Contra todos os conselhos da sua administração, Donald Trump decidiu com uma frase apenas desatar a estupefação, ira e a consequente demissão do seu secretário de Defesa, Jim Mattis. O último dos rostos respeitáveis da atual administração bateu com a porta com estrondo, numa longa carta que mostra tudo aquilo que o Presidente dos Estados Unidos não é.
Para Mattis, a decisão de Trump de fazer regressar imediatamente os soldados norte-americanos da Síria foi a gota num copo de água de divergências. Numa carta de oito parágrafos sem qualquer referência direta à Síria, o secretário da Defesa fala da sua «forte convicção» de que a força dos EUA «como nação está intrinsecamente ligada à força do nosso sistema único e abrangente de alianças e parcerias». E que o país não pode proteger os seus interesses ou «cumprir efetivamente o papel» de «nação indispensável do mundo livre» se não mostrar «respeito por esses aliados».
Ao mesmo tempo, Mattis refere que os EUA deviam ser «resolutos e sem ambiguidade» na «abordagem aos países cujos interesses estratégicos estão cada vez mais em tensão com os nossos». «A China e a Rússia, por exemplo querem moldar um mundo consistente com o seu modelo autoritário, ganhando poder de veto sobre as decisões económicas, diplomáticas e de segurança de outras nações para promover os seus próprios interesses às custas dos seus vizinhos», acrescentou.
A saída imediata das tropas americanas da Síria, não só deixarão desprotegidas as milícias curdas suas aliadas no combate ao Estado Islâmico, à mercê da Turquia, do Irão e do regime sírio que se preparam para as dizimar, como entregarão o futuro do país àquilo que a Rússia quiser, como aliado fundamental de Bashar al-Assad no inverter do curso da guerra civil a favor do regime. Além de a afirmação do Presidente norte-americano da derrota total do Estado Islâmico ser manifestamente exagerada e negada por quem está no terreno.
Segundo o New York Times, Mattis confidenciou muitas vezes em conversa com amigos nos últimos meses que a sua responsabilidade de proteger os 1,3 milhões de soldados atualmente no ativo valia o esforço de se manter no cargo de secretário de Defesa. Esta quinta-feira, o general de quatro estrelas deslocou-se à Casa Branca com a carta de demissão, ainda na esperança de conseguir convencer o Presidente a reconsiderar a sua posição sobre a Síria. Debalde. De regresso ao Pentágono, Mattis mandou distribuir 50 cópias da sua carta de demissão no edifício.
Onde explicitamente o veterano fuzileiro escreveu: «Porque tem o direito de ter um secretário de Defesa cuja visão esteja mais alinhada com a sua neste e noutros assuntos, acredito que é melhor para mim de deixar o meu cargo».
Depois de ter despedido John F. Kelly de chefe de gabinete este mês, a saída de Mattis deixa Trump sem qualquer membro da velha guarda na sua equipa de segurança nacional. Ficam Mike Pompeo, o segundo secretário de Estado em dois anos, e John Bolton, o terceiro conselheiro nacional de segurança.
Já depois de conhecida a demissão de Mattis, dois membros do Departamento de Defesa anunciaram a retirada de cerca de sete mil soldados dos EUA do Afeganistão nas próximas semanas, reduzindo o contingente para metade. Começo de uma retirada total que se prolongará por meses. Uma mudança na política de 17 anos que surpreendeu o Governo afegão, que não foi informado antes da decisão, principalmente porque a situação está longe de pacificada, os talibãs continuam a manter o conflito aceso e a realizar ataques regulares em Cabul.
Trump nem sequer alertou o seu representante especial para o Afeganistão, responsável pelas negociações de reconciliação, que horas antes do anúncio falara aos representantes talibãs do empenho de Washington na questão. «Assegurámos-lhes que se queriam lutar ou continuar a lutar, os Estados Unidos permaneceriam ao lado do Governo e do povo afegão», disse Zalmay Khalilzad, citado pelo New York Times.
Surpresa, risco e traição
A decisão unilateral da Casa Branca apanhou os aliados dos EUA de surpresa. «A decisão abrupta dos EUA de retirar as suas tropas da Síria é surpreendente não só para nós», disse o ministro dos Negócios Estrangeiros, Heiko Maas. «Há o risco desta decisão prejudicar a luta contra o Estado Islâmico e ponham em perigo as conquistas alcançadas», acrescentou o chefe da diplomacia alemã.
Ao contrário do que afirma Trump, o Estado Islâmico ainda não está derrotado. Está reduzido a 10% do território que já chegou a ter e passou às ações de guerrilha em vez do confronto aberto, porém ainda «há risco de se retirar para as montanhas e reorganizar-se», afirmou o ministro dos Negócios dinamarquês, Anders Samuelsen.
«O Estado Islâmico não foi varrido do mapa, nem as suas raízes foram arrancadas. As últimas bolsas de resistência desta organização terrorista têm de ser derrotadas militarmente», explicou por seu lado a chefe da diplomacia francesa, Florence Parly.
Para as Forças de Defesa da Síria e as Unidades de Proteção Popular, milícias curdas que têm ajudado os EUA a combater o jihadismo islâmico na Síria, a decisão unilateral de Trump é uma «traição». Os curdos temem pela sua vida, deixados à mercê de governos que os querem dizimar. Turquia, Irão e o regime sírio estão muito interessados em acabar com as forças curdas. «Corremos grave perigo. As pessoas estão apavoradas», disse um jornalista curdo de Al-Hasakah ao repórter do Haaretz.