Turim sob o signo do Touro

Se a Juventus quer ser o maior clube de Itália, o Torino exige ser o maior clube de Turim: acena com a bandeira de ‘torinositá’.

Turim é uma daquelas cidades meio distantes, um pouco frias, que, ao contrário de tantas outras em Itália, não merece uma verdadeira paixão, arrebatadora e irresistível. Claro que isto digo eu, com a desfaçatez de quem desarrinca um artigo de jornal e sabendo-me sujeito às imprecações dos leitores. Riscos inerentes à profissão, se assim se podem chamar. Estive muitas vezes em Turim e até já assisti a um desses confrontos entre Torino e Juventus e que, não por acaso, se repete hoje mesmo, pelas 19h30, na Via Filadélfia, casa do clube de camisolas vermelhas que levou, nos anos 40, o apodo de Grande Torino.

A basílica de Superga até pode estar, infelizmente por motivos sinistros – foi aí que caiu o avião que transportava a equipa de_Torino, regressando de Lisboa, no dia 4 de maio de 1949 –, no imaginário de todos os habitantes de Turim, mas se há edifício que simbolize a cidade esse é a Mole Antonelianna, que começou por ser um projeto arquitetónico para uma sinagoga, em 1863, e veio a tornar-se, primeiro, num mirante, com um elevador a carregar visitantes a 70 metros de altura, e finalmente a sede do Museu nacional do Museu Italiano. Pelo caminho ficou igualmente para a história como um dos primeiros imóveis a serem iluminados em todo o país. Não, não pensem que desatei, de repente, a tergiversar. É que o dérbi entre o Torino e a Juventus também é chamado de ‘derby-della-Mole’. Está-se mesmo a ver porquê.

Se nos dias que correm a Velha Senhora Juventus anda de título em título com uma perna às costas, de tal ordem que o campeonato italiano se transformou numa grandessíssima estucha bem queirosiana, outros dias houve em que Torino era a melhor equipa da Itália. Entre 1942 e o ano fatídico de 1949, conquistou cinco títulos consecutivos de campeão e prometia não parar. Infelizmente, a morte, macabra mulher da gadanha, desceu dos céus e levou com ela uma geração de futebolistas estupendos como Valentino Mazzola, Aldo Ballarin, Ezio Loik, Mario Rigamonti e Valerio Bacigalupo.

 

Uma questão social

Em geral, todas as rivalidades entre clubes de uma mesma cidade tem raízes sociais. Turim não foge à regra. Fundada em 1897, a Juventus teve como base um grupo alargado de estudantes. Já o Torino surge em 1906 graças à fusão de dois clubes anteriores, o FC Torinese e o Internazionale Torino. Ideólogo dessa mistura, um juventino zangado que abandonara a Juve: Alfredo Dick. E, rapidamente, a fronteira ergueu-se: a Juventus era a representante da burguesia; o Torino concitava os valores do proletariado.

Mario Soldati, um daqueles homens que fazia de tudo um pouco e geralmente bem, desde jornalismo à literatura e ao cinema, escreveu no seu livro Le Due Cittá: «Dois homens atravessaram a rua lado a lado. Ao longo da Piazza Vittorio falaram de futebol. Emilio, naturalmente, estava a favor da Juve, a equipa dos cavalheiros, dos pioneiros da indústria, dos jesuítas, dos bem-pensantes, dos que tinham completado os seus estudos – enfim, burgueses ricos. Giraudo é claro que torcia pelo Toro, o clube dos operários, dos emigrantes, dos que tinham vindo de regiões vizinhas, como Cuneo e Alessandria, em busca de trabalho. Enfim, pequeno-burgueses. E pobres».

Como vêem, nada que fuja ao protótipo da relação entre patrão e classe trabalhadora. Onde é que não foi assim? Foi, claro, porque entretanto as diferenças sociais nas grandes cidades europeias foram-se diluindo e porque, sobretudo, o futebol entrou por um caminho demasiado estreito para assentar em valências marxistas.

A partir do início dos anos 60, a diferença entre Torino e Juventus tornou-se mais bairrista. Porque vieram do sul de Itália muitas famílias em busca do conforto de um norte mais industrial e, logo, mais empregador. Isso fez com que a Juve fosse conquistando uma aura nacional que nenhum outro dos clubes italianos tem. A Velha Senhora é, indiscutivelmente, um clube de todo o país, com adeptos que vão da Toscânia à Sicília. Mas não pensem que isso diminuiu os ‘tiffosi’ do Torino. Foram ao âmago da alma turinense. Trataram de se tornar bandeira de uma ‘torinositá’, expressão que depressa se instalou nas discussões de rua e de café. E que justificará, segundo muitos interessados pela matéria, que haja dentro de Turim mais adeptos do Torino do que da Juventus.

O tempo não terá sido justo para com o Torino, mas a morte não anda aí, pelo mundo, a fazer vítimas com uma noção de justiça em papel de 25 linhas e assinatura reconhecida dentro do bolso do gibão. A Tragédia de Superga diminuiu profundamente o seu orgulho impante – os italianos preferem dizer rampante –, tão impante como o touro que se levanta nas patas traseiras do seu emblema.

Turim é, também, uma cidade de superstições. Que ninguém suba ao alto do Mole sem concluir os seus estudos!, avisam. Corre o risco de nunca vir a ser doutor. Vão às arcadas da Piazza san_Carlo, à porta do Caffè Torino, e fixem o touro de bronze que se destaca no chão empedrado. Ponham o pé direito em cima dos testículos do animal. Terão sorte em tudo o que desejarem. Pois o touro é para os adeptos do Torino um bicho só deles, testículos incluídos. Parece-vos um tudo nada grotesco? Não estará aqui quem o desminta. A verdade é que as décadas se foram atropelando umas às outras e só com grande ajuda da fortuna o Torino sai vencedor de um dérbi.

O desequilíbrio passou a ser palavra de ordem. Neste momento, em 196 jogos oficiais a contar para todas as competições, a Juventus leva uma vantagem confortável: 85 contra 56. Tudo o resto vai para a lista dos empates. O meu bom amigo Darwin Pastorin, jornalista, escreveu um dia: «C’era una volta il derby, verrebbe da dire. Una sfida che raccoglieva furori non soltanto calcistici, ma sociali ed economici, culturali. Già, che giorni e che emozioni!».

Pois: bem para lá de um simples jogo de futebol.