Passou os primeiros anos da sua infância na fábrica de cerâmica Lusitânia, onde é hoje a Culturgest. Uma fábrica no meio da cidade.
O meu pai era engenheiro, inicialmente ligado à indústria da faiança. Está lá uma chaminé de tijolo ainda desse tempo. O engenheiro vivia na fábrica e por isso vivíamos ali, em frente ao Palácio Galveias. Andava no colégio ABC ao pé da Casa da Moeda. Tenho a fotografia de uma festa de carnaval em que estou vestido de médico.
Uma premonição?
Já havia essa tendência com certeza. Brincava naqueles jardins do Campo Pequeno e à noite fazia rondas com o meu pai na fábrica. Lembro-me de passar ao pé do forno, de estar quentinho. Desses tempos uma coisa que ficou foi o managing by walking around. A importância do contacto pessoal. Sempre fui mais rebelde para as chefias do que para os que estão abaixo de mim.
Viviam bem?
Era uma vida simples. A distração da família era ir à cervejaria Zé Ricardo ver televisão ao sábado e comer tremoços. Não tínhamos televisão em casa por isso arranjávamo-nos, atravessávamos a rua e íamos ver aquelas séries, o Bonanza, Os Quatro Homens Justos.
A sua mãe foi alimentando a ideia de que um dia seria médico.
Era uma coisa um pouco mítica na família. Esteve doente a certa altura e acompanhei-a nos tratamentos, a figura do médico foi sempre enaltecida. Quando eu nasci terá dito ‘este há de ser um grande médico’. Fui cirurgião.
Era a melhor profissão que um filho podia ter?
Era uma profissão muito respeitada. Tinha um respeito que hoje, infelizmente, já não tem. Mas a medicina é uma profissão de privilégio, não necessariamente por aquilo que os médicos ganham – uns ganham muito bem e outros ganham menos – mas pela outorga do direito de mexer no corpo e na alma dos outros.
É o privilégio maior?
É como o vejo. Treinei-me em Inglaterra e, quando fiquei quadro do hospital inglês como chefe de serviço, saiu na folha de serviço: ‘Mr. José Fragata has now surgical privileges with us’. Privilégios cirúrgicos. Claro que a sociedade depois cobra com a necessidade um comportamento imaculado e dever para com os outros. Esse privilégio exige ao médico uma conduta irrepreensível.
Tinha o peso dessa responsabilidade quando pensou no curso?
Não, pensei no tipo de bata branca. Fi-lo pelo contacto com alguns médicos, embora não houvesse médicos na família, e por ouvir sempre a minha mãe a dizer aquilo. Não tive um tio médico para copiar, nem um avô. Não tinha médicos na família.
Há essa tradição.
Sim e isso torna a exceção mais difícil. Desde logo fiz algumas coisas que podiam ter sido feitas mais cedo se tivesse tido uma família médica que me orientasse. Somos o resultado dos genes que temos e da educação que levamos e a educação foi nesse sentido do dever de estudarmos. O meu pai era muito exigente. A Medicina foi assim, vem desde muito cedo. Não sei quem a soprou, mas está ali naquela festa de carnaval.
Percebeu logo que ia para cirurgia?
Até era para ir para cardiologia mas depois o contacto com o professor Rodrigues Gomes, do Porto, lançou-me na cirurgia cardíaca. O Hospital de Santa Cruz estava a criar-se e acabei por ir com o João Queiroz e Melo e o Dr. Machado Macedo e foi aí que tudo começou no dia 1 de junho de 1980, há 38 anos.
Entretanto operou mais de 10 mil doentes, metade crianças.
Sim, mais ou menos isso.
Lembra-se da primeira vez que tocou num coração?
É uma coisa do outro mundo. Ainda hoje faço este exercício quando tenho tempo: ter um aluno de Medicina, pedir a uma enfermeira que o ensine a desinfetar-se e depois pegar-lhe na mão e pôr-lhe a mão em cima de um coração a bater… É uma emoção muito grande. Já houve dois que foram para cirurgia cardíaca. Hoje é banal, ainda ontem toquei num, segunda toquei em dois. Mas, sendo rotina, é sempre especial. Na primeira vez a pessoa sente-se intimidada mas depois é como tudo, como andar de bicicleta, vai ficando à vontade.
Guarda memória de algum coração muito fora do comum?
Tantos. A cirurgia nos livros é sempre mais simples e de uma coisa temos a certeza: quando abrimos o doente, aquilo que está lá dentro é sempre verdade. É uma das máximas. Quando digo que operei 10 ou 12 mil doentes, devo ter estado em 30 ou 40 mil operações. Já devo ter visto 30 ou 40 mil corações.
Qual foi o coração mais pequenino que operou? Foi a menina de 70 dias a quem fizeram um transplante?
