António Garcia (nome fictício) já não acredita em sonhos e foi isso que o levou ao Marquês de Pombal com aquele colete amarelo igual ao das pessoas que durante dias viu a abrir telejornais em França e no resto do mundo. Pouco passa das 12h e está de pé numa das bermas da principal rotunda da capital, junto à entrada da Avenida da Liberdade. Nos protestos de ontem – que contaram inclusivamente com a participação do líder do PNR, José Pinto Coelho – António fazia questão de reforçar o porquê de estar ali: é impossível sonhar «num país onde as condições salariais e de vida, são poucas».
Foi exatamente a falta de condições que levou centenas de manifestantes às ruas um pouco por todo o país. Longe de ser o que se esperava – segundo o evento na rede social Facebook, eram esperados cerca de 40 mil portugueses espalhados de norte a sul – os coletes amarelos juntaram-se apenas em algumas cidades.
O relógio marcava sete da manhã e, na ponte 25 de Abril, um dos locais apontados pela PSP como muito instável, o trânsito fluía normalmente. Os agentes, esses estavam em força no acesso à ponte, com carrinhas e reboques, mas os carros que passavam eram apenas os de pessoas que se dirigiam para Lisboa para trabalhar. Junto às portagens, na ponte do Pragal, eram muitos os que passavam e paravam para ver se havia alguma movimentação em tons de amarelo. Nem sinal. Mas eis que surge Cândida Machado, de 56 anos. Tira o colete da mala e veste-o. Começa a protestar e, sendo reformada, apoia a reivindicação por «uma reforma digna».
A Cândida Machado e ao marido juntou-se um grupo de seis pessoas, todos vestidos a rigor para o protesto, mas logo abandonaram a ponte do Pragal e rumaram a Lisboa. «É lá que está toda a gente», disseram. E foram para o Marquês de Pombal. Às 9h30 da manhã não havia sinal de manifestação junto àquela ponte que é símbolo de liberdade.
E, de facto, foi na zona do Marquês de Pombal que os protestos se fizeram sentir na cidade de Lisboa. Conceição Silva, motorista de pesados, também se deslocou da ponte para a rotunda do Marquês de Pombal. «As pessoas estão com medo, por isso é que não se juntam e a culpa passa muito pelo que tem sido dito nos últimos dias», conta Conceição, que se junta às dezenas de manifestantes.
Já a zona do Porto foi onde se registou uma maior agitação por parte dos coletes amarelos. Na Baixa do Porto, Maria Antonieta, uma portuense de gema, não contava com tanta confusão e acabou por ser arrastada pela multidão. Ao aperceber-se do burburinho com a chegada das pessoas que foram a pé de Francos para o centro da Invicta, não resistiu a apoiar os seus gritos e sensibilizar os políticos. Ainda no Nó de Francos, um automobilista foi agredido perto da rotunda, mas a PSP dirigiu-se de imediato para o local, evitando que as agressões continuassem. Em Braga, no Nó de Enfias, os automóveis que não aderiram ao protesto foram pontapeados.
A nível nacional, este foi um movimento que teve pouca expressão e muita PSP. A maioria das zonas onde eram esperadas centenas de pessoas ficaram vazias e os locais onde se viu mais gente vestida de amarelo fluorescente acabaram por desvanecer ao longo do dia. Alguns queixam-se de falta de organização, outros apontam o dia como um ponto negativo. «Se fosse eu a organizar era ao sábado. Em França foi sempre ao sábado, porque as pessoas têm mais disponibilidade. O movimento perde força assim», garante um manifestante que tirou o dia para poder ir à manifestação.
Quem são os manifestantes?
Tem 19 anos e foi talvez o manifestante mais novo que se viu na praça do Marquês de Pombal. Sozinho, vestido de preto e colete amarelo, encostava-se à margem da rua Braamcamp, enquanto os restantes se sentavam no chão da estrada que estava cortada com grandes faixas pintadas com palavras como «juntos somos mais fortes». Observava, apenas. «Vim para aqui, não tanto por me identificar com as reivindicações, mas para ver como é que isto se ia desenvolver», conta o jovem de Oeiras que não se quis identificar. Mas, porque é que não se identifica? «Acho que o movimento é legitimo, acho é que da maneiro como está a decorrer não vai atingir os fins que pretende. Porque as reivindicações que estão a ser pedidas não vão ser dadas de bandeja. Não que eu apoie, mas acho que para ir para a frente, tem de tomar um rumo diferente», acrescentando que «a necessidade de mudança estrutural tão profunda que as pessoas têm não é conseguida com estas manifestações». No fundo, a manifestação é aqui comparada com uma utopia: todos querem tudo, mas é difícil de concretizar. «É algo que maior parte das pessoas pensa, mas não quer exprimir», concluiu.
