Síria. Trump ameaça Turquia com “devastação económica”

O presidente dos EUA reagiu à intenção de Ancara de atacar os curdos sírios, aliados de Washington na luta contra o Estado Islâmico

Foi com ameaças que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, reagiu ontem à possibilidade de a Turquia invadir a Síria para atacar as milícias curdas das Unidades de Proteção do Povo (YPG na sigla em inglês) e das Forças Democráticas Sírias. “Vou devastar economicamente a Turquia se ela atacar os curdos”, escreveu Trump no Twitter, deixando um conselho aos curdos: “Da mesma forma, também não queremos que os curdos provoquem a Turquia.” Trump sugeriu ainda que poderia avançar com a criação de uma “zona segura” de 32 quilómetros quadrados, mas não deu mais pormenores sobre como pretende implementá-la nem quais os atores que nela poderão vir a participar.

Ancara foi célere a reagir à ameaça de Trump e, pela voz do ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Mevlut Cavusoglu, declarou que o governo turco não será “intimidado por quaisquer ameaças”. “Temos dito repetidamente que não estamos com medo e que não seremos intimidados por quaisquer ameaças”, disse Cavusoglu aos jornalistas, alertando Washington para que “as ameaças económicas contra a Turquia não levarão a lado algum”. 

Trump terá avançado com a ameaça sem consultar o seu secretário de Estado, Mike Pompeo. Este, confrontado com questões dos jornalistas sobre o tema, não avançou mais pormenores e chegou inclusive a especular sobre a possibilidade de Trump se ter referido a “sanções”. “Aplicámos sanções económicas em muitos lugares, suponho que esteja a falar sobre esse tipo de coisas”, disse Pompeo em Riade, Arábia Saudita, sem referir a possibilidade de os EUA avançarem com uma “zona segura”. Não é a primeira vez que elementos do topo da administração Trump são apanhados desprevenidos por tweets do chefe de Estado. 

A ameaça de Trump foi motivada por se saber que a Turquia já começou a delinear planos militares para uma ofensiva contra os curdos que, por sua vez, pediram ajuda ao regime de Bashar al-Assad e à Rússia para os protegerem de Erdogan. Os curdos concluíram que não podem depender da proteção de Washington contra a ameaça turca.

Relações tremidas

Há mais de uma década que as relações entre os EUA e a Turquia, dois históricos aliados da NATO, não são as melhores por Ancara se afirmar como potência indispensável no Médio Oriente, seguindo uma política neo-otomanista imperial, e por se ter aproximado da Rússia com a compra de armamento diferente do da organização transatlântica. Mas tudo piorou quando Washington passou a apoiar as milícias curdas na Síria contra o Estado Islâmico (EI), transformando o povo sem Estado no principal ponto de fricção entre os dois aliados. Ancara vê os curdos sírios como ameaça à integridade nacional turca e extensão do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, que diz ser “terrorista” e o qual combate há 34 anos. 

Os curdos sírios foram ganhando poder militar e político sem precedentes na região à medida que, pela força das armas, iam empurrando os jihadistas do Estado Islâmico para os seus últimos redutos, e hoje controlam um quarto da Síria, beneficiando de áreas agrícolas valiosas e reservas petrolíferas. A sua principal reivindicação, a formação de uma Síria federal, inspirada na solução federalista iraquiana, ganhou força, ameaçando Ancara como há décadas os curdos não faziam. 

Trata-se de uma força que Ancara não está disponível para tolerar e, para o provar, avançou militarmente contra a cidade de Afrin, histórico local de resistência contra o Estado Islâmico, conquistando-a em março de 2018. Os curdos acusam Erdogan de os massacrar diariamente na cidade, acusação já negada por Cavusoglu. 

Tudo piorou quando Trump anunciou, surpreendendo tudo e todos, a retirada dos cerca de dois mil elementos das forças especiais dos EUA que combatem ao lado dos curdos na Síria, ora dando treino e aconselhamento, ora pedindo ataques aéreos. Com a retirada norte-americana, a Turquia pode avançar contra os curdos, enquanto Washington tenta por todos os meios evitá-lo – o risco do estigma de abandonar os seus aliados no terreno pode prejudicar a sua presença na região e a política externa no futuro. Além disso, o Estado Islâmico não foi totalmente derrotado, com pelo menos cinco mil jihadistas a controlarem um último reduto a leste do rio Eufrates, próximo da fronteira iraquiana – e já disseram que vão passar à ofensiva.

“Antes, os EUA estavam cá e ninguém tinha medo, mas, agora, as ameaças [dos turcos] assustam-nos”, disse Bengin Seydo, curdo de 35 anos, à Reuters. “Confiar nos norte-americanos é sempre uma experiência falhada, pelo menos para os curdos”, complementou Ahmad Sleiman, comentador e político curdo, à mesma agência.

Esperava-se que o anúncio do presidente dos EUA fosse seguido de uma retirada rápida, mas o seu calendário tornou-se vago e com condições, entre as quais a de a Turquia não atacar os curdos – exigência que Erdogan sempre recusou. E, para aumentar a confusão, John Bolton, conselheiro de segurança nacional de Trump, disse numa visita a Ancara que a retirada já não ia acontecer, contradizendo Trump que, por sua vez, contradisse Bolton ao reafirmar a retirada. 

“Os problemas e os males entendidos entre os EUA e a Turquia são resultado da confusão e cacofonia entre os atores dos diferentes níveis da administração norte-americana e suas instituições”, criticou Yasin Aktay, conselheiro do presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, à Al-Jazira. 

Além da “confusão” gerada, Aktay afirma que as contradições de Trump e da sua administração se devem à sensível situação em que o presidente se encontra, a que se juntam jogadas de poder internas: “Trump está entalado entre a opinião pública norte-americana, que questiona largamente a presença dos EUA na Síria e Médio Oriente alargado, e os políticos do seu partido e aliados como Israel e Arábia Saudita, que são contra a retirada.” 

Nos meses seguintes à sua chegada à Casa Branca, Trump redefiniu a política externa norte-americana no Médio Oriente ao aprofundar as relações diplomáticas com a Turquia, Israel e Arábia Saudita para isolar ainda mais o Irão, aliado da Síria na guerra civil que há oito anos devasta o país. Telavive e Riade defendem uma maior presença norte-americana na região e receiam que o pivô dos EUA para a Ásia-Pacífico, descurando o Médio Oriente, os torne vulneráveis.