Dizer que Luís de Matos está de volta seria uma falácia. Desde que, aos nove anos, se encantou pela magia, nunca mais a deixou. Pelo caminho, foi o primeiro a levar um programa de magia ao primetime, o primeiro a fazer um programa de magia em direto, o primeiro conseguir levar espetáculos de magia aos teatros nacionais. Um pioneirismo reconhecido com vários prémios, dos quais se destaca o Devant Award, um dos mais importantes do mundo, que recebeu aos 43 anos, tornando-se o mágico mais jovem de sempre a ser distinguido. Pretextos mais do que suficientes para esta conversa com o mais conhecido mágico português, que acabou por derrapar por uma série de temas e latitudes, começando por Moçambique, terra onde nasceu; Coimbra, terra que escolheu – e cuja candidatura a Capital Europeia de Cultura 2027 vai agora coordenar – e ainda Lisboa, onde a partir de 12 de dezembro leva ao Tivoli o espetáculo Impossível ao Vivo.
Porque é que os ilusionistas se vestem sempre de preto?
Não é verdade. Mas há uma tradição: quando a magia saiu e os mágicos passaram a ser convidados para trabalhar nas corte e para atuar em teatros, as pessoas que iam ao teatro iam de casaca e cartola. Ora a primeira coisa que os mágicos deveriam fazer era pelo menos estar à altura dessas pessoas em termos do aspeto, e a casaca e cartola pretas eram a forma de mais bem vestir daquela época. Depois as pessoas passaram a vestir de outra maneira e os mágicos foram continuando. Mas não é verdade que vistam todos de preto.
E no seu caso?
É por absoluta falta de imaginação.
Mas não foi um bocadinho contaminado pela profissão?
Não, de todo. Passei a ser assim a partir dos 15 anos e por uma razão muito simples. Dou imenso valor à estética, mas em termos cromáticos era um bocadinho um desastre. Mas uma vez comprei uma camisola de gola alta preta, numa loja da baixa de Coimbra que se chamava Fetal, e fui a uma festa de anos. Percebi que com uma camisola de gola alta preta não importa qual é a cor do casaco ou das calças e aquilo aparentemente ficava-me bem, porque houve muitos comentários elogiosos (risos). Então voltei à Fetal no dia seguinte e comprei mais cinco. Tinha 15 anos, foi quando fui estudar para Coimbra. E a dada altura contaminou-se para os casacos e para as calças. Enfim, ponho uma coisinha mais jeitosa quando estou em cima do palco mas basicamente não distingo o que visto em cima do palco ou fora dele, sou a mesma pessoa também no aspeto.
Vamos então saltar para o início, para Moçambique. Nasceu em que zona?
Nasci em Lourenço Marques, a 23 de agosto de 1970. Os meus pais tinham ido para lá – o meu pai é de Chão do Couce, que é concelho de Ansião, a minha mãe é da Cumieira, que pertence a Penela. Viemos para Portugal em 74, não sei precisar o dia mas sei que vim fazer os quatro anos cá.
Tem alguma memória de Moçambique?
Tenho, aquelas que confundo como sendo minhas ou aquelas que me foram dadas pelas histórias que me contavam e pelos filmes que o meu pai fazia. Ele filmava o menino por tudo quanto era lado em Super 8. Recordo-me muito de Moçambique mas admito que essas memórias sejam fruto das histórias, dos filmes e das minhas próprias visitas.
E se lhe pedir para se abstrair dessas histórias que lhe foram contadas ou mostradas, o que fica?
A igreja da Polana, que identifico como a primeira pelo simbólico que ela encerra. Uma das coisas que acho que hoje Maputo identifica é esse conjunto de pessoas que, sendo incómodas na metrópole, lá poderiam dar asas à sua imaginação e visão. Dou como exemplo a igreja da Polana mas também outras coisas na cidade. Não há hoje ainda em Lisboa uma rotunda tão grande como a mais pequena de Maputo. Isto revela um estado de espírito e ambição. Em Portugal, nem daqui a 50 anos existiria a coragem de desenhar e construir uma igreja tão vanguardista como a da Polana. Se hoje fosse construída em Portugal, seria alvo de críticas como sendo uma coisa completamente desajustada, mas não, é simplesmente um símbolo de um espírito vanguardista inacreditável. Não é à toa que o próprio Eiffel fez lá uma casa toda em ferro.
