Gostam os dois de escrever. Como seriam as primeiras linhas desta amizade?
Daniel Sampaio (D.S.): Conhecemo-nos desde os nossos 17 ou 18 anos, menos talvez.
Francisco George (F.G.): Sim, desde o tempo da Pró-Associação dos Liceus.
Era o quê?
D.S.: O início do movimento estudantil, uma estrutura não legal na altura, em plena época de Salazar. Havia reuniões secretas. Mas as imagens mais antigas que tenho do Francisco são de nos cruzarmos nas Azenhas do Mar, ao pé da praia das Maçãs, onde éramos vizinhos.
F.G.: Fomos vizinhos em Campo de Ourique, conheci o Jorge [Sampaio] em 1962. Na Praia Grande e depois Campolide.
D.S.:Um bocadinho mais tarde o Francisco era dos poucos que tinha carro e fazia uma coisa extremamente amável que era ir buscar os amigos a casa.
Era um acelera?
D.S.: Tinha um Mini. Guiava muito bem, com rapidez mas com muita segurança. Lembro-me de nos ir buscar para irmos ao café e a um cinema que era um barracão lá na Praia das Maçãs. São muitas recordações dessa época. Depois houve um período em que não nos demos, que foi quando esteve em África na década de 80, a trabalhar para a Organização Mundial da Saúde. As comunicações eram difíceis, se fosse agora teríamos continuado a comunicar por Skype.
Nesses tempos de miúdos havia uma ambição política séria ou pendiam mais para a Medicina?
D.S.: Tínhamos atividade associativa, éramos anti-salazaristas, mas também nos divertíamos. Eu sempre quis ir para psiquiatria. O Francisco George penso que foi influenciado pelo meu pai, médico de saúde pública.
Arnaldo Sampaio, diretor-geral da Saúde quando se deu o 25 de abril.
D.S.: Lembro-me de uma história engraçada. O Francisco era estudante de Medicina, muito novo, e um dia disse: ‘prof. Arnaldo Sampaio, explique-me o que é a saúde pública’. O meu pai nessa casa das Azenhas do Mar, pegou no Francisco e levou-o ao jardim. Tínhamos um pequeno candeeiro em frente, com um relvado. Disse-lhe: ‘Se este candeeiro se avariar e esta luz desaparecer isto é um problema de saúde pública. Pode haver um acidente, as pessoas podem cair. Portanto a saúde pública é sobre tudo.’
Costuma dizer que Arnaldo Sampaio é uma das referências da sua vida.
F.G.: Sim. Houve uma questão psicológica:_a certa altura vi-me na necessidade de escolher uma especialidade que fosse diferente da do meu pai. Estava com ele em Medicina Interna no Hospital de Santa Marta, onde era diretor, mas não me sentia bem nessa qualidade, com a ideia de um dia receber o bastão da parte dele, de ter essa continuidade no serviço. Para não chocar tinha de escolher uma especialidade completamente oposta. Portanto da Medicina Interna, que trata do diagnóstico e de tratar um doente, fui dedicar-me a fazer o diagnóstico e a tratar toda uma população.
Era uma especialidade menor? Menos prestigiante do que as outras?
F.G: Pelo contrário. Há um conjunto de médicos que fizeram da saúde pública uma especialidade reconhecida não só em termos nacionais como internacionais. Médicos que desempenharam funções na Direção Geral da Saúde , no Instituto Ricardo Jorge, a nível internacional na Organização Mundial de Saúde. Os especialistas portugueses foram sempre considerados. Uma vez um diretor da OMS disse-me: ‘Gosto muito dos portugueses porque falam português, inglês e francês’. Não era só por isso, os especialistas portugueses não eram só bons por falarem três línguas, mas pela sua competência.
Ao mesmo tempo diz-se sempre que Portugal investiu pouco na prevenção e na promoção de saúde. Foi a política que não acompanhou?
F.G.: É verdade. A prevenção é sempre anunciada como principal componente de um programa político mas depois não é concretizada, não é implementada. É sempre adiada. Porquê? Os resultados só são visíveis em regra cinco anos depois e os governos não investem para ter resultados a cinco anos. Aquilo que estamos agora a ver em relação ao envelhecimento da população é sintomático. Não é um fenómeno nem súbito nem inesperado. Foi um processo gradual. As medidas deviam ter sido tomadas de forma robusta, com investimentos na altura certa. Agora é pior.