Hoje operamos bebés de 500 gramas para coisas simples como laqueações de canal arterial em prematuros. Bebés de 480, 500 gr.
O coração é do tamanho de um berlinde?
Pouco mais que um ovo de codorniz.
Que casos custam mais?
Uma operação grande é sempre um grande desafio técnico. À medida que a experiência aumenta, o desafio vai sendo menor, há menos inesperado. Hoje a responsabilidade que sinto mais pesada é a moral e a social. A moral é a obrigação de não errar, ou de errar cada vez menos. E depois há a responsabilidade social. Operei na segunda-feira um senhor com 92 anos. É muito mau se ele morrer. Para a família, para a velhota. Um recém-nascido também é muito mau. Mas operar uma criança com 10 ou 11 anos com um defeito simples e ela morrer é uma calamidade.
Aconteceu-lhe?
Aconteceu já a todos. É muito raro, excecional, mas aconteceu. Aconteceu por erro, por acaso, aconteceu por tudo. As pessoas têm dificuldade de aceitar isto até porque a medicina foi vendendo uma imagem de uma infalibilidade absoluta quando não é. A medicina é muito falível.
A idade traz o medo de perder capacidades?
Tenho 65 anos, não estou para me reformar, até aos 70 andarei por aí e agora com um novo diploma do Governo pode ser até aos 75. Não perdemos as capacidades todos da mesma maneira e não perdemos todas as capacidades ao mesmo tempo. Perdemos visão tridimensional, de detalhe, paciência, mas vamos compensando com experiência e eu estou ainda naquilo que considero a chamada fase compensada.
Mas faz sentido a reforma obrigatória aos 70 no Estado, que agora o Governo se prepara para mudar?
As decisões devem ser caso a caso. Há pessoas que devem sair aos 60, outras aos 70, outras não deviam ter começado e há muitos que aos 70 saem injustamente. No dia 30 são ótimos e no dia 31 já não prestam. Isso é muito grosseiro. Contudo, se dissermos que isto não é assim, abrimos uma caixa de Pandora porque toda a gente se vai achar imprescindível. As pessoas na casa dos 40/50 também têm direito a almejar posições de chefia.
Como se resolveria isso?
De uma forma muito simples: permitindo que, seletivamente, algumas pessoas fiquem nos lugares não em posição de chefia mas em posição de advisers ou treinadores. Se eu depois dos 70 anos ficar a treinar cirurgiões, ninguém se pode chatear com isso e eu sou útil pela minha experiência. Consigo salvar vidas sem ir ao bloco, por opiniões, por conselhos.
Isso já domina o seu dia?
Cada vez mais, tenho feito esse hand over. Vamos à cabeceira do doente e damos um conselho, claro que é preciso que seja ouvido porque depois há a irreverência própria dos mais novos. Os meus colaboradores certamente estão desejando que eu me vá embora. Se eu agora anunciasse que só saía aos 70, ficavam tristes. Se dissesse que só saia aos 75 suicidavam-se. Estou a empatar um lugar. Não temos o direito de parasitar ou de fechar os lugares tempo de mais. Treinei uma boa percentagem dos cirurgiões cardíacos da cidade e já treinei várias gerações. O meu ciclo nesse aspeto cumpriu-se.
Trabalha ao lado da sua mulher, a médica anestesista Isabel Fragata.
Conhecemo-nos no primeiro dia da faculdade e já durámos 42 anos. Apesar de ser mais fácil fazermos equipa, não é mais fácil em tudo. Se potencia o trabalho também potencia os conflitos.
São os dois próximos dos doentes, convivem com eles. Porquê?
Temos uma noção de medicina que faz equipa com o doente.
Hoje fala-se de ‘pôr o doente no centro do sistema’.
É um chavão demagógico como outro qualquer. Acho que pôr o doente no centro é curto. Tem de se pôr o doente e o profissional como equipa. O doente vem ter comigo, explica os seus problemas, eu digo-lhe o que posso dar e tenho a obrigação de advogar em seu benefício. É uma relação de confiança. Há doentes que dizem: ‘Se o doutor correr esse risco comigo, eu corro’. É uma maneira simples de pôr as coisas. Corremos riscos juntos. O professor Lobo Antunes dizia-o muitas vezes: a palavra paternalista caiu em desuso e tem hoje uma conotação pejorativa. Se eu me substituir à sua capacidade de autonomia decisora enquanto doente, estou a ser paternalista e isso é condenável. Mas o doente é um ser vulnerável: espera que, num momento de fragilidade, eu seja paternalista. Aqui é uma asserção de suporte e proteção.
Isso os doentes continuam a querer?