Quando voltaram sentiram aquilo que algumas famílias descrevem como um estigma, o de serem retornados?
Era muito novo, mas ouvi os meus pais a falar sobre isso. A palavra retornado faz parte da minha infância. Não sei se era pejorativo, mas não era positivo porque a situação não era agradável. Estamos a falar de uma família completamente estabelecida num país a quem de um momento para o outro é retirado tudo e tem que começar do zero – e isto, por definição, não é a mais agradável das situações.
Fotografia: Mafalda Gomes
Como foi crescer num sítio mais rural?
Recordo-me de ter vários professores da primeira classe, porque a minha mãe foi professora em vários locais até finalmente efetivar. Tive uma infância acho que normal e saudável, de ir a pé para a escola e apanhar frio e calor, ter liberdade própria. Havia imensa confraternização e aprendiam-se social skills em tenra idade. Foi depois nessa altura, com nove anos, que entrei para um grupo de teatro e variedades.
E esse momento foi o gatilho daquilo que viria a ser a sua carreira?
Foi porque havia no grupo um mágico, o Serafim Afonso. Todos tocávamos, dançávamos e essas coisas, mas ele também fazia magia. Com ele aprendi alguns truques e ainda enquanto hobby na minha vida a magia foi alimentada por esse relacionamento de proximidade com o Serafim.
E o hobby foi alimentado pela sua família?
Não. Para um filho único de pais professores qualquer coisa que não seja estudar é preocupante. Portanto, uma coisa que percebi rapidamente é que não podia fazer perigar em nada os meus resultados académicos, mas se os mantivesse entretidos com bons resultados, podia estar na boa com o resto do tempo disponível. E essa moeda de troca inevitavelmente levou a que acabasse por ser bom aluno.
Depois com 15 anos foi estudar para Coimbra. Porquê tão novo?
Estudava no Avelar, no concelho de Ansião, onde só havia até ao 9.º ano. Ir estudar para Coimbra foi um passo brutalmente decisivo na minha vida porque passei de uma superproteção de filho único para uma total liberdade. Fui para Coimbra viver com outros três rapazes, irmãos entre si. Os pais deles também eram professores e eram amigos dos meus pais, tinham um apartamento em Coimbra e tiveram a imensa generosidade e amizade de proporcionar que eu pudesse ir desta maneira.
Foi quase como ir para a universidade três anos antes.
Exatamente. E isso com 15 anos ou pode correr muito mal ou pode ser uma coisa extraordinária, que foi o que me aconteceu. Passei da condição de miúdo para menos miúdo dos 15 aos 18 em interação com Coimbra, apaixonei-me por aquela cidade e cresci com ela. E isto acabaria por condicionar o resto das decisões da minha vida, ao ponto de ainda hoje viver em Coimbra, enquanto o normal numa carreira de showbusiness é vir para Lisboa.
E isso nunca lhe passou pela cabeça?
Nunca. Venho a Lisboa, se for preciso todos os dias durante um mês, mas Coimbra é o meu poiso, o meu quartel-general.
A propósito… Como surgiu convite para ser coordenador da candidatura de ‘Coimbra Capital Europeia da Cultura 2017’ e como vê o seu papel?
Com humildade mas com uma enorme satisfação e entusiasmo. Sempre que a possibilidade de que o meu empenho possa fazer a diferença é colocada em cima da mesa, empenho-me o mais possível. Estamos habituados a que este tipo de cargos seja entregue a outro tipo de pessoas. Depois, o processo das capitais europeias da cultura é espoletado pelas autarquias. Ainda não abriu o concurso mas a Comissão Europeia já anunciou que uma das duas – ou três – capitais da cultura a acontecer durante esse ano será em Portugal, e a outra na Letónia. Pedi para escolher a minha equipa, que conta com um grupo de pessoas com provas dadas e que me parece o melhor do mundo para coordenar esta candidatura. Fui a terceira escolha para este papel – o que não tem mal nenhum, só me faz mais vontade de fazer bem -, e na minha equipa estão as primeiras duas pessoas que recusaram o cargo, mas que aceitaram trabalhar comigo, o que me fez sentir muito sensibilizado.
Que tipo de trabalho já desenvolveram?
