Os momentos de tensão que se têm vivido no sistema prisional português ganharam novos contornos durante a semana que passou. Um motim no Estabelecimento Prisional de Lisboa foi o ponto de partida para os reclusos começarem a demonstrar o seu descontentamento para com as continuadas greves dos guardas prisionais – que têm afetado negativamente o funcionamento das prisões. Nem 24 horas tinham passado quando ocorreu o segundo motim, desta vez no Porto, em Custoias. E o braço de ferro travado entre o Governo e os sindicatos parece estar longe de chegar ao fim.
Ao SOL, Jorge Alves, presidente do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional (SNCGP), garante que, se o Governo não mudar de atitude, as greves vão manter-se. Se o Governo «entender continuar a não querer negociar o estatuto profissional, a não corrigir o problema dos escalões – que até hoje ainda não sabemos como vão ser aplicados -, a não criar as categorias para que os guardas prisionais sejam pagos efetivamente pelas funções que desempenham, vamos continuar a lutar».
O responsável admite que os episódios da última semana poderão originar novos motins noutras prisões do país. «Se não tivesse acontecido nada, acreditamos que tudo passaria de forma pacífica. Tendo em conta o que aconteceu, receamos que possam acontecer mais focos de instabilidade noutros estabelecimentos prisionais», afirma.
Apesar de lamentar o sucedido, Jorge Alves deixa claro que os guardas prisionais estão determinados: «Não podemos é, só porque isso pode acontecer, parar de defender os nossos direitos. Os nossos direitos são sempre os nossos direitos e o Governo tem que perceber isso».
Não é a «quadra ideal», diz ministra
Na passada quarta-feira – um dia depois de os reclusos na prisão de Lisboa terem ateado fogo a caixotes do lixo da ala B do estabelecimento – Francisca Van Dunem, ministra da Justiça usou os primeiros sinais de descontentamento dos reclusos para tentar pôr água na fervura. «Do ponto de vista humano», disse a ministra, o período do Natal não é o «ideal» para os guardas cumprirem períodos de greve. «Estou convencida que os guardas prisionais, até pela carreira que escolheram, têm um elevado grau de humanidade», reiterou.
«Sublinho que estar a prejudicar as visitas, o ritual do Natal, a visita dos filhos, prejudica os reclusos, e esta quadra não é o ideal para que se cumpra esta forma de luta», frisou.
A responsável assegurou que a tutela se encontra em negociações com os sindicatos dos guardas prisionais, acreditando que serão encontradas soluções para esta situação. Já sobre o episódio vivido no Porto – em que os reclusos se recusaram a regressar às suas celas – Van Dunem disse que nada teve a ver com o sucedido em Lisboa, lembrando que estas são «coisas que acontecem mais no sistema prisional do que se pensa».
Tal como não tencionam ceder à agitação dos reclusos, a evocação da quadra natalícia também não deverá demover os guardas prisionais. «É estranho a ministra dizer que não é ideal a época para fazer greve, quando reconhece que não havia estatuto», disse ao SOL Jorge Alves. «Não é porque é Natal que nós não vamos fazer greve e não vamos defender os direitos do corpo da guarda prisional, porque os presos não têm mais direitos do que os guardas prisionais. Podem até ter os mesmos, mas não tem mais», afirmou ao SOL o dirigente sindical, acrescentando que, se estão em greve, é «porque a ministra da Justiça e o primeiro-ministro os obrigaram a isso».
Só este ano, de acordo com dados da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público, os guardas do Estabelecimento Prisional de Lisboa estiveram 312 dias em greves, dos quais 299 às horas extraordinárias. E as greves não param por aqui. O SNCGP já marcou mais 18 dias de greve, divididos por três períodos, que irão durar até ao dia 23 deste mês. Já o Sindicato Independente do Corpo da Guarda Prisional convocou uma greve entre 15 de dezembro e seis de janeiro. Ontem, os sindicatos fizeram saber que o pré-aviso de greve de 24 a 27 de dezembro vai mesmo andar para a frente.
Por que razão protestam os guardas prisionais?
A revisão da tabela remuneratória é uma das exigências do sindicato que continua sem resposta. «Estamos equiparados à PSP em termos de vencimentos, mas a PSP tem uma tabela – que foi aprovada no estatuto de 2015 – e a nossa tabela não está de acordo com a tabela da PSP apesar da equiparação», explica Jorge Alves. E dá um exemplo concreto: «Os agentes da PSP no nível 3 ganham mais 52 euros do que os guardas prisionais no nível 3. O nosso nível é diferente do deles quando devia ser igual».
Além disso, os guardas querem também que sejam criadas duas novas categorias – guarda coordenador e chefe coordenador – porque existem guardas a desempenhar funções de chefe que «ganham como guarda, não estão a receber pela função que estão a desempenhar».
Soma-se ainda o problema do horário de trabalho, uma mudança de paradigma desde cedo contestada pela classe. No início deste ano, a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais decidiu implementar um novo esquema de trabalho por turnos de oito horas, quando até aqui vigoravam turnos de 24 horas. Os guardas passaram a ser divididos por grupos: um grupo está de serviço entre as 8h e as 16h e depois é substituído por uma equipa que fica em funções até à meia-noite que, por sua vez, é rendida por outra que se mantém até às 8h.
Com este novo regime, diz o sindicato, os guardas prisionais são obrigados a alargar o seu horário de trabalho, fazendo horas extra pagas – entre as 16h e as 19h, período que coincide com o horário de visitas, refeições, medicação e entrada dos reclusos nas celas.
Os guardas apontam ainda a falta de recursos humanos nas prisões como um dos problemas a resolver. O SNCGP estima «um défice de 600 guardas», tendo em conta o número de contratações aprovado para este ano.
Em declarações esta semana ao jornal i, Celso Manata, diretor-geral de Reinserção e Serviços Prisionais, assegurou que o problema da falta de guardas já está a ser tratado: ainda este mês será aberto um concurso.
Sobre os incidentes desta semana, Celso Manata diz que, apesar de compreender o desagrado dos reclusos, isso não lhes dá direito para «partir coisas e desobedecer».
O presidente da República, que na noite do motim em Lisboa recebia o Presidente chinês, não ficou indiferente ao sucedido e também se pronunciou sobre a situação vivida na prisão da capital. Marcelo Rebelo de Sousa, que depois do jantar com Xi Jinping foi encontrar-se com familiares de reclusos do Estabelecimento Prisional de Lisboa, disse acreditar que está a ser feito tudo o que é possível para que o sistema prisional se torne um exemplo de funcionamento do Estado de Direito.