Estão preocupados com o cenário para os próximos anos?
D.S.: Sim e o livro do Francisco [ensaio publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos] é muito importante nesse aspeto: aponta caminhos para o futuro. Quando oiço falar do SNS, de António Arnaut, foi evidentemente muito importante todo esse movimento e as pessoas que o puseram em marcha, mas os problemas são hoje completamente diferentes do que eram na altura e implicam uma abordagem diferente. O aumento da esperança de vida, o peso das doenças crónicas, o encarecimento da Medicina, com muito mais mecanismos de diagnóstico e tratamento, tudo isto encareceu extraordinariamente o SNS e temos um problema de suborçamentação crónica que é o mais importante de todos.
F.G.: Quando começámos em 1979 decidiu-se investir, mas investir mesmo, na mãe e na criança. E em poucos anos Portugal deu um salto. Não é uma questão de ter baixado a mortalidade infantil, foi termos conseguido elevar o país em todos os indicadores da mãe e da criança para o top 3 a nível mundial. As mães deixaram de morrer, as crianças deixaram de morrer.
Era uma realidade com que conviviam?
D.S.: Sim, conhecíamos muitos casos. Mas há muitos exemplos de como as coisas mudaram. Sou casado com uma nefrologista que sempre trabalhou em insuficiência renal. Quando nos formámos em 1970, não havia tratamentos de hemodiálise nem transplantes. Os nossos professores no final dos anos 60 escreviam ‘insuficiência renal é igual a morte’. Hoje uma pessoa com insuficiência renal pode primeiro fazer hemodiálise, depois ser transplantada e viver muitos anos. Em muitos campos o diagnóstico e a terapêutica são completamente diferentes em relação ao início do SNS e por isso é que se torna tão importante investir na prevenção. Doenças como diabetes tipo 2 e obesidade, que comportam grandes custos, previnem-se através de um estilo de vida saudável.
F.G.: O estilo de vida é o denominador comum de muitas doenças, cancro, doenças cardiovasculares e cerebrovasculares. Tem quatro variáveis absolutamente determinantes. A primeira é a alimentação, comer com menos sal, menos açúcar, menos gorduras industriais. Depois temos de promover o exercício, desde cedo. As crianças têm de voltar aos parques, andar de trotinete, de bicicleta, de escorrega, brincar aos índios, estar menos tempo à frente dos monitores.
D.S.: É um à parte mas mostra como surgem novos desafios. Nós passámos a nossa infância e juventude na rua, há uma grande diferença em relação aos nossos filhos e dos nossos filhos para os netos. Hoje as crianças das cidades quase não brincam na rua.
Implica sensibilizar mais os pais?
F.G.: É crucial. Os pais e as mães têm de perceber que há uma nova droga que é o ecrã do telemóvel, da televisão ou do tablet. Quando um dos pais dos meus netos diz ‘ele sabe fazer tudo nos dispositivos eletrónicos…’ Preferiria que tivesse sido o campeão de bicicleta. Percebo que dá descanso aos pais terem as criancinhas agarradas aos telemóveis, mas no plano da saúde não é aconselhável. É das coisas em que temos de voltar para trás.
Os seus netos ao pé de si usam o tablet? Na sua última aula contavam que é rigoroso, uma vez deu-lhes um bolo de gomas sem açúcar.
F.G.: Eles têm um grande à vontade mas é claro que me desafiam. Digo que não é para beberem refrigerantes, sentam-se à mesa e pedem. Mas se é para cortar no açúcar é para cortar no açúcar. Isto não é uma lengalenga, é uma relação comprovada cientificamente. O açúcar precisa de ser metabolizado, ou seja de entrar nas células, na presença de insulina. Mais açúcar aumenta o risco de diabetes. O nosso organismo, que tem os mesmos genes que tinha na época de Vasco da Gama, é hoje muito mais sobrecarregado. Há 500 anos a nossa constituição genética era a mesma, mas a oferta em açúcar e derivados hoje não é igual, é muito maior. O prof. Arnaldo Sampaio costumava dar-nos este exemplo: nos anos a seguir à guerra de 1945, a frequência da diabetes tipo 2 desceu em Inglaterra e o Governo de Clement Attlee, sucessor de Churchill, mandou investigar a razão. O teu pai dizia com muita graça que tinha sido do racionamento do açúcar. Os alunos mais rebeldes perguntavam: ‘então porque é que não se continuou o racionamento?’ A indústria tem uma força e pressão tal que está representada nos centros de poder de comércio mundial e europeu. Em vez de haver uma restrição, a oferta foi crescendo. Foi importante em termos comerciais e industriais mas em termos de saúde pública representa um risco.
