Carlos Silva. ‘Mário Centeno é teimoso e obstinado’

Carlos Silva critica ‘obsessão pelo défice’ e alerta que a contestação social vai aumentar. Defende que maioria absoluta poderia ter vantagens.

O PS não gostou de o ouvir dizer que a austeridade não acabou. Continua a pensar que este Governo não conseguiu acabar com a austeridade?

Os trabalhadores viveram tempos difíceis durante o período da troika. Não me passava pela cabeça que nos fossem cortar tantos direitos. Quando o PS foi para o Governo, em 2015, abriu-se uma expectativa de que o PS e a esquerda iriam alterar tudo isso. E realmente, no primeiro ano de legislatura, a principal preocupação do Governo foi reverter muitas medidas que foram impostas nos tempos da troika. Nós não estamos contra que este Governo também queira cumprir os compromissos internacionais. 

Quais são as principais criticas da UGT ao Governo? 

O que nos desencanta é constatarmos que nunca existiram cativações como existem agora. Todos nós sabemos como está o Serviço Nacional de Saúde. No ano passado foram aprovadas propostas para acabar com as cativações na área da Saúde e da formação profissional e nós verificamos que em 2018 se mantiveram cativações na área da formação profissional. Isso significa que deixamos de fazer formação profissional a dezenas ou centenas de milhares de trabalhadores em todo o país. 

Nunca foi muito adepto desta aliança do PS com os partidos à sua esquerda. Porquê?

Teria dado mais garantias um entendimento entre o PS e Passos Coelho, que foi quem ganhou as eleições. Foi isto que disse em 2015.

Mudou de opinião?

Não tenho especial simpatia pelos partidos que estão à esquerda do PS. Nunca tive. Se tivesse estava noutra central sindical. Sentimos isso no terreno. Quando estamos a fazer intervenções ou a visitar trabalhadores nas empresas há sempre alguém que faz ataques à UGT. Continuam a fazer ataques em artigos de opinião, nos jornais… Somos acusados de ser a muleta do Governo e de estar ao serviço do patronato. 

Esses ataques são feitos por quem?

Não podemos deixar de reagir. Esses ataques são feitos pelo PCP, através da CGTP, mas agora também são feitos pelo Bloco de Esquerda (BE) com algum populismo. 

Há algum populismo na forma como o BE faz política?

Acho que sim. É um populismo urbano. Os partidos de esquerda não têm sabido acompanhar a evolução do pensamento que existe na sociedade portuguesa e europeia. Veja quantos governos existem na Europa de direita e extrema-direita. A esquerda não conseguiu combater os desencantos e as desilusões das pessoas que trabalham. Em relação a este orçamento podíamos ter ido muito mais longe. Não é suficiente. Há dez anos que os trabalhadores da Administração Pública estão a zero. Transformar uma reposição de direitos numa nova conquista para os trabalhadores é uma falácia. Nós não vamos por aí. 

O Governo já se comprometeu a aumentar os funcionários públicos…

Acha que 50 milhões resolvem o problema? Até agora, o Governo tem-se furtado ao diálogo. Estamos a perceber que há um avolumar de tensões. Para o ano vai haver alguma tensão social. Os professores, os juízes, os médicos os enfermeiros… Temos tudo em pé de guerra. É isso que o Governo quer?

Ainda acredita que o salário mínimo pode atingir os 615 euros no próximo ano?

Não olho para o patrão como um inimigo. Nunca fiz isso nem vou fazer. Temos conseguido encontrar um ambiente de alguma harmonia para que exista diálogo social com os empresários. Tenho falado com António Saraiva [presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP)] e a ideia que tenho passado é que o aumento do salário mínimo, ao contrário do que diziam, não rebentou com as empresas mais frágeis. Depois apareceu um partido com a bandeira do Salário Mínimo Nacional. 

Está a referir-se ao Bloco de Esquerda?

Sim. O PS foi inteligente, porque sabia que a bandeira do salário mínimo era uma bandeira do movimento sindical e da UGT em particular. Mas o Bloco quis pegar nela e enquanto o Governo lhe deu aquilo, não deu outra coisa qualquer. Foi uma jogada inteligente do PS. Estou convencidíssimo de que, se não tivesse havido o acordo com o BE, hoje, a UGT e os parceiros empregadores, já estaríamos além dos 600 euros. Aquele acordo condicionou a evolução negociada do salário mínimo. Os empregadores ficaram fulos e entenderam que foi um esvaziamento da concertação social. E nós também. O salário mínimo é uma matéria que é discutida na concertação social. Sempre foi assim. 

O BE acabou por prejudicar os trabalhadores?

Sim. Não há negociação coletiva feita por partidos. Quem faz a negociação para tratar de salários são os empregadores e os sindicatos. 