Ao lado, mas acompanhada pelos amigos, estava Ana Paula. Enquanto ninguém decidia o que fazer com a manifestação, o centro das atenções era uma cadela com as orelhas pintadas de cor de rosa e vestida com um colete amarelo, tal como pedia o momento. Com 53 anos, Ana Paula é fotografa e dona de uma empresa de fotografia. Faz o que gosta, mas não consegue pagar o que quer aos funcionários. «É muito complicado com os impostos, eu quero pagar os ordenados e é difícil. Eu não pago ordenados decentes e não pago porque não me deixam. É uma frustração horrível. As dividas ao fisco por não conseguirmos pagar à segurança social, às finanças, é assim que as empresas vão abaixo».
Uma das reivindicações que mais se ouvia era a favor dos reformados e do aumento do valor das pensões. E aqui entra uma reformada por invalidez. Pedindo ao SOL anonimato, como grande parte dos manifestantes, a pensionista admitiu que recebe 250 euros mensais e que gasta mais de cem em medicamentos. Já o filho conta: «A primeira vez que pedi apoio à Segurança Social, deram-me um cartão para a sopa dos pobres, para pessoas que não têm teto». Quem ontem ali estava dizia querer até «lutar pelos direitos de todos, até dos polícias que dormem nos carros».
A política no centro
Ao início da manhã, na ponte 25 de Abril, Cândida Machado afirmava que «o ministro da Educação é um erro de casting» e que todos os políticos «estão no Governo para o mesmo».
Já no Marquês de Pombal, enquanto brincava com a cadela vestida a rigor para a manifestação – de colete amarelo -, a fotógrafa Ana Paula remetia para o caso das falsas presenças de José Silvano, evidenciando o desagrado face à classe política: «Nós não temos ninguém no nosso posto de trabalho que nos pique o ponto para nós irmos passear a avozinha, ou a tia. Não, para ir ao hospital perdemos um dia de trabalho. Eles não, pedem a uma amiguinha que faça lá o registo e pronto».
Mais a norte, de bandeira francesa em punho, Manuel Sousa, apresentou-se junto ao Nó de Francos, acompanhado de outros elementos de um dos grupos de Lesados do BES, dizendo que «até dos outros bancos somos também prejudicados com as falências». Segundo o antigo emigrante, «há 40 anos que os políticos andam a prometer isto e aquilo, mas o poder de compra é cada vez menor, por isso as pessoas revoltam-se. Foi o que aconteceu agora em França – uma gota que fez transbordar o copo. Eles já conseguiram algumas coisas, mas estou convencido que vão conseguir ainda mais, pois eles têm toda a razão».
A corrupção foi palavra comum à maioria dos manifestantes, e surgiu sempre associada à política. Relembraram casos com o de Sócrates, Miguel Relvas, Ricardo Salgado, e perguntaram «se eu dever doze cêntimos às Finanças, penhoram-me a casa. Quando eles roubam milhões o que acontece?»
Longe de parar o trânsito
De norte a sul do país registaram-se alguns momentos de tensão, mas sempre longe de parar ou cortar estradas. Segundo fontes da PSP, os agentes estiveram a preparar-se para a manifestação que muito prometia durante as últimas semanas. A mobilização das forças de segurança foi visível em todos os pontos indicados pela PSP como críticos. Ao meio dia, os polícias continuavam junto à Ponte 25 de Abril por prevenção, apesar de nunca ter parado um colete amarelo na portagem que liga Almada a Lisboa. À mesma hora, mas do outro lado da ponte, estavam os coletes amarelos restritos a um perímetro de segurança, mesmo na rotunda do Marquês de Pombal. Depois de tentarem descer a Avenida da Liberdade em marcha lenta e gritos de protesto, a PSP decidiu confinar a área de protesto. Cerca de uma hora depois foram «libertados» e começaram a dispersar.
A desorganização evidente abriu espaço para a PSP conseguir controlar todas as situações e ao final da tarde, a mancha amarela já não se via. Para o futuro, os manifestantes garantem que este protesto foi «só um warm-up para um grande campeonato que aí vem»: «Já estamos a preparar outras manifestações». Fica a dúvida se, de facto, as próximas terão mais adesão e serão capazes de pintar de amarelo o país.
*Com Carolina Brás e Joaquim Gomes