As pessoas que durante tanto tempo tiveram pouco também não quiserem refrear o consumo.
F.G.: E por isso se diz que são doenças da abundância, dos meios urbanos, e daí a importância da prevenção. Mas para concluir o que estava a dizer sobre as quatro principais variáveis: é preciso falar da importância da não exposição ao tabaco. Ainda há pessoas que julgam que é radical o especialista que diz que é para não fumar.
No seu ensaio fala num movimento que foi tentando denegrir as mensagens de saúde pública, com o argumento de que proibir o fumo aqui ou ali é estabelecer regimes de ‘fundamentalismo sanitário’.
F.G.: É o que diz Miguel Sousa Tavares que escreve sobre este assunto sem sequer dar oportunidade a contraditório. Acho que pessoas como ele, e digo apenas neste domínio, só fazem mal ao país. Dão a entender que aqueles que dizem que o fumo do tabaco é prejudicial para a saúde não percebem nada disto.
Chegou a fumar quando era jovem.
F.G.: Nunca fumei muito e deixei de fumar completamente no final da faculdade.
Mas muitos médicos fumam.
F.G.: É mau. Todos sabemos dos problemas do tabaco há muito tempo. Um estudo de referência foi feito em Inglaterra. Seguiu uma amostra 36 mil pessoas, por sinal todos eles médicos, numa colaboração com a associação inglesa correspondente à Ordem dos Médicos. Foram seguidos durante 50 anos e foram ver o que aconteceu ao Paul, ao Peter, à Mary, por aí fora. Um teve bronquite, outro não teve, um morreu de cancro… no final viram quem fumava e quem não fumava. Fazendo as contas, quem não fumava durava mais dez anos. Fumar tira comprovadamente dez anos de vida. O autor do estudo, Richard Doll, disse-o claramente: ‘quem gosta de viver não pode fumar’.
D.S.: Há sempre uma diferença entre a informação que temos e o que fazemos. A informação aumentou muito e ainda bem. Mas mudar comportamentos implica trabalho dirigido e é algo que tem de começar muito cedo, na escola primária, no tabaco como para todas as dependências. Falámos da dependência da internet, que tem estado a crescer embora não seja se calhar um fenómeno tão dramático como às vezes se diz. É outro exemplo. A informação tem de ser incutida desde cedo.
F.G.: Pode não ser tão dramática a questão da internet. Mas o que digo que é dramático é a consequência que tem na falta de exercício e na alimentação. Um jogo acompanhado de bolachas de alto teor calórico… está a ver-se o problema. O problema da dependência da internet e dos monitores não está na questão eletrónica, mas nos efeitos indiretos no estilo de vida.
Não faz parte da natureza dos mais novos não se preocuparem tanto?
D.S.: Faz parte, mas a informação é importante. Nós éramos filhos de médicos por isso tínhamos informação privilegiada. Eu também fumei, mas fumei pouco, por muita influência das coisas que ouvia lá em casa. E na altura havia muita pressão social para se fumar. Hoje apesar de haver muita gente que fuma, há menos. No caso do sedentarismo, há sinais preocupantes mas também temos cada vez mais pessoas preocupadas com o seu corpo, a frequentar o ginásio. Começa a haver uma consciência diferente. O mesmo não se pode dizer de outras áreas que costumam ser muito desprezadas como a saúde mental ou a educação sexual, em que infelizmente se tem feito muito pouco nos últimos anos.
Hoje é muito menos normal fumar em espaços fechados. Ao alcoolismo tem sido dada atenção suficiente?