Os doentes nunca vão mudar nisso. Mudaram na informação que têm sobre a doença e isso aumenta o escrutínio. As pessoas chegam ao pé de nós a dizer que sabem isto e aquilo e que, para o que têm, sabem que somos a melhor pessoa ou então não somos, ou vieram pedir uma segunda opinião. É algo normal e desejável. Estes doentes não precisam que eu me substitua a eles na decisão, precisam do meu suporte para decidirem. Mas, na essência, o doente ou a mãe aflita é tão aflita hoje como era na Idade Média ou quando me treinei em Inglaterra. As pessoas são mente e sentimentos e essa fragilidade precisa de uma resposta humana. É por isso que a Medicina pode ser tecnicamente exercida por máquinas mas, como dizia também o João Lobo Antunes, não se encontrou ainda na parafernália da técnica médica nada que substitua o olhar, a empatia, a compaixão, a mão em cima do ombro. Essa noção da importância da empatia vem-me desde as visitas à fábrica com o meu pai e vale para a gestão. É muito difícil gerir de uma secretária com os trabalhadores lá em baixo. Não pode gerir o hospital quem não seja capaz de cheirar o éter.
Há desses gestores no SNS?
Então não! Também podemos gerir com números, mas isso não funciona.
Para a dimensão atual dos hospitais, os números têm de fazer parte da equação mais do que no passado, não?
Sim, mas não podem ser só os números. Hoje um grande centro hospitalar tem facilmente um budget de 500 milhões de euros. É óbvio que, para gerir 500 milhões, temos de ter gestores profissionais de alta qualidade. O meu departamento tem 45 milhões de euros de budget. A gestão de um serviço clínico deve ser clínica e coadjuvada até em igualdade por um gestor profissional. Se 45 milhões de euros não justifica um gestor profissional, o que é que justifica? Mas, se compararmos a exigência da gestão pública com a gestão privada, a exigência da privada em termos de quadros é muito mais elevada do que do lado da gestão pública. Os critérios de atribuir lugares na gestão pública entram muito na máquina partidária.
Os ‘boys’?
Portugal tem uma democracia muito jovem e há demasiada política na Saúde. Não só nisso. Quando qualquer um de nós está doente, assaltam-lhe duas preocupações. A primeira é se o sítio onde vai tem qualidade. A segunda é se o sítio tem acesso: acesso em tempo e em termos da sua capacidade de pagamento. Nesta equação ninguém diz que a preocupação é ir ao público ou privado. Para esta centragem do doente do sistema, esta cisão entre público e privado entra não na perspetiva do doente mas da política. Temos estado toldados pela discussão do público e do privado que se transformou numa arma de arremesso político e que impede, por receio de perda de votos, os partidos à esquerda e à direita de fazerem o que deviam. E o que deviam fazer era uma aliança de regime sobre a Saúde, como o Presidente da Republica tem pedido.
Essa relação público/privado está na ordem do dia com a aprovação da proposta do Governo para rever a Lei de Bases da Saúde, que está a ser criticada por Maria de Belém Roseira por não ter vertido todo o trabalho da comissão. Algumas alas veem uma viragem à esquerda.
Fiz parte desses trabalhos, fui uma das pessoas ouvidas. Somos um país que não é rico. Tem uma economia a crescer, para o Governo muito, para outros não tanto, mas que está em desaceleração e vai cair nos próximos dois a três anos. Depende de ações volúveis como o turismo. Estamos melhor, claro, o desemprego baixou. Mas somos um país de recursos limitados para a Saúde. Portugal gasta cerca de 10% do PIB na Saúde. A média da OCDE é 9,8%.
Mas aí entra a despesa privada. Cinco e pouco por cento vêm dos nossos impostos e é isso que o Estado tem estado preparado para investir na nossa saúde. Portanto, um Estado que se perfila e quer ter um sistema público tem estado abaixo da média. Eu percebo a bondade das pessoas que, por inclinação política, defendem que o serviço de Saúde seja todo público. Têm é de arranjar dinheiro para o pagar e até agora não arranjaram. Se olharmos para o que se está a passar em Lisboa, veremos muito facilmente que o grupo Mello está a construir um grande hospital em Alcântara, o grupo Luz Saúde construiu um grande hospital ao lado do que já tinha e comprou mais qualquer coisa, os Lusíadas adquiriram a clínica da Reboleira e entretanto não vemos o hospital de Lisboa Oriental andar como devia.
São sinais contraditórios?
Sim. Um Governo não governa o público, governa o país. Pareceria ser do interesse do Governo, não fosse o estereótipo político, incorporar toda a área privada, que é muita, até porque o Estado nos últimos anos por causa da crise e da troika não investiu nada – e calcula-se que o investimento necessário no público seria mil milhões de euros que o Estado não tem ou não optou por gastar na saúde. Seria elementar chamar privado e setor social e incorporá-lo num sistema nacional de saúde, formando uma rede de prestação. Com duas características: o doente ‘no centro do sistema’ podia ir onde quisesse e os profissionais que trabalhassem num lado não podiam trabalhar no outro.