É preciso ir mais longe nas alterações às leis laborais do tempo da troika?

Talvez uma das mais importantes seja o pagamento das horas extraordinárias. O Governo argumenta que ainda não é o tempo, mas vai ser na próxima legislatura. Esperamos que na próxima legislatura, mesmo que o Governo do PS ganhe com maioria absoluta, algumas das matérias que foram retiradas no Código do Trabalho no tempo da troika possam ser alteradas e ver a luz do dia de uma outra forma. 

Quais?

Temos de fazer uma avaliação para analisar se o acordo no Parlamento, após o acordo de concertação social, tem ou não impacto na redução da precariedade. Quando ouvimos que 78% dos estivadores do Porto de Setúbal são precários… É inadmissível. Espero que esta negociação chegue a bom porto. É uma negociação com o movimento sindical, não é com outras figuras que à custa do movimento sindical tentam retirar louros e aparecer como os grandes defensores da classe operária. 

Foi surpreendido com o comportamento do PCP e do BE durante estes três anos? Apesar das divergências nunca colocaram em causa a estabilidade política.

Fiquei surpreendido. Não alterei a minha posição de fundo, mas reconheço que houve aqui um comportamento muito baseado na lealdade. A lealdade é um bem quase em extinção. Não concordo com estes partidos, nem com a sua forma de estar na política, mas reconheço o contributo que deram para a estabilidade governativa.

Esta solução política deve continuar?

Não estou muito preocupado em relação ao futuro, porque o António Costa é um bom político e há de ser hábil na gestão desse processo. O que importa é que este Governo e o próximo reponham o princípio da justiça social. Não podemos continuar a defender uns trabalhadores e a atacar outros. Não podemos dizer que os do privado é que são bons e os da Administração Pública não querem trabalhar. Como não há dinheiro atira-se o ónus para cima dos trabalhadores da Administração Pública. É um erro tremendo porque precisamos que o Estado Social funcione. Ou temos Estado Social ou não temos.

Não está a funcionar bem em alguns aspetos…

O Estado Social não funciona sem pessoas. Os hospitais, os centros de saúde, as escolas, os infantários…Não há Estado Social sem pessoas e é essa valorização que defendemos. Preferimos negociar em vez de andarmos com uma determinada agitação popular que cansa as pessoas e que também cria uma imagem de que o país está permanentemente em greves desde que este Governo tomou posse. Há muitos anos que não havia um surto grevista tão grande. O Governo criou expectativas e não as cumpriu. As pessoas estão desiludidas. 

É possível manter o Estado Social tal como ele existe sem fazer reformas?

Até agora o Governo não conseguiu implementar reformas estruturais de fundo para garantir este modelo social. O Serviço Nacional de Saúde está a degradar-se. É um serviço público de grande qualidade e para o manter é preciso investir nas pessoas. Não estou em desacordo com tudo aquilo que propõe o Bloco e o PCP. Algumas das suas propostas são interessantes. 

Quais?

Concordo com a líder do BE quando diz que estão a copiar os maus exemplos do passado. Se não houvesse esta obsessão pelo défice seria possível ter melhores serviços públicos. O ministro Mário Centeno, como presidente do Eurogrupo, é obrigado a dar o exemplo e está a fazê-lo, mas isso tem custos. Foi para lá, obrigou-se a ele próprio e ao país a manter uma política de grandes sacrifícios aos trabalhadores. 

António Costa também fala muitas vezes na necessidade de reduzir o défice e cumprir os compromissos com Bruxelas…

O PS foi sempre acusado de ser despesista e agora tem uma necessidade quase doentia de provar que também sabe gerir as contas públicas. O Governo devia ter sido mais ambicioso a proteger os seus cidadãos. Estamos a falar de rendimento disponível e o Governo devia ter tido alguma atenção em relação à carga fiscal.

Por que não foi mais ambicioso?

O ministro das Finanças é teimoso e obstinado.

Não tem uma boa opinião do Mário Centeno?

Não disse que não tinha boa opinião. O que disse foi que ele é muito teimoso. Tenho boa opinião do ponto de vista profissional e académico.

Estava a falar da política que ele está a aplicar…

Estou em desacordo. É uma política excessivamente baseada no cumprimento das obrigações internacionais e, portanto, o que importa é dizer à Europa que conseguimos cumprir. 

A CGTP já disse que não quer a maioria absoluta, porque prejudica os trabalhadores. O país ganharia se o PS ficasse menos dependente dos partidos de esquerda, ou as experiências que tivemos com maiorias absolutas não foram felizes?