Temos ouvido os agentes culturais, já conseguimos como parceiros a Universidade de Coimbra, o Instituto Politécnico de Coimbra, a Fundação Bissaya-Barreto, o Turismo Centro de Portugal. Já contactámos, entre outros, a delegação do Ministério da Cultura. Todos os municípios da Comunidade Intermunicipal da Região de Coimbra (CIM) apoiam a candidatura Coimbra 2027. Há toda uma vontade que percebe que chegou o tempo de Coimbra. Não nos podemos esquecer de que Coimbra foi a primeira capital de Portugal e uma cidade que ajudou a formatar o país, a Europa e o mundo. É a cidade portuguesa por onde passa anualmente, há 700 anos, o maior número de estudantes estrangeiros, que aqui crescem e levam para o mundo o que aprenderam em Coimbra. Conseguimos construir um conselho consultivo com nomes extraordinários que amam Coimbra e que já começaram a dar ideias: Eduardo Lourenço, António Feijó, Edson Athayde, Rui Vieira Nery, Ricardo Pais… Coimbra tem 144 agentes culturais com quem mantém relação direta e estamos a fazer reuniões com todos – é importante que esta seja uma candidatura que nasça da ambição e não da contingência. Para isso temos que ouvir os agentes culturais e, acima de tudo, ouvir a população. Todos nós temos uma sensação de Coimbra que é diferente da ideia que Portugal tem de Coimbra. Coimbra de alguma forma foi perdendo o protagonismo mas não perdeu a importância, e chegou o tempo de Coimbra ser capital da cultura em 2027, não como prémio mas como inspiração e exemplo.
Voltando à adolescência: não fez nenhum disparate quando foi morar sozinho com 15 anos?
Claro, imensos.
Fotografia: Mafalda Gomes
Mas não pode contar nenhuma história? O crime já prescreveu, certamente…
(risos) Acho que eram coisas banais. Há uma coisa que ainda hoje me admira: vivia em Santo António dos Olivais e a Escola Agrária, para onde fui estudar, fica do outro lado. Não tive carro nem carta até aos 23 anos e recordo-me de ir a pé para a Escola Agrária, o que hoje me custa acreditar. Nem sei quantos quilómetros são, mas é uma coisa brutal.
E porque foi tirar o curso de Produção Agrícola?
Lá está, porque não queria sair de Coimbra, era o sítio onde queria continuar a viver e a estudar (risos). Pus em primeiro lugar Farmácia, Biologia, Bioquímica, porque sempre gostei das bios, mas no meu 12.º ano tínhamos feito uma visita de estudo à Escola Agrária, onde nos levaram a ver o trabalho que estava a ser desenvolvido pelo professor Luís Cabral, no âmbito da micro propagação in vitro de violeta africana. Achei aquilo extraordinário, os meus olhos saltaram das órbitas. Fiquei para o final e disse ao professor: ‘Um dia venho fazer um trabalho assim com o senhor’. Depois ,quando tive que escolher, junto com esses cursos de que falei, pus também o curso de Produção Agrícola, onde entrei. E quem é o meu professor de botânica? O professor Luís Cabral, que, claro, não se lembrava de mim. Pronto, mas lá lhe disse que queria fazer com ele micro propagação in vitro de Strelitzia reginae, que também se chama ave do paraíso, que é a estrelícia. No ano seguinte voltei a dizer-lhe e respondeu-me: ‘Olhe, não sabia se me ia voltar a falar, mas é só para lhe dizer que vou deixar de orientar estágios porque me vou reformar, mas se mantiver a sua opinião estou disposto a que o seu seja o último que faço’. Acabei por fazer o estágio de final de curso com ele, na investigação e na cultura de embriões de estrelícia. Depois da defesa do trabalho fui convidado pelo professor Marques Pinto para integrar então o corpo docente.
Chegou a dar aulas?
Cheguei a dar algumas aulas mas a minha função era de coordenação de um curso que estava a começar. Ao mesmo tempo já fazia programas para a RTP e tinha duas vidas.
Presumo que durante todo esse tempo tenha continuado a estudar magia. Hoje há tutoriais no Youtube. Naquela altura como se fazia?
Livros! Depois sempre que podia assistia a um espetáculo de magia ou na televisão ou ao vivo. E dialogava com outros mágicos. Trocava e comprava muitos livros, em livrarias e alfarrabistas, e é por causa disso que hoje tenho cinco mil livros de magia, desde o século XVI até hoje. Depois comecei a viajar e a minha primeira paragem eram sempre os alfarrabistas para comprar tudo o que havia de magia.