A Lei de Bases do Governo retoma o tema da exclusividade.
Isso implica investimento que não tem acontecido. Se o Estado quer exclusividade tem de poder pagá-la. Não podemos ser poetas. Ninguém que trabalha no Pingo Doce vai trabalhar à tarde no Continente. É que ninguém lhe pede exclusividade, põem-no na rua. Isso acontece no SNS porque o SNS só se financia com 5% do PIB. O que tem acontecido na Saúde é um desinvestimento gritante. O Governo tem duas hipóteses: ou é coerente e reforça o investimento no SNS ou alarga. Mas atenção, tem de melhorar a gestão, porque se não está a pôr dinheiro numa empresa que não está a funcionar bem. E a exigência da gestão implica menos política no SNS. Trabalhei em Inglaterra, que é um país civilizado. Quando mudava o ministro da Saúde não sentíamos. Cá, quando muda o ministro da Saúde, nós sentimos na direção dos hospitais.
Hoje não há maior estabilidade nos conselhos de administração?
No fim de mandato mudam, como muda muita coisa. A Saúde é um laboratório de modelos de gestão. Oscilamos dos hospitais de administração pública para os hospitais-empresa. Mantiveram os dois modelos, fizeram estudos e teses de doutoramento, depois experimentaram-se as parcerias público-privadas, que obviamente a esquerda profunda não quer.
A ministra da Saúde anunciou que a PPP de Braga poderá passar para gestão pública. É uma mudança?
Braga é um hospital que tem os índices melhores possíveis. Está ligado a uma das melhores faculdades de Medicina do país, digo-lhe eu como vice-reitor da NOVA. É um hospital escolar que funciona na perfeição. A população está satisfeita.
Acha que o Estado não vai conseguir fazer melhor?
Tenho a certeza que não. Temos o exemplo do Amadora-Sintra.
O Amadora-Sinta foi planeado para 300 mil utentes e tem de dar resposta a 600 mil. Não é esse o problema de base?
Olhe para a gestão pública em geral e veja se está bem. Não deve estar, porque os hospitais públicos têm uma dívida a fornecedores de milhões, os médicos sistematicamente abandonam o setor público para o setor privado. O que se passa com Braga? Provavelmente o contrato foi feito tendo em conta exigências clínicas e farmacológicas que se foram alterando ao longo do tempo como hepatite C e VIH e as regras não podem ser imutáveis. Faço o disclaimer de que trabalho nesse grupo privado [médico na CUF, do grupo José de Mello Saúde], mas honestamente não tenho nada a ver com Braga e custa-me ver desmantelar uma estrutura que está a funcionar. Sou um homem do setor público. Fiz privada, com certeza, mas onde fiz os meus avanços pessoais e na Medicina foi no público. Mas os últimos tempos têm sido de marasmo absoluto, erros de gestão e uma entropia própria que tem a ver sempre com o entrosamento político. Há forças políticas que encaram a Saúde como tendo de ser inexoravelmente estatizada, o que, se for para os países do norte da Europa, é assim mas tem um enquadramento diferente. Na Suécia ou Noruega, os meus colegas praticamente não fazem privado: o sistema público responde tão bem que as pessoas não têm de lá ir. Mas o Estado norueguês não põe 5% dos impostos dos cidadãos na Saúde. O Estado, se quer este discurso, tem de pôr mais dinheiro no SNS. Assuma-se, crie uma carreira que seja apelativa, vencimentos condignos para médicos, enfermeiros e técnicos, ponha lá gestores de qualidade, compita com o setor privado, acabe com eles.
O preâmbulo da lei de bases associa o forte crescimento do privado nos últimos anos a uma desnatação do SNS. Essa desnatação é real?
Não podemos dizer que o setor privado está a desnatar o setor público. É aquela pergunta do Kennedy. O que é que o setor público tem feito para ser atrativo? Paga piores salários, dá piores condições sociais e de trabalho, tem restrições de material e pouco acesso a desenvolvimento tecnológico. Investimento zero. Educa e ensina médicos mas não cuida dos reter. Esta ministra agora, e bem, está com vontade de fazer passar legislação que obrigue os médicos que queiram sair a indemnizar o Estado. Até agora cumprem seis anos de formação e no dia a seguir assinam contrato com o privado. Não faz sentido. O privado, como já faz, devia treinar os seus médicos e a pessoa trabalhava num lado ou trabalhava no outro.
Adalberto Campos Fernandes revelou esses planos ao SOL há mais de um ano e os médicos contestaram.
