COLVA – Chamaram-lhe Operação Vijay. Vijay em hindi significa vitória. Durou 36 horas. E 451 anos de governação portuguesa na Índia desmoronaram-se como um castelo de areia na beira do mar da praia de Colva.
Depois da independência da União Indiana à meia-noite do dia 14 de agosto de 1947, ficou claro para a comunidade internacional que os Estado da Índia Portuguesa tinha os seus dias contados. A joia do Império que ia do Minho a Timor ser-nos-ia arrancada do dedo mesmo que o dedo tivesse de ir junto.
À medida que as negociações iniciadas em 1950 entre o governo indiano e português se foram escoando na teimosia do regime em considerar as regiões de Goa, Damão e Diu, e os enclaves de Gongolá, Simbor, Dadrá e Nagar Haveli, e a ilha de Anjediva, como parte do território nacional e, assim sendo, não transferíveis nem negociáveis, o destino traçou a sua teia irredutível. Dadrá e Nagar-Haveli, no Gujarate, caíram nas mãos dos indianos em 1954. Em 1955, houve uma primeira tentativa de invasão de Goa repelida pelo exército português. Dez dias antes do ataque decisivo, o primeiro ministro indiano, Jawaharlal Nehru não se coibiu de afirmar de forma taxativa: «A continuação da governação portuguesa em Goa é uma impossibilidade».
Às 9h45 do dia 17 de dezembro de 1961, as hostilidades tiveram início. Maulinguém, no nordeste de Goa, foi tomada pelas tropas da União Indiana e morreram dois soldados portugueses. O governador-geral, brigadeiro promovido a general Vassalo e Silva viu-se à frente de um exército de 3 mil homens cercados por 40 mil indianos. Salazar exigiu que se batessem até à morte; Vassalo e Silva deixou que o bom senso falasse mais alto: rendeu-se. Foi expulso das Forças Armadas Portuguesas. Deixou uma expressão para a História: «Sacrifício inútil».
A cerimónia oficial da rendição teve lugar no dia 19 de dezembro, pelas 20h30. 4668 portugueses foram declarados prisioneiros, entre civis e militares. O general K.P. Candeth foi nomeado governador militar. A Índia deixara de ser portuguesa.
Ano e meio antes…
No dia 6 de maio de 1960, uma delegação do Benfica tomou o rumo da Índia Portuguesa. Seria o único clube da Metrópole a visitar o território durante a vigência do governo português.
Era uma embaixada, dizia-se. E comportava-se como tal. À chegada apresentou credenciais e tudo. A Vassalo e Silva, como está bem de ver. A notícia foi apresentada assim: «A equipa de reservas do Sport Lisboa e Benfica seguiu hoje, num avião dos TAIP, para Goa, a convite do Conselho Superior de Educação Física da Índia Portuguesa. Os futebolistas do clube da Luz vão realizar uma série de encontros naquela província, o primeiro dos quais no próximo dia 10, em Margão, contra a seleção militar; o segundo no dia 12, contra a seleção dos naturais, no estádio de Vasco da Gama; e o último contra a seleção de Goa».
Palavras de orgulho.
Como era orgulhosa aquela TAIP: criada em 1955, empresa pública ligada ao Governo Geral do Estado Português da Índia, Serviços de Transportes Aéreos da Índia Portuguesa, logo simplificados para TAIP, que começou com um pequeno De Haviland e chegou a possuir dois Vickers Viking, dois DC-4 e três DC-6. Voos demorados. Via Karachi, Damão e Diu. Depois também de Lourenço Marques e Beira, com ligações ao Japão e ao Timor. Império era Império e escrevia-se com maiúsculas.
O campeonato em Portugal estava interrompido. Por três semanas. Maus hábitos vêm de longe.
Não era, no entanto, um Benfica na sua força máxima. Nem podia. Na Metrópole, como então se dizia, ficaram Costa Pereira, Mário João, Ângelo, Neto, Cruz, Águas, Coluna, José Augusto, Santana e Águas. Mas os próprios indianos tinham requerido aos encarndos que fizesse deslocar uma equipa menos forte, tal era a diferença de qualidade do futebol que se jogava na Índia Portuguesa. Curioso mas absolutamente real. Repare-se no que dizia o engenheiro Fagulha Saraiva confirmando a especificidade do convite: «Foi-nos pedida uma equipa secundária porque o nível técnico do futebol da nossa Índia não justificava a presença da equipa principal». Nada parece ter mudado a partir de então, seja a Índia portuguesa ou nem por isso. E depois entusiasmava-se. «É um pormenor sem importância. É a primeira vez que um clube da Metrópole desloca uma representação de futebol à Índia Portuguesa. Isso já é motivo suficiente para nos sentirmos invadidos de uma satisfação sem limites!».
Fagulha Saraiva era o chefe da comitiva. Alfredo Valverde, o director-delegado. O enorme João Palhinhas, massagista. Treinador: Fernando Caiado. E viajaram os seguintes jogadores: Malta da Silva, Palmeiro, Vieira Dias, Peres, Mendes, Espírito Santo (o Alfredo, claro!, não o Guilherme), Ramalho, Alfredo, Bastos, Sidónio, Inácio, Marques, Jurado e Zézinho. Reservas, sim, mas alguns com nome escrito a letra de prata na história do futebol português.
Talvez os resultados não sejam de superior importância, como não foram. Era uma viagem de festa e de descobrimento: nunca uma representação do futebol português atingira Goa. O governador Vassalo e Silva lançou-se num discurso poético de boas-vindas: «Tenho a certeza de que este convívio contribuirá para que a ideia do Portugal uno mais se vincule, pelo conhecimento das terras portuguesas. Vós, rapazes, podereis contar um dia aos vossos filhos e netos que visitaram uma terra de lindos rios e palmeiras, onde há cinco séculos se escreveu uma das mais gloriosas páginas da História de Portugal».
E assim o Benfica escrevia, também ele, uma das mais brilhantes páginas da sua história de clube do mundo.
Em Mazagão, o Benfica começou por bater uma Seleção Militar por 2-1, golos de Peres e Palmeiro, com Alves a conseguir marcar o golo de um tão breve quão surpreendente empate. O estádio encheu-se. Havia a grande curiosidade de ver o Benfica, mesmo sem muitas das suas estrelas. Bandeiras encarnadas surgiram espontâneas um pouco por todo o lado. Um foto de ambos os conjuntos segurando uma bandeira nacional ficou famosa.
Entre jogos, sucediam-se as visitas: Vasco da Gama, o porto de Panjim, Mormugão, Salcete. Igrejas caiadas erguendo-se no meio de um mar de palmeiras, praias douradas, florestas de cajueiros, coloniais casas de madeira de varandas amplas.
Vitória sobre uma Seleção de Goa, em Margão, no Estádio de Fatorda, hoje rebatizado de Estádio Nehru, 4-0 (Mendes 2, Vieira Dias e Espírito Santo), perante uma multidão de 45 mil pessoas!!!; outra vitória em Vasco da Gama, contra um Misto de Goeses, 1-0 (Espírito Santo). O Benfica saldava a sua aventura sem mácula. Alguns jogadores goeses aproveitaram o momento para terem os seus nomes na imprensa portuguesa: Saturnino, Bagorro, Palmela e Ivo.
A delegação encarnada passeou pelas ruínas de Velha Goa, pela fortaleza de Aguada, pelas praias de Calangute e de Colva…
Não faltaria muito para que a Índia Portuguesa passasse a ser um simples lugar da história.