Qual foi a primeira viagem que fez sozinho?
Foi em 1988. Tinha 17 anos tive que dispensar aos exames do 12.º ano para ir assistir pela primeira vez ao campeonato do mundo de magia, que acontecia em Haia. Foi decisivo também para mim porque desde então – e o campeonato do mundo de magia realiza-se a cada três anos – nunca mais deixei de ir assistir.
E esse rapazola de 17 anos já imaginava que era este o caminho que queria seguir profissionalmente ou ainda vivia no limbo?
Sim, mas é um limbo que ainda hoje não ponho de parte. Acho que o motivo pelo qual tenho prazer no que faço é porque guardo a sensação, talvez ilusória, de que se quiser posso deixar isto para fazer outra coisa qualquer. Estava já a trabalhar na Escola Agrária e a receber o meu ordenado do Ministério da Educação quando comecei a fazer séries para a RTP e a esticar os meus dias até não dormir – foi uma coisa a que me habituei e é ótimo, não durmo muito ainda hoje…
Síndrome Marcelo?
Nem tanto (risos). Cinco, seis horas no máximo. O que vi na altura foi que tinha que escolher: ou prosseguir a carreira académica ou a artista. Como sou dado às matemáticas resolvi criar uma fórmula que me ajudasse, sendo que a fórmula deverá ser algo do género: ‘Vou escolher o cenário que, se correr bem, me permita reverter a decisão e escolher o que anteriormente rejeitei’. Se tivesse escolhido a carreira académica e passado 20 anos quisesse a artística, não ia funcionar. Mas se me desencantar da carreira artística acho que ainda hoje é possível regressar à académica.
Essa decisão tem muito pouca magia, é muito racional…
A própria magia é altamente racional, como é evidente. Mas esse meu compromisso fez com que tivesse a coragem de dizer que não a imensas coisas. Quando é a única coisa que podes fazer na vida ficas um bocadinho à mercê de tantas situações. E por manter no fundo da minha cabeça essa sensação de que posso inverter os caminhos tem sido extraordinária e sinto que a cada dia faço o que gosto, porque gosto e como gosto.
Como foi convidado para ser apresentador da RTP?
Bem, a história começou quando tinha 13 anos, altura em que comecei a escrever cartas à RTP a explicar-lhes que queria, podia e sabia fazer uma série de magia em televisão. Felizmente essas cartas nunca tiveram resposta, o que agradeço profundamente, porque se me tivessem respondido teria sido um desastre. Mas isso pelo menos revelou uma vontade permanente de entrar na televisão, porque era também lá que via magia acontecer. Continuei a contactar e a pedir e acabaram por me chamar para ir fazer truques ao Às Dez, antes da Praça da Alegria. Passei a ter uma participação regular no programa da manhã da RTP, daí passou para uma minissérie de 10 programas que foi renovada e, de repente, foram 40.
Qual era o nome do programa?
Isto É Magia. Passava às quartas-feiras ao meio dia e eram 25 minutos de magia com um público de 12 pessoas em estúdio. Depois disso a RTP começou a convidar-me para apresentar concursos, como a Caça ao Tesouro, os Jogos Sem Fronteiras, o Festival da Canção. Fiz ainda um programa de entrevistas ao domingo à tarde.
E sentia-se confortável nesse papel?
Sim e dava-me imenso gosto, mas houve uma coisa de que sempre tive consciência: se passasse a ser apresentador estaria condenado ao terreno pantanoso de um dia ser o apresentador de televisão que sabe fazer uns truques, e isso não me agradava, porque o que queria ser era o mágico que, se for preciso, também sabe apresentar. Fui tentando manter esta intenção, espero que seja essa a memória que as pessoas guardam hoje.
Até aos 20 anos, qual identifica como o momento mais dramático da sua vida?
Consigo identificar perfeitamente um, mas já foi aos 23. Não só foi o mais dramático como o mais transformador de toda a minha vida, que podia ter sido desastroso e que foi a melhor coisa que me aconteceu. Tive um acidente quase mortal num carro que tinha comprado há uma semana, acabado de tirar a carta. Ia a caminho da RTP Porto onde ia editar os meus programas. Sempre ouvi dizer que as pessoas perdem a sua imortalidade aos 40 anos, que é quando que se apercebem do lado efémero da vida, fruto de praticamente metade de uma vida vivida. E tive a sorte de perceber e sentir a fragilidade da vida aos 23, e isso mudou-me como pessoa.
