias no chão do seu estúdio. «Uma era de uma figura a nadar debaixo de água e por isso deveras distorcida», recordaria, «e a outra era de um rapaz com o olhar fixado em qualquer coisa no chão; mas por causa da forma como as fotografias estavam dispostas criava a ilusão de que ele estava a olhar para a figura distorcida».
A transparência da água, a forma desfocada do nadador, o contraste com a figura vestida, em pé, à beira da piscina colocaram Hockney perante vários desafios pictóricos. Incapaz de os resolver, ao fim de seis meses decidiu deixar a tela inacabada e foi viajar para o Havai, o Japão e a Ásia – já na companhia de outro amigo.
De regresso ao trabalho, no início de abril de 1972 recomeçou do zero a pintura com a piscina e os dois homens. Ia inaugurar uma exposição individual numa galeria de Nova Iorque dali a um mês, por isso empenhou-se para a obra estar pronta a tempo. Uma vez que não estava convencido com a luz das fotografias originais, arranjou um substituto para servir de modelo. E, como continuava insatisfeito, acabou por pedir a Schlesinger para posar para ele novamente. O antigo amante correspondeu e até vestiu o mesmo casaco cor-de-rosa.
Durante duas semanas, Hockney trabalhou a um ritmo frenético de 18 horas por dia para terminar a tempo. A pintura ficou pronta na noite anterior a ser enviada para Nova Iorque. «Foi maravilhoso trabalhar com tanta intensidade».
Quarenta e sete anos depois, também em Nova Iorque, Retrato de um Artista (Piscina com Duas Figuras) atingiu num leilão da Christie’s o valor de 90 milhões de dólares (79 milhões de euros), tornando-se a obra mais cara de sempre de um artista vivo.
A Nega à Rainha
David Hockney é uma espécie de predestinado. Nascido em Bradford, Inglaterra, em 1937, aos 11 anos já sabia que queria ser artista. Em 1959 entrou para a Royal Academy of Arts e rapidamente começou a dar nas vistas tanto por causa do seu talento como da sua personalidade exuberante. Terminou o curso com medalha de ouro e a imprensa falava nele como o mais promissor pintor da sua geração.
Como a figuração estava fora de moda, ainda tentou a abstração, mas não era esse o caminho que iria seguir.
Em 1964 visitou Los Angeles e teve uma epifania: «A cidade mais bonita do mundo é aqui», comentou numa carta. «Por causa do clima, as pessoas usam menos roupa e por isso cuidam mais do corpo». Aborrecido com Inglaterra, mudou-se para os EUA em 66. «Gostava de saber porque é que o governo quer toda a gente na cama às onze da noite», justificou. «Se não, por que fecham os pubs às onze e a televisão à meia noite?».
Em Los Angeles a sua paleta explodiu em cores vivas e abertas, por causa da luz da Califórnia, mas também do entusiasmo que sentiu. Vendo na piscina um símbolo de lazer e do culto do corpo masculino, usou-a como tema de pinturas que já foram interpretadas como ‘visões do paraíso’. Reflexo do ambiente de liberdade que se vivia do outro lado do Atlântico, pintou o cabelo de louro oxigenado que se tornou, a par dos óculos de aros redondos, um traço distintivo da sua figura.
Foi também na América que um dia, quando visitava uma exposição, deu de caras com Clement Greenberg, o mais conceituado e temido crítico de arte da época. «Ia com a filha de oito anos e disse-me que eu era o artista preferido dela. Não sei se era para me deitar abaixo, acho que sim».
Apesar de ter vivido décadas em Los Angeles, Hockney nunca deixou de ser um ícone da pintura pop britânica. Em 1990 recusou ser feito cavaleiro. «Estava a viver na Califórnia. Não queria ser o Sir Não-Sei-Quantos». Já em 2011 revelou à BBC que tinha declinado um convite para pintar a Rainha: «Não saberia como pintá-la, está a ver, porque ela não é um ser humano comum». Além disso, alegou, na altura «estava muito ocupado» a pintar paisagens do Yorkshire. Se podia pintar a própria Inglaterra em toda a sua glória, por que haveria de perder o seu precioso tempo a fazer o retrato de uma senhora de 80 e tal anos?