O Governo tem poder e não se coíbe de ter conflitos e enfrentar greves, cada um tem de assumir as suas responsabilidades. A Ordem deve pugnar pelas boas práticas e advogar o interesse da Saúde e penso que não se oporá a uma separação, desde que as pessoas sejam devidamente pagas. Isso era algo que até ao setor privado interessaria, ficaria mais aliviado da carga salarial que tem. Obviamente o setor privado está vocacionado para profit.
O Estado, abarcando parcerias com privados, não está a promover o lucro dessas empresas?
Se essa indústria criar valor e servir o Estado, por que não? A preocupação que o Estado deve ter é garantir que qualquer cidadão que precise de assistência a tem, em tempo e com qualidade. O modo como isto é prestado varia: pode ser prestado pelo setor público, social ou privado. O Estado tem optado por uma coisa meio incestuosa, passe a expressão, que é financiar, prestar, controlar e fiscalizar. O resultado é o que temos à vista, é mau. O SNS não está bem.
Não está melhor?
Não está melhor, está pior. Podem dizer o que quiserem. O problema é que isto convém a toda a gente. Houve um desinvestimento total nos últimos cinco a sete anos. O Governo não estendeu à Saúde aquilo que estendeu à banca. Mas de quem é a culpa disso? Os privados não são acionistas do Estado. A minha visão é a seguinte: há hospitais no setor público, há hospitais no setor privado e o setor social devia ser chamado à responsabilidade de proximidade. A senhora podia escolher ir onde quisesse e eu, quando a visse, não sabia se é do público ou do privado.
Mas hoje já não é bem assim. Às vezes se quer marcar um exame pelo SNS só têm vaga dali a semanas. Se for pelo seguro há médicos disponíveis mais depressa.
Depende do convénio que têm mas isso cabe ao Estado regular. O Estado poderia sempre ser maior ou menor consoante a capacidade que tiver. O Estado neste momento tem voz para falar pelos 5% do PIB que mete na Saúde. Não tem voz para mais nada.
Ficando o Estado mais dependente de privados para dar resposta, não terá menos margem para negociar preços? Não arrisca pagar mais?
O Estado diria aos vários prestadores privados que competem entre si: tenho aqui 5000 colonoscopias para fazer por ano e estamos dispostos a pagar isto. E esmaga os preços como qualquer entidade contratadora. É falso que ficaria mais caro. E tinha outras vantagens: permitia melhorar o acesso controlando a qualidade e a satisfação. Mas com isto tinha de deixar de controlar os hospitais e deixava de ter uma agência contratadora até para a política. Mas isto é a minha visão: temos Estado a mais. Penso que o Estado deve ter uma palavra a dizer sobre infraestruturas essenciais. Na Saúde deve ter uma palavra a dizer sobre quantas unidades de PET e ressonância o país deve ter, numa perspetiva de distribuição do acesso. E deve assumir o que muito dificilmente pode ser feito no privado: transplantação, imunooncologia, coração artificial. Vai sempre haver um ramo que o setor público tem de assumir.
O ramo que sai mais caro, que não há seguros que paguem?
Se o setor público tiver capacidade para assumir tudo, não tenho nada contra que assuma. Mas sejamos conscientes: não vemos músculo financeiro, nem disponibilidade nem interesse. Sendo assim, temos de recorrermo-nos do setor privado. E vamos ser práticos: se nos recorremos do privado e queremos manter o setor público, então que o setor público se concentre naquilo que os outros não conseguem fazer.
Como vê a greve cirúrgica?
Nunca fiz greve enquanto médico. Acho que saúde e greve ligam mal. Os serviços mínimos têm de ser muito bem regulados. É terrível dizer isto porque o direito à greve é uma conquista, mas é muito difícil. Temos tido muitos dias de greve. Umas vezes são os médicos, outras são os enfermeiros e outras são os auxiliares. Sem auxiliares também não abro o bloco operatório.
Não existe historicamente uma grande diferença salarial, os médicos num pedestal e os enfermeiros num segundo plano?
Os médicos não estão em pedestal nenhum. Os meus especialistas ganham 2000 euros por mês e os enfermeiros ganham mil e qualquer coisa. Podíamos discutir aqui as licenciaturas. Percebo a revolta dos enfermeiros e não lhes tiro razão nenhuma. Mas substantivamente, os custos desta greve e o preço da razão está a ser difícil de pagar. Independentemente de discutir esta greve, o que o Governo devia pensar é que isto é um sintoma de algo vai mal no SNS. Aliás, algo vai mal no país porque o Estado, em todas as áreas, está a falhar todos os dias.
Anda mais preocupado?
Hoje vinha de casa e passei no viaduto Duarte Pacheco às 7 da manhã, como de costume, e disse ‘espero que estes tipos estejam a fazer a manutenção do viaduto como devem’. A minha mulher respondeu: ‘não sei, se calhar vamos passar a vir pela praça de Espanha’. Começamos a pôr as coisas em causa. No SNS muitas das falhas nós, médicos, enfermeiros e um ou outro gestor, vamos suprindo. O meu serviço tem falhas gravíssimas.