De que formas?
Primeiro deu-me a noção de que cada instante que passamos com alguém pode ser o último, o que significa que há tendência a um maior respeito, a uma maior tolerância e a uma maior vontade de dizer coisas que não deixem dúvidas, seja porque se diz que se ama alguém, porque se pede desculpa ou diz obrigado. Isso aprendi no dia do acidente. O carro foi perda total. Tive a plena noção, durante uns eternos provavelmente vinte segundos, da fragilidade da vida, do instante que se sucede àquele em que estávamos vivos mas em que já não estamos cá. Percebi que esse instante é uma mudança tão instantânea e implacável que passei a desfrutar muito mais da vida. Perdi a imortalidade aos 23 e acho que passei a ser melhor pessoa.
Tomou alguma decisão importante depois dessa experiência?
Acho que fiquei mais atento ao privilégio de estarmos vivos. É uma coisa de outro mundo estarmos vivos. E é uma coisa de outro mundo não sabermos o que acontece amanhã. É muito triste que as pessoas, de uma maneira geral, tenham uma constante vontade de saber o que vai acontecer, que depois resulta numa série de esquemas dos astrólogos aos cartomantes. É um fenómeno frustrante, que mostra um lado miserável da condição humana.
Como adjetiva o trabalho dessas pessoas?
Vigarice! Mas nem todas. Como cético adoro estudar essas coisas, e há dois tipos de ‘psíquicos’: uns são os que sabem que o que estão a fazer é mentira, outros são aqueles que já fizeram tantas vezes que passaram a acreditar que têm algum poder. Aqueles que sabem que é mentira podem dividir-se em dois grupos – os estritamente vigaristas e outros que percebem que, se forem cautelosos com os seus aconselhamentos, podem ajudar pessoas com um conselho amigo. Agora daí a que haja qualquer tipo de relação entre aquele cenário que é ali pintado e a realidade isso é completamente mentira, e desafio quem quer que esteja a ler que me prove o contrário. Podem vir que eu demonstro que é mentira. Como? Porque passei a vida a fazer isso (risos).
Já lhe aconteceu ter alguém que fosse ter consigo e lhe pedisse para adivinhar alguma coisa?
Sim! E acontece pelo seguinte: em 1995 quando criei a ilusão dos números do totoloto, mandavam-me cartas e telefonavam para o escritório. Ainda hoje, via Facebook, tenho pessoas que me contactam e dizem: ‘arranje-me lá os números que dou-lhe metade do que sair’. Quando fiz a previsão, no final, disse precisamente isto: ‘Percebam, meus caros concidadãos que estão a ver isto, que durante uma semana alimentei esta ilusão de que comprovadamente descobri os números do totoloto. Mas eu digo: é mentira! E da mesma forma que, entre aspas, vos enganei, não acreditem em tudo o que está à vossa volta, mantenham o espírito crítico’. O cérebro trai-nos nos intervalos da nossa perceção.
De onde veio a ideia para preparar esse truque ?
Há uma coisa interessante na magia: os mágicos estão eternamente a prototipar o futuro. Mas, por outro lado, não é menos verdade que dão respostas a tudo aquilo que acontece no domínio do impossível e essa linha vai mudando ao longo dos tempos. Ainda é não possível teletransportar-nos, mas provavelmente daqui a 50 anos será. E mesmo que digamos ‘que estupidez’, isso é exatamente o que o meu avô teria dito se lhe tivesse falado nos telemóveis. O que fazem os mágicos? Como ainda não é possível o teletransporte, então ainda posso criar a ilusão de que isso é possível. No momento em que isso for possível já tenho que estar noutra coisa. Nessa medida os mágicos sempre foram prototipando o futuro porque conseguem fazer, sem que seja de verdade, tudo aquilo com que o homem sonha hoje e em breve fará.
Isso já acontecia nos livros do século XVI?
