Estamos em plena acrópole, no coração do centro histórico de Évora. Olhando em redor, não avistamos qualquer edifício com menos de umas poucas centenas de anos. O mais antigo é evidentemente o templo romano, já com perto de dois milénios de existência; no seu flanco ficam a Pousada dos Loios, que ocupa um antigo convento, e o Palácio Cadaval, com a famosa Torre das Cinco Quinas, do século XIV; de frente fica o palácio episcopal, hoje Museu de Évora; e um pouco mais abaixo ergue-se a maciça catedral gótica. Este conjunto monumental não fica no entanto completo sem o Palácio da Inquisição, testemunho da chegada do infame tribunal ao nosso país por solicitação do Rei D. João III, instalando-se de início justamente na capital do Alto Alentejo.
Por coincidência, a inquisição de Évora era também considerada a mais temível do reino. No tempo do cardeal-rei D. Henrique funcionava com tanta eficácia que as instalações tiveram de ser ampliadas para acolher novas vítimas. As paredes do palácio prolongaram-se até tocarem as do templo romano, a que por coincidência na altura se chamava ‘açougue’, uma vez que durante a Idade Média a icónica construção de colunas caneladas fora reduzida a essa função. Já em 1963, depois da aquisição por Vasco Maria Eugénio de Almeida, quando foram feitas obras de remodelação no palácio, descobriram-se nos caboucos os cadáveres de homens emparedados em sinistras covas subterrâneas.
Felizmente, hoje o ar que se respira é outro – em particular no interior do antigo edifício da Inquisição, transformado em 2013 no moderno Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida. Até ao final de março do próximo ano, acolhe O Riso dos Outros, de Pedro Proença, uma exposição de arte contemporânea capaz de arrancar alguns sorrisos aos visitantes.
José Alberto Ferreira, diretor do centro, define-a como uma «exposição em torno de um tema que Pedro Proença explora há muito tempo mas que ainda não tinha exposto em público: variações sobre personagens». Ao todo são seis ‘heterónimos’ de Pedro Proença – a que se junta o artista em nome próprio – que aqui estão representados, cada um dos quais com a sua linguagem própria, as suas peculiaridades, o seu pensamento e até a sua biografia. «O que faz o autor que conhecemos no meio dos outros todos que são ficções?», questiona J. A. Ferreira. «Dá-lhes realidade».
Quanto ao_curador, João Gafeira, é também ele uma espécie de alter ego do artista. Resumindo: O_Riso dos Outros é a exposição de um homem que se desdobra e que explora e minera os seus universos interiores.
A primeira sala, no entanto, mostra ainda obras de Pedro Proença ‘ortónimo’. «Uma das coisas importantes na história do Pedro é que ele faz bonecos – temos aqui alguns exemplos disso – e os bonecos são muito mal vistos no percurso académico», explica o diretor do centro. «Logo nas Belas-Artes ele teve uma grande dificuldade em situar-se numa casa que queria outro tipo de objetos. Há uma história que ele conta de um professor que lhe diz: ‘Se quer fazer bonecos, rua!’. Esse contraste com o ambiente da Academia desenvolveu nele a ideia de resistência, de combate. Muitos dos textos do Pedro passam por esta ideia de que o artworld está cheio de enfatuados que não sabem olhar para os bonecos».
Às vezes as palavras enganam, e os ‘bonecos’ de Pedro Proença são mais do que isso. São, por um lado, criações impregnadas de temas clássicos, de referências eruditas e das obsessões do próprio artista;_por outro lado, exibem essa faceta quase subversiva de alguém que desenha como quem brinca e que tem a capacidade de se rir dos outros e também de si próprio.
Pedro Proença «como criador coloca-se numa posição muito humilde, diferente do que é habitual no artworld», continua Ferreira. «É nesse lugar da criação como alegria que encontramos a expressão plena do artista. E algumas das criações que vamos encontrar colocam em jogo a ideia de autoria».
Isso é particularmente evidente na sala dedicada a Pierre Delalande (o nome completo de Proença é João Pedro Lalande Gafeira Proença). «Pierre Delalande nasceu em Avignon e tem um percurso bastante extravagante ligado à cultura clássica, à investigação e tradução dos poetas do sublime. Ao mesmo tempo, é uma pessoa que se define como um voraz citador», refere José Alberto Ferreira.