Por exemplo?
Equipamento, material de consumo corrente e de pessoal. As 35 horas tiveram um impacto no horário dos enfermeiros que fez com que fechássemos 14 camas. Isto não são estados de alma políticos, são realidades do terreno.
A ministra Marta Temido está a ser conotada com um pendor ideológico mais à esquerda. Foram colegas na NOVA. Que avaliação faz?
A ministra Marta Temido é uma mulher inteligente, que conheço há muito tempo de outras lides e desta casa pelo papel que tinha no IHMT. É uma pessoa ligada à Saúde e tem obrigação de conhecer o sistema. Tal como Adalberto Campos Fernandes, são pessoas bem preparadas para o cargo. O meu receio é que o que se passa na Saúde e no Ministério não seja tanto resultado da personalidade que lá põem mas da política que têm de exercer. Pedi-lhe uma audiência e estou à espera que me receba porque tenho assuntos graves do serviço a tratar com ela. Penso que há aspetos nesta área da transplantação pulmonar que o Governo deve olhar de forma séria para que não se percam. Não sou ninguém para dar conselhos, mas parecia-me tempo de investir um pouco mais. É uma área com repercussões sociais importantes, com retorno. Veja os corações artificiais.
Quantos já pôs?
Compraram-me dois, foi aqueles que pus. Acho que Santa Cruz pôs dois ou três. É a tendência em todo o mundo civilizado dada a falta de dadores. O resultado é fantástico, as pessoas fazem uma vida normal.
Mas teria mais candidatos?
Tenho dez ou doze doentes em lista para transplante e, desses, seguramente dois ou três poderiam fazer o coração artificial.
Não há dinheiro?
Nós temos tido dificuldades com supply correntes…
Onde está o bloqueio?
Esta administração do hospital tem feito um esforço que lhe deve ser reconhecido de garantir equipamento macro no serviço e conseguiu 2 milhões de euros de financiamento. Estou a falar de supply correntes que dependem se calhar mais de questões operacionais de aprovisionamento e muito da relação dos hospitais públicos com os fornecedores, que é não pagar. Era altura de, de uma forma desabrida, sem viés político, colocar as cartas na mesa e saber qual é a dívida real, manifesta e oculta do SNS, saber quando vai ser liquidada e o que fica para investimento. Como dizia Abraham Lincoln, há que fazer escolhas. Não conseguimos prover no setor social das reivindicações e no setor do investimento. Depois admiramo-nos que caiam estradas, que as comunicações sejam difíceis. Só pela enorme qualidade técnica das pessoas que estão nos hospitais é que não tem havido mais desastres e mais erros, porque as condições de trabalho são más. Temos dois problemas na nossa época: não vê nenhum homem ou mulher lutar por causas e aligeirou-se o peso das palavras.
Com comentários a toda a hora?
Ninguém liga a nada do que se diz. Um indivíduo como eu pode estar a dizer isto mas ninguém vai ouvir. Ou, por outra, ouvem mas não escutam. Acho que os responsáveis deviam ouvir as pessoas que estão no setor e que se preocupam com o SNS. Isto faz-me lembrar aqueles aviões que estão a cair muito depressa. Não é por dizer que gosto do setor público ou fazer discursos anti-direita ou anti-esquerda que se resolve. Isto resolve-se com mais investimento, com melhor gestão e com uma reforma capaz.
A lei de base não pode ser o principio desse reforço de investimento?
Princípio e vontade não duvido. Duvido é que haja os meios.
É uma posição ingrata para a ministra da Saúde?
Acho que foi uma atitude muito generosa dela ter tomado o poder nesta altura. Eu não teria tido essa generosidade.
Alguma vez o desafiaram?
Não, por aquilo que já disse seria muito difícil que algum primeiro-ministro…
Num Governo mais à direita?
Não me tome por uma pessoa de direita porque não sou. Considero-me no centro direita, centro esquerda. Não faço a apologia do privado. O que digo é que o privado é uma necessidade e o que critico mais é a falta de coragem de assumirmos o que se passa na Saúde por estarmos bloqueados num anátema político. O pior inimigo do SNS é o rótulo político. É como a virgindade ou outra coisa qualquer. São mitos em que ninguém pode tocar… até se partirem.
No caso da greve, tendo sido canceladas 6000 cirurgias, não é estranho não haver mais queixas de doentes?
A população está anestesiada, vive com isto, não pensa bem. Os portugueses que são um povo fantástico, não têm a agressividade que vê em França com os coletes amarelos. França é capaz disso, Portugal não. Vão ser beges, os nossos coletes. Mas a opinião das pessoas não é boa, não pode ser.