Sim! Basta voltarmos um bocadinho atrás: o mágico que inventa o cinema, o Georges Méliès, fez um filme com a magia da viagem à lua antes do homem conseguir ir à lua. Pensou: É um sonho comum ir à lua, os cientistas não conseguem ainda, mas nós conseguimos criar essa ilusão. Sabemos que é impossível prever o futuro, em contrapartida é um sonho de todo o cidadão ganhar o totoloto. Tantas vezes ouvi: ‘Ahh, é mágico pode dar-me os números!’, que percebi ok, isto é uma coisa com que as pessoas sonham e que claramente é impossível. Daí a ideia de encontrar o truque – recorrendo aos mecanismos necessários, como a trincha é essencial para o pintor e a guitarra para o músico – que criasse a ilusão, que mais tarde pode ser um momento mágico quando percecionado pelas pessoas.
Esses mecanismos de que fala mudaram com a tecnologia? Ajudou ou complicou a arte mágica?
Ajuda imenso! Por exemplo, apareceu há pouco um pigmento novo de tinta preta, que neste momento ainda é caríssimo e está a ser usado pela NASA, que tem zero reflexão. Isto faz-me explodir a cabeça completamente! Contactei imediatamente os laboratórios que têm a patente e estou em lista de espera para ser uma das primeiras pessoas fora daquela equação a poder experimentar o produto. Não sei o que fazer com aquilo, mas sei que há um conjunto de coisas que o homem vai desenvolvendo e que, se as retirar do contexto, posso criar o inexplicável. A magia está constantemente a retroalimentar-se de todos os avanços à medida que vai acalentado a esperança de que o impossível vai ser possível amanhã. E a ciência e magia sempre se entreajudaram.
Consegue dar exemplos?
Sim. Recentemente, os neurocientistas perceberam que os mágicos, por pura questão de sobrevivência, foram obrigados a perceber quais são as falhas de perceção e de que maneira é que podemos controlar e dirigir a atenção das pessoas. Perceberam que os mágicos sabiam mais sobre esses intervalos porque tiveram que os utilizar e os estudavam há muito mais tempo, até de forma empírica. Ao fazer magia de rua, eles de facto só tinham duas hipóteses: ou conseguiam criar a ilusão e controlar a atenção e fazer tudo isso para ganhar a vida, porque não tinham nenhuma bolsa de estudo que lhes pagasses para fazer mestrado, ou não conseguiam e não tinham trabalho (risos). Há um livro que se chama Sleight of Mind, da cientista Susana Martínez Conde, dos EUA, que fala destas descobertas.
Entre outros, em 2013 recebeu o Devant Award, o mais prestigiante prémio de magia do mundo. Foi o mais novo de sempre a recebê-lo. Que características vê em si para ter sido agraciado tão cedo?
Não me compete avaliar se merecia ou não, mas há um padrão que identifico em mim porque é completamente deliberado. Sempre procurei fazer coisas que marcassem pontos em dois sentidos: um é, naturalmente, e de uma forma provavelmente egoísta, procurar coisas que valorizem a minha carreira. Procurei também sempre que essas coisas também valorizassem a arte em que me incluo. Por exemplo, nunca existiu na história da televisão portuguesa um programa de magia no prime-time. A partir do momento em o fiz, estou dentro deste padrão, é bom para a minha carreira, mas também é uma conquista para a magia. Outros exemplos: nunca se tinha visto um espetáculo de magia em cena num teatro nacional, nem um mágico na inauguração de um estádio [do Dragão]. O Devant Award visa precisamente distinguir as pessoas que contribuíram para a dignificação da arte mágica à escala global. Nessa medida fiquei obviamente super contente, até por ser o mais novo, o próprio David Copperfield recebeu três anos depois (risos).
Que é seu amigo.
É meu amigo, estou a brincar, obviamente que lhe telefonei nesse dia (risos). Ninguém mais fez o que ele fez pela magia até hoje. Estes são os prémios de que mais gosto: não tenho que sair do meu caminho e existe alguém que está atento e resolve dizer que o que aquele cromo está a fazer até é interessante. Aconteceu isso com a Academia de Artes Mágicas de Hollywood, com a Ordem do Infante D. Henrique quando me condecoraram com o grau de Comendador.
E esse broche que usa sempre, é uma condecoração? Tem algum significado?
Tem. É o único segredo da minha vida (risos). Uso há 20 e tal anos e é a única coisa que nunca expliquei.