«É uma esponja cultural, um acumulador de citações, um devorador». O nosso anfitrião aponta para uma obra que mistura elementos gráficos abstratos com fragmentos de citações: «Esta série de colagens chama-se ‘Uma Autobiografia Canalha’ porque justamente este é um autor que vive de outros. Cada recorte abre espaço na collage para outro lugar: se leva a algum sítio ou não leva é indiferente – é canalha nesse sentido. O mecanismo é citacional mas depois o autor não quer saber da citação. Não são citações como nos livros, são citações tão abundantes que implicam a canalhice de não as podermos situar todas». O intuito do autor «é apenas acumular, acumular, acumular», esclarece o responsável.
Na sala seguinte, vemos obras de John Rindpest, «um artista levemente antiquado», admirador das obras tardias de Picasso, da pintura de Eduardo Batarda e dos últimos livros de Herberto Helder. As paredes exibem um conjunto de sete telas com composições tipográficas. «Os textos que estão aqui são citações de traduções da Bíblia medievais, um universo a que o John Rindpest presta particular atenção… e o Pedro também – eles são amigos», diz com ironia José Alberto Ferreira.
Às ‘sopas de letras’ – como lhes chamam as crianças que visitam a exposição – de Rindpest segue-se o registo bem humorado das peças da dupla Sandralexandra e Sóniantónia. Sobre um plinto encontra-se um crânio de bovino com pequenas ‘capas’ de croché colocadas sobre as pontas dos chifres, que por sua vez terminam num novelo de lã – uma interpretação do mito clássico do Minotauro de Creta e do fio de Ariadne. O_confronto entre os princípios feminino e masculino é outro dos temas-fortes destas «criadoras que viveram 25 anos juntas – uma parte da sua criação e da sua vida em comum passa pelo amor e pela amizade, pela construção de discursos artísticos em que as duas autoras se não distinguem». A veia feminista e reivindicativa da dupla exprime-se na perfeição numa obra composta por uma ratoeira (em que três pincéis substituem os espigões), um rato desenhado na parede e uma citação:_«As ratoeiras […] sugam energia da tradição pictórica ilusionista e machista». «Há aqui um jogo em que o rato é a ‘tradição pictórica ilusionista e machista’», decifra o diretor. Ao lado, exibe-se uma citação deturpada de Abelardo, um dos grandes intelectuais da Idade Média, junto da qual surge uma foice, numa alusão à castração do filósofo, que aparentemente foi uma vingança do tio da sua amante, a freira Heloísa.
As criações de Proença promovem esse constante vaivém entre episódios de tempos recuados e os problemas contemporâneos. Outro dos seus heterónimos é Rosa Davida, uma alentejana cujo nome, em si próprio um trocadilho, se inspirará seguramente em Rrose Sélavy, o alter ego feminino de Marcel Duchamp, um artista cuja presença paira em toda a exposição._A obra de Rosa Davida (que segundo a sua biografia ficcionada «fez parte do coletivo feminino Tampax») chama-se ‘Todos os títulos e muito mais’. «A própria tabela de exposição transforma-se numa obra», descreve J. A. Ferreira. Composta por 101 tabelas de exposição com títulos por vezes delirantes, trata-se de uma sátira aos tiques e excessos de alguma arte contemporânea.
Como contraponto a estas obras mais conceptuais – mas nem por isso desprovidas do humor – temos os desenhos de Proença, por exemplo na Sala do Tribunal. O_diretor da instituição enumera alguns dos elementos representados:_«Em cima temos uma referência ao filósofo Heraclito, ali está a lira transformada em arco e flecha, depois o fio de Ariadne em diversas declinações, está o dia e a noite, está a morte, está o amor, está uma variação sobre o Minotauro a que ele chama Minovaca, e está evidentemente a physis, a natureza». Ainda assim, adverte Ferreira, «não se explique demasiado», pois o enigma e o mistério contribuem de forma significativa para o encanto da arte de Pedro Proença, que «convida a ler, mas pergunta: ‘até onde é que a tua leitura trai o que estás a ler?’», continua o responsável. «Quando nos aproximamos dos bonecos do Pedro há sempre algo mais – ou algo menos – que produz um desfasamento que leva a outro lugar». No fundo, é espécie de jogo a dois em que o espectador se diverte com a obra e o criador se diverte a plantar «pistas que despistam». Não sendo evidente quem ri por último, fica pelo menos a certeza de que se riem tanto um como o outro – e com gosto.