Os desenhos de Álvaro Cunhal instalados numa das principais artérias de Setúbal estão a gerar forte polémica entre os sadinos e a autarquia. Desde o dia 10 de novembro que quem chega ou sai de Setúbal, na via rápida que dá acesso à estrada nacional do Alentejo – uma das principais artérias rodoviárias da cidade -, depara-se, no separador central da via, com cinco painéis em madeira, de grandes dimensões, com desenhos de Álvaro Cunhal. São alguns dos conhecidos desenhos a carvão que o líder histórico do Partido Comunista esboçou entre 1951 e 1959, enquanto esteve preso na Penitenciária de Lisboa e no Forte de Peniche.
A instalação – inaugurada no dia em que se assinalou o 105.º aniversário de Cunhal – está incluída na requalificação daquela zona da cidade, mas tanto os sadinos como o PS e o PSD não poupam críticas à obra e à presidente da Câmara, Maria das Dores Meira, eleita pelo PCP.
A última reunião da Assembleia Municipal, que decorreu a 26 de novembro, foi marcada por protestos de um grupo de setubalenses, que faz parte do movimento cívico ‘Afinal Há Uma Alternativa’ (AHUA), a intervir para questionar a presidente da Câmara sobre a razão da obra que consideram ser «ridícula» e uma demonstração de «idolatria».
Ao SOL, Vanessa Sequeira, uma das organizadoras do AHUA, sublinha que a instalação dos desenhos de Cunhal acaba por ser «um cartão de visita da cidade» que desta forma é conotada a ideia de ‘Cidade Vermelha’. «Assim que se entra na cidade a primeira coisa que se vê é aquele monumento», explica Vanessa Sequeira. Além disso, acrescenta a setubalense, Álvaro Cunhal «não tem nenhuma ligação à cidade», sendo que em Setúbal «não há nenhum monumento daquela dimensão com uma personalidade da cidade».
E estas são apenas duas das críticas que são partilhadas pelos sadinos nos vários comentários que podem ler-se na página da Facebook do AHUA, que conta com mais de 10.800 membros.
Vanessa Sequeira dá o exemplo do bispo Dom Manuel Martins, que considera ser «a verdadeira personalidade do séc. XX de Setúbal» e que só foi homenageado há duas semanas com uma placa «em frente a um estacionamento, atrás de uma igreja». Dom Manuel Martins foi o primeiro bispo de Setúbal e esteve no ativo durante 23 anos, entre 1975 e 1998. Ficou conhecido como ‘Bispo vermelho’, depois de tecer duras críticas aos governos e às políticas sociais seguidas e de denunciar vários casos de pobreza e de fome na região de Setúbal, durante os anos 80. Nessa altura, a região era aquela onde se registavam as taxas mais altas de desemprego em Portugal.
Apesar de reconhecerem o valor do artista, o local da instalação também merece críticas dos sadinos: «Uma galeria de arte não é uma via rápida», porque «ou se conduz ou se vê arte», remata Vanessa Sequeira. Foram estas algumas das ideias que a organizadora do AHUA transmitiu à presidente da autarquia para «demonstrar o desagrado». Vanessa Sequeira diz ainda ao SOL que durante a sua intervenção sentiu que a presidente «ridicularizou a situação» e acusa Maria das Dores Meira de ser «surda» às críticas do movimento cívico.
As críticas dos setubalenses são partilhadas pelos vereadores do PS e do PSD, que já tinham contestado a obra na reunião de Câmara que se seguiu à inauguração da instalação dos desenhos.
O socialista Fernando Paulino considera que a obra «é demais», sobretudo tendo em conta que Cunhal «não tem qualquer ligação a Setúbal». O vereador salienta ainda que «não há mais nenhum político com o nome numa rua» da cidade, havendo apenas «uma praceta com o nome de Sá Carneiro onde há um busto, que foi o PSD Setúbal quem pagou» o monumento.
O socialista considera, por isso, que uma homenagem daquela dimensão a D. Manuel Martins ou a Zeca Afonso – que viveu 20 anos em Setúbal onde está sepultado – seria mais «consensual».
O PS disse ainda que foi surpreendido com a instalação no dia da inauguração. Fernando Paulino garante que solicitou «o plano daquela intervenção» e que «não foi facultado em tempo útil», por isso, o vereador diz que só se apercebeu «do que estava montado no dia da inauguração». Também o vereador social-democrata Nuno Carvalho disse ao SOL que se deve «embelezar as entradas da cidade com aquilo que são os seus símbolos e não com figuras políticas».
Autarquia responde
Confrontada pelo SOL com as críticas à iniciativa, a Câmara de Setúbal salienta que a instalação dos desenhos «é uma homenagem a um dos fundadores da democracia portuguesa», sendo, por isso, «um dever» e uma decisão «que é mais do que justificada». Sobre a falta de ligação de Cunhal a Setúbal, a autarquia diz que «nunca, em lado nenhum, foi esse o único critério para a atribuição de nomes a ruas» dando o exemplo de Sá Carneiro – que nasceu no Porto e que conta com «quase trezentas ruas e avenidas com o seu nome, nas mais variadas localidades portuguesas».
Sobre os exemplos apontados pelos críticos, a autarquia diz que o bispo D. Manuel Martins tem «desde o fim de semana passado um largo com o seu nome, cumprindo uma sugestão» dada pela paróquia de São Sebastião, uma freguesia da cidade. No caso de Zeca Afonso, fica a promessa de que «será homenageado em breve de forma muito significativa».
46 mil euros para impressão
A requalificação da Avenida Álvaro Cunhal contou ainda com uma ciclovia, com o reforço da iluminação, um novo arranjo paisagístico e um novo pavimento da rede viária e pedonal. No total, a câmara investiu cerca de 300 mil em todas as obras sendo que deste valor 40 mil euros suportaram a impressão dos desenhos, revelou ao SOL a autarquia setubalense. Fora deste valor estão os suportes de madeira.
Uma despesa que Vanessa Sequeira considera ser «um luxo» a que a autarquia «não se pode dar neste momento».
Também para Nuno Carvalho, o dinheiro «aplicado àquelas pinturas tinha um melhor destino se fosse para saneamento ou para pavimentar ruas, como para suportar muitas outras necessidades que concelho tem». O social-democrata considera ainda que esta obra «parece ser um reflexo daquilo que vai ser a CDU no futuro sem a atual presidente». É que este «é o estilo da CDU que nunca foi até agora, o estilo da atual presidente», salienta.
Cunhal também gerou polémica em Lisboa
Foi em 2013 – quando se celebrou o 100.º aniversário de Cunhal – que a Câmara atribuiu o nome do líder do PCP àquela avenida que é uma das principais vias rodoviárias da cidade.
No mesmo ano, a Câmara de Lisboa atribuiu igualmente o nome de Álvaro Cunhal a uma avenida na zona da Alta de Lisboa, o que, na altura, também gerou polémica.