Estava lá todos os sábados, pela manhã e durante a melhor parte da tarde, na Anchieta, ao lado da mais antiga livraria do mundo, título que nesse dia da semana acaba envergonhado pelo trabalho exemplar de alguns dos alfarrabistas e editores que ali desenham pequenas e preciosas bibliotecas, nas bancas que cobrem os passeios e oferecem uma mais sábia e generosa oferta de livros, num corte que atrai alguns curiosos e leitores inveterados de entre a turba que passeia no Chiado.
Rui Martiniano foi bancário durante alguns anos, não muito longe dali, na Rua do Ouro, mas quem o conhecia topava já então que seria uma questão de tempo até que se alforriasse com uma desculpa qualquer, para se dedicar inteiramente aos livros. Criou a Hiena Editora, um projecto literário marcante nas duas décadas finais do século passado, e um catálogo onde é evidente a colaboração entre grandes leitores, entre os quais Aníbal Fernandes ou Herberto Helder, entre tantos outros. O primeiro assinalou o excepcional esforço de divulgação que foi feito durante os anos em que a Hiena foi editando, e basta referir os nomes de alguns dos tantos autores que Martiniano publicou, em alguns casos pela primeira vez: Antonin Artaud, García Lorca, D.H. Lawrence, Oscar Wilde, Nerval, Rimbaud, Genet, Élie Faure, Céline, Baudelaire, Bataille, Mallarmé, Boris Vian, René Crevel, Marina Tsvietaieva, Djuna Barnes, Saint-John Perse entre tantos outros. Quanto a autores portugueses, publicou António José Forte, António Vieira, Paulo Jorge Fidalgo, Paulo Varela Gomes e outros mais.
Como poeta Martiniano assinava Rui André Delídia, e publicou "Luz Negra" (1988) e "Arte Inútil" (1991, volume que colige a poesia escrita desde 1981), na Hiena, tendo já antes publicado "Praias e Leopardos" (Eixo Sul Edições, 1987). Na recensão que assinou na Cóloquio Letras (n.º108, Março de 1989) a "Luz Negra", Fernando Pinto do Amaral falava num "poeta que, de entre os mais recentemente revelados, se tem distinguido pelo obsessivo culto da metáfora como mecanismo para a irradiação de sentidos que o poema deve desencadear", e acrescentava: "O seu projecto criador, se bem que recolhendo os frutos de uma fecunda leitura de Herberto Helder, foi evoluindo até chegar a este volume já dotado, quanto a mim, de uma vitalidade própria, cuja consistência parte da ideia segundo a qual através da escrita «descobre-se a essência secreta do verbo,/ o peso exacto das nuvens, o significado real da palavra/ que rasga os caminhos obscuros".
Ao i, Aníbal Fernandes disse que lhe foi muito grata a convivência que manteve ao longo dos anos com Martiniano, alguém que revelou sempre excelentes qualidades humanas, "nunca traía", e em cuja palavra podia confiar-se absolutamente. E acrescenta que foi, não só como editor, mas no campo pessoal, uma pessoa de virtudes raras. Fernandes esclarece ainda que decidiu pôr fim à actividade da Hiena por sentir que lhe faltava a estrutura para suportar o peso que vinha ganhando, continuando desde então ligado aos livros mas como alfarrabista, e um que tinha na sua banca na Anchieta "uma escolha que não se repetia nem confundia com a das outras".