Se calhar algumas não é a primeira vez que têm a cirurgia cancelada.
Um dos meus problemas na gestão do serviço diariamente é não cancelar doentes que já foram cancelados. Sei o que é a preparação de levar uma pessoa para o bloco operatório emocionalmente para a família, por isso cancelar a operação é uma barbaridade.
Cancelou cirurgias recentemente?
Acontece todas as semanas, por falta de espaço, falta de camas, falta de enfermeiros. E não é por causa da greve, é porque cada vez temos menos.
Organizou na semana passada uma conferência na NOVA sobre conflitos de interesse e ética na Saúde. Que problemas são mais prementes?
Há dois tempos que dominam a Saúde nos dias de hoje. Foi o Lobo Antunes que o disse, foi uma pessoa muita inspiradora.
Já o lembrou algumas vezes.
Tínhamos o cacifo um ao lado do outro na CUF e costumávamos falar enquanto vestíamos o ‘pijama’ do bloco. Foi uma grande perda. O João costumava dizer que há dois temas que são cinzentos na cor, amargos no travo. São o erro em Medicina – sobre o qual já escrevi – e os conflitos de interesse. A profissão de Saúde tem um interesse primário que é a defesa do bem dos doentes. É hipocrático. Sou obrigado a pôr o interesse do doente à frente de tudo, à frente de outros interesses que se possam perfilar como conflituantes, que é aquilo que você me vai pagar, operá-la mais cedo porque me dá jeito o dinheiro, praticar atos porque sou pago à peça. Se num hospital público pedir exames porque sei que vão para uma entidade privada ou se no privado pedir porque sei que o seguro paga, é um conflito.
Isso está a acontecer?
Pode acontecer. A conferência foi interessante por debater esta ideia de que muitas vezes isto não é uma questão clear cut. Uma pessoa pode ter conflitos vestidos, potenciais ou reais. Pode andar nas margens. Por mais sérios que sejamos, somos salpicados com tentações. A questão não se põe só com a indústria farmacêutica. Posso querer publicitar uma técnica cirúrgica que desenvolvi e ter um critério mais largo para aplicar a mais doentes. Nunca é saudável financiar saúde baseado apenas na produção. Quando tem a noção que, do ato que faz hoje, vai receber no mês seguinte, isso pode perverter princípios de consumo. Pagar operações, transplantes, análises sem medir resultados é perigoso. Um dos temas que nos preocupa aqui na universidade é desenvolver o estudo da Saúde baseada em valor. Mais do que se saber que se fizeram 400 mil cirurgias no SNS é saber o que aconteceu a essas pessoas e se o benefício compensou o custo.
Foram muitos Natais fora de casa ao longo destes quase 40 anos de cirurgia?
Tantos. Lembro-me que no primeiro ano em Inglaterra fiquei de serviço no Natal. Somos de uma família católica, mas não somos praticantes. Uma enfermeira que chegou à conclusão que naquele Natal éramos quatro católicos e organizou uma missa com o fr. Reynolds. Ele fez uma missa às sete da tarde, uma coisa muito bonita, rezou pelas nossas famílias. A certa altura abre o sacrário e dá-me uma hóstia. Saí dali, fui à cabina e liguei à minha mulher a dizer que tinha feito a primeira comunhão. Uma vez num Natal operei uma dona Natalina, foi engraçado. Mas já operei todos os dias, a todas as horas, Natal, Fim do Ano, dia de anos. A importância do que se faz é tão grande que é como outro dia qualquer.
Noutro dia um estudo alertava que há um pico de ataques cardíacos na véspera de Natal. Tem essa ideia?
Não tenho essa perceção porque não vejo tanto esses casos. Mas sabemos que há picos e há séries. Coisas raríssimas que de repente vemos uma, duas, três. Uma vez operei dois recém-nascidos com retorno venoso no mesmo dia. Estava para ir de férias quando me ligaram do primeiro e horas depois apareceu outro com o mesmo peso e o mesmo diagnóstico.
É o quê?
As veias que drenam para o coração do lado direito e não do lado esquerdo, uma coisa grave. Uma das coisas que me faz passar agora os bebés mais pequeninos é que isto exige uma grande disponibilidade que uma pessoa com a idade vai deixando de ter. Eu já não sou dono do meu tempo, tenho muitas coisas e os doentes não podem sofrer. Temos de ter noção disto e perguntarmo-nos, a cada momento, onde somos mais úteis. Aqui na reitoria tenho um trabalho que penso que vai dar grandes frutos. Temos cinco unidades envolvidas em temas de saúde, da molécula à economia da saúde. Idosos, doença crónica, nutrição e o valor em saúde são temas que estamos a desenvolver.
É nesta parte mais de estudo que se imagina quando deixar o bloco?