O PS teve uma maioria absoluta em 2005 com José Sócrates e aquele mandato, na minha opinião como socialista, é que ele fez um bom primeiro mandato. O segundo mandato não correu bem. Não sei se uma maioria absoluta é negativa, porque consegue garantir estabilidade política. Há outra vantagem porque o Governo não precisa de andar a negociar à direita e à esquerda. Andarmos a negociar todos os dias pode não ser mau para a democracia, mas cria instabilidade e uma tremenda pressão sobre a governação. Há medidas que podiam ter sido implementadas e não foram. As maiorias absolutas não são trágicas para os países. 

Não se assusta com a possibilidade de António Costa ter maioria absoluta.

Não, isso não me assusta. Como também não me assustou o facto de Cavaco Silva ter tido maioria absoluta. 

Ficou surpreendido com a acusação de corrupção a José Sócrates?

Fiquei. Sou amigo de José Sócrates e sou militante do PS há 40 anos. Também fiquei surpreendido com todo este envolvimento da família Espírito Santo. Fiquei tristíssimo com o desaparecimento da marca BES e as razões por que desapareceu. Foi um erro político deixar cair o banco. Mais cedo ou mais tarde as coisas hão de se apurar. Há não sei quantos processos e são sempre as mesmas pessoas.

Tem alguma desconfiança em relação às acusações feitas pela Justiça?

Não tenho desconfiança em relação às acusações. Mas a Justiça tem de analisar friamente os factos. Era importante que as pessoas não fossem julgadas e queimadas vivas na praça pública e que a Justiça fizesse o seu trabalho. Espero que isso venha a acontecer.

Tem alguma esperança que José Sócrates seja inocente?

Não discutimos muito essas questões. A amizade tem que ver com lealdade, solidariedade e compreensão. Não sei o que aconteceu. 

No geral, a imagem dos políticos é negativa. Temos agora este caso dos deputados que faltam às reuniões e pedem aos colegas para assinalarem a sua presença… 

Nos cafés é disto de que se fala. Vou almoçar aqui perto todos os dias, num restaurante de gente de trabalho, e quando me veem entrar falam comigo e é tudo a malhar na política. Acham que isto é uma vergonha. Isto descredibiliza a função de deputado que é uma função superior da classe política. 

O Presidente da República, ao contrário de muitos políticos, tem bastante popularidade. O que acha da forma como Marcelo Rebelo de Sousa está a exercer o cargo?

Não votei no professor Marcelo, mas tenho de reconhecer que tem feito um trabalho extraordinário e é um homem de afetos. As pessoas têm essa necessidade. O Presidente da República tem um índice de popularidade enorme e vai merecer o apoio do povo. Não sei se tem o apoio das mentes urbanas e dos intelectuais, mas vai merecer o apoio do povo. E vai ter um resultado histórico. As pessoas levam muita pancada por causa das decisões dos políticos e gostam de encontrar alguém a quem possam queixar-se e dar um abraço. 

Se Marcelo decidir recandidatar-se a um segundo mandato, vai apoiá-lo?

Não sei. Se tiver o meu apoio não é crime nenhum, porque apoio quem quiser. Não sei o que é que o PS vai fazer, mas é uma grande possibilidade. António Costa é um homem pragmático e nas últimos presidenciais o secretário-geral do PS deu liberdade de voto. Têm sido feitas acusações ao professor Marcelo de que anda com o Governo ao colo. Não sei se isso é assim mas tem havido um grande respeito e uma grande lealdade institucional entre o Presidente da República e o Governo. É uma coisa que temos de enaltecer. 

O que correu mal nestes mais de 40 anos de democracia para termos um país com tantas fragilidades e com tanta gente descontente?

As pessoas são sonhadoras e têm direito a sonhar e a serem felizes. Os portugueses continuam a ter orgulho no seu país e atiram o ónus do seu desencanto para a classe política. O país evoluiu muito nestes 40 anos. Basta olhar para esta nova geração e perceber que muitos deles são qualificados. São dos melhores e mais respeitados profissionais em todo o mundo. Temos alguma qualidade de vida. Nasci em Alfama, num bairro popular, onde a maior parte dos trabalhadores era da minha zona e eram todos estivadores. O que acontece hoje em Setúbal também acontecia naquele tempo. A precariedade já existia e as dificuldades sempre existiram. A Constituição da República é um pilar fundamental, mas esta crise tornou descrentes muitos portugueses e os políticos, de uma forma geral, têm muita responsabilidade naquilo que aconteceu.

O que estão a fazer mal os políticos?

Há pouca confiança e a política tem de retomar essa confiança através de uma governação transparente, rigorosa e justa. E justa é através do mérito e do trabalho. Não se pode andar sempre a castigar os mesmos. Quem vai governar é para exercer o poder a favor das pessoas. Se as pessoas não se sentirem valorizados naturalmente que há uma desconfiança. Basta olhar para a União Europeia. O populismo e a demagogia venceram e também temos populismo em Portugal. Não é da extrema-direita, mas é de uma certa extrema-esquerda.