Temos que falar sobre o Estúdio 33, que inaugurou em 2010. Qual é a história desta sua versão de ‘Hogwarts’, de onde veio esta vontade?
O nome completo é Estúdio 33 – Uma Caixa Aberta à Porta fechada. Tem este nome porque era o número original do lote e porque quando comecei a construí-lo tinha 33 anos. São 10 mil quadrados de um espaço que não só me define como é o meu laboratório. É o sítio onde trabalho diariamente com a minha equipa de nove pessoas, que me acompanha há 23 anos. Foi um espaço feito à medida das nossas necessidade e está dividido em escritórios, em oficinas e numa zona multiusos. Essa área é também um teatro com uma teia de 16 metros desenhada à luz do Teatro Nacional de S. João. É também aqui que montamos os nossos espetáculos, como o Impossível, que vai estrear no Tivoli. Somos muito autónomos: temos o nosso camião, o som, luz, cenografia, tudo. Depois há biblioteca, com os tais cinco mil livros, e a oficina que é onde construímos e desenvolvemos novas ilusões, construímos caixas, cenografia. É lá que testamos as 20 ilusões que nos ocorrem por semana, das quais 19 vão para o lixo.
Ocorrem-lhe assim tantas ilusões?
Sim, mas não tem mal nenhum, porque arranjo quarenta e assim há duas. O importante é continuar inquieto e fazer.
E já gravaram no Estúdio 33 um programa que foi transmitido em 75 países.
Já fizemos mais do que isso. Temos uma zona de edição e de live vídeo, e, entre outras coisas, também fizemos de lá em direto o primeiro programa da história da magia do mundo. Ter feito o direto tinha um objetivo: hoje em dia é preciso resgatar a confiança das pessoas que veem magia na televisão. Muitos mágicos sucumbiram à patetice de fazer truques de câmara e de ter coisas combinadas e essas coisas todas, a única maneira de retomar alguma credibilidade e este pacto com o público é fazer em direto.
O que podem esperar as pessoas do espetáculo no Tivoli?
Acho que é um espetáculo de magia como as pessoas jamais viram. A maior parte das pessoas a quem pergunto se já viu um espetáculo de magia ao vivo responde-me que não. Muitas pessoas dizem que não gostam muito de magia e não percebem a atrocidade que estão a dizer. Primeiro porque isso seria a mesma coisa que dizer que não gostam muito de música – podem não gostar de tudo, mas há seguramente um estilo de música que está de acordo com sua sensibilidade. É a mesma coisa com a magia. E sobretudo a magia não é o que as pessoas veem nos resorts, nos circos ou que viam na televisão há 50 anos. Existe um lado da magia absolutamente contemporâneo, vanguardista e próprio do século em que nós estamos. No espetáculo teremos Yu Hojin, campeão do mundo que foi a face visível dos recentes jogos olímpicos na Coreia; vem o Aaron Crow, que chegou à final do GOT Talent há três semanas, vêm os portugueses Tá na Manga, que já ganharam prémios internacionais no seio da comunidade mágica e não só, que são de Lisboa e nunca atuaram aqui, assim como os Momentum Crew, que são há anos e anos campeões do mundo de dança urbana e de break dance. E eu próprio. Ou seja, quem gostar de magia vai-se surpreender no espetáculo, mas quem não gostar deve mesmo vir porque vai perceber do que falo e encontrar uma realidade completamente diferente. A magia é uma arte que constantemente desafia a nossa capacidade de sonhar, a nossa imaginação e a perceção que temos do que é possível e impossível, e é isso que vai acontecer naquele palco. Não é filmado, não é projetado, está a acontecer diante dos nossos olhos, é mentira, mas é inquestionável que está a acontecer.
Há quanto tempo estão a preparar este espetáculo?
Decidimos fazer este espetáculo em dezembro do ano passado, mas estivemos a prepará-lo a vida toda, isto porque no fundo o que cada um de nós vai fazer em cima do palco é resultado de toda uma carreira de aprendizagem. Costumo dizer que, contrariamente a outras profissões, na minha área a minha cotação é diretamente indexada ao último espetáculo que fiz. Posso ser a quinta maravilha, mas se o espetáculo que as pessoas me viram fazer ontem à noite é um desastre, essa é a minha cotação. Ninguém dirá ‘ele é muito bom mas ele teve azar’, dirão ‘coitado, já não é o que era’.