Como dizia o Lobo Antunes, sou um homem de Medicina mas que tem da Medicina uma visão académica. Sou cirurgião cardíaco, aqui acabei por ser professor de cirurgia. Fui professor na Faculdade de Medicina de Lisboa, depois passei para a NOVA.
Foi uma mudança fácil? Não são escolas um pouco rivais?
São coisas que acontecem na vida. Não consegui entrar lá no hospital [em Santa Maria] por isso é natural que ficasse professor no sítio onde tinha serviço. Lá tinha a cadeira mas não tinha serviço, tinha de pedir autorização para os alunos irem para ao serviço.
Isso tem a ver com não ter tido um médico Fragata na família?
Fiz a minha vida toda por concursos públicos.
Nunca esteve ligado ao Opus Dei, à maçonaria?
Não, nem sequer a clubes de futebol.
Fala-se desses grupos de interesse que de alguma forma puxam cordelinhos nos bastidores.
You knocked to the wrong door. Nem maçonaria, nem Opus Dei, nem Sporting, Porto ou Benfica. Já tive várias propostas mas não pertenço a nenhuma dessas sociedades.
Mas viu esses cordelinhos?
E até fui vítima. Mas tenho bons amigos em todas as fações. Mas digo porque não pertenço: tive uma juventude muito liberta numa quinta do meu avô. Criei um espírito de independência que é difícil de bater. Não sou fiável para ninguém nesse aspeto, sou fiel à minha família mas sou totalmente independente e penso pela minha cabeça. Voltando à NOVA, temos uma equipa reitoral muito forte, penso que vamos conseguir fazer coisas. Médico serei sempre. Gostava deixar o serviço em Santa Marta não agora mas quando conseguisse que tivesse sustentabilidade. Não tem tido o apoio que precisa e é uma pena porque é uma das joias da coroa do SNS. O programa de transplantação da Santa Marta que no ano passado fez 34 transplantes e este ano vai num número parecido é um dos grandes casos de sucesso. Há dez anos fazíamos um, com resultados incertos. Precisamos de investir, de expandir. Temos perdido pessoas para o setor privado porque não as conseguimos fixar. Nunca se deixou de transplantar por isso, mas é as pessoas sentirem que há algum empreendedorismo na Saúde e que o SNS ainda é algo em que se pode apostar.
Ficaria em exclusividade no SNS?
Claro, se as condições fossem outras. Sou feliz com o meu trabalho, faço o melhor e entrego-me em cada sítio onde estou. Não é por ganhar menos num lado que trabalho pior. Dou o mesmo aos doentes e ao serviço. Irrito-me mais no público porque acho sempre que depende mais de mim mas não depende. Temos orgulho no que fizemos na área das cardiopatias congénitas e transplantação. Mas gostava de poder deixar melhor o serviço. Não consigo mudar nada no serviço, só a mim, é um desespero. São 45 milhões de orçamento e não decido nada, o que é que digo as pessoas, que líder sou?
É conhecida a sua rivalidade com Eduardo Barroso.
Sobre esse tema não falamos.
A medicina mudou-o? Tornou-o mais crente?
Todos tivemos encontros de terceiro grau. Tenho muita dificuldade em acreditar na vida para além da morte. Já vi morrer muitas pessoas e é um grande vazio. Acredito que a energia possa ir para qualquer lado. Gostava de acreditar mais, mas não consigo. Diria que tenho a minha cabeça muito arrumada na vida e na profissão mas a cabeça mal arrumada na fé. Não tenho dúvidas que há um princípio superior e houve coisas que o modo como evoluíram, não parecendo fruto do acaso, parece que não estávamos sozinhos. Mas depois as coisas fundem-se todas: é impossível a pessoa ser 100% materialista numa profissão como a medicina. Lida-se com sentimentos, com medo, com a fé dos outros. Quem vai ser operado tem fé, se não for em Deus tem no cirurgião.
Esse estado psicológico interfere com o resultado?
E de que forma. Um amigo meu uma vez em Inglaterra fez um trabalho com 50 mil doentes e concluiu que os doentes que declaravam a entrada ter um credo religioso, independentemente da religião, tinham menos risco de morrer e de ter complicações. Dá que pensar. Somos muito mais do que esta simples soma aditiva de órgãos. Disso tenho a certeza. Agora o que resta deste espírito quando a carcaça termina, não faço ideia nenhuma.
Nenhum doente voltou para contar.
Nunca ninguém voltou. As pessoas que têm experiências de quase morte falam de prados verdes e sons musicais mas nunca sabemos o que é aquilo. No sono passamos por várias fases. Lemos estudos, interessamo-nos, mas faltam provas. Não me consideraria ateu, agnóstico talvez. Mas tenho a certeza de que algumas vezes na minha vida não estive sozinho.