D.S.: Acho que não. O álcool é muito bem aceite socialmente, não se consegue fazer um jantar ou uma festa sem álcool. Acho que as campanhas de prevenção não têm sido bem feitas. Há muitos jovens que bebem muita cerveja, sobretudo ao fim de semana, mas ao contrário do que por vezes é dito sabemos que esses jovens não vão ser todos alcoólicos. Vão ser alcoólicos os filhos e os netos de alcoólicos e aqueles que bebem durante a semana. Quando se faz campanhas de prevenção para um determinado comportamento as coisas têm de ser mais dirigidas. Não se pode chegar junto a uma população de uma escola, como às vezes vejo, e dizer que vão todos acabar alcoólicos e com uma cirrose. Os miúdos riem-se porque sabem que não é verdade. Faz mais sentido ligar o excesso de álcool à sexualidade, ao facto de muitas vezes as primeiras relações acontecerem por ação do álcool, explicar como o poder desinibidor do álcool ao mesmo tempo turva a consciência e faz com que as pessoas tenham mais acidentes e conflitos.
F.G: Um dos problemas da mortalidade prematura antes dos 70 anos [um em cada cinco portugueses morre prematuramente], além de todas as doenças que podiam ser evitadas, são precisamente os acidentes. E o que nos dizem os estudos, mais uma vez, é que muitos destes acidentes têm a ver com álcool.
Esta semana esteve em discussão no Parlamento a legalização da canábis para fins recreativos. Como veem o argumento de que legalizando seria possível controlar a toxicidade da canábis e deixar de alimentar um mercado negro?
D.S.: Não pode ser um país a tomar a decisão, tem de haver uma política europeia em relação às drogas. Sou contra a canábis porque o consumo tem repercussões importantes no cérebro das pessoas, sobretudo nos adolescentes. O cérebro adolescente está em formação até aos 24 anos. O efeito de um tóxico que atue sobre o cérebro é grave. Não só pode precipitar psicose naqueles que são filhos e netos de pessoas com psicose e esquizofrenia – e está absolutamente demonstrada essa relação, tem sido até um português, o Pedro Reis Marques, a fazer esses trabalhos no King’s College em Inglaterra – mas há também efeitos negativos do ponto de vista da socialização da adolescência. As pessoas que consomem canábis ficam isoladas, formam pequenos grupos na escola, e isto afeta as relações interpessoais e as relações familiares. Haverá pais que gostam de fumar com os filhos mas são uma minoria. Portanto o uso destas substâncias durante por pessoas jovens é no meu ponto de vista enquanto psiquiatra extremamente perigoso.
Mas não fecha a porta a um cenário de legalização no futuro?
D.S.: Estou aberto a discutir a questão mas desde que se façam estudos. Temos a Holanda, o Uruguai e estados norte-americanos a legalizar a canábis. Não é por acaso que noutros países europeus ainda não se tomou essa decisão. Em Portugal acho que neste momento seria completamente precipitado. Há uma identificação romântica com a canábis, as pessoas acham-na uma droga muito agradável, esteve ligada a movimentos independência. Esta tradição que faz com que algumas drogas sejam chamadas erradamente de leves é uma ideia perigosa.
A discussão gera outras questões: mas canábis faz pior que cigarros? Porque é que não se proibiu o tabaco?
F.G.: É uma discussão que tem sido tida em muitas sedes e seria longa. Há sempre pressões da indústria… Agora as próprias tabaqueiras estão a apoiar outros tipos de consumos que não a queima da folha do tabaco.
São mais seguros estes tabacos aquecidos?
F.G.: Terão outros efeitos, mas em relação à queima da folha do tabaco seguramente que sim. Mas este não é o caminho.
Faltou referir há pouco a pobreza enquanto determinante da saúde.
F.G.: A pobreza é o principal fator de risco para a saúde. Os pobres adoecem mais vezes e têm uma vida mais curta. Há um trabalho inglês que ficou célebre, desenvolvido por Michael Marmot. Pegou em duas grandes amostras da população, uma constituída por pessoas de altos rendimentos e outra por pessoas de baixos rendimentos. No grupo dos baixos rendimentos os sinais de incapacidade, doença e perturbação cognitiva, o iniciar das demências, surgem 15 anos mais cedo. Isto tem sido estudado por muitos sociólogos e sabe-se há muitos anos, mas agora está comprovado por estudos científicos.
O país tem feito o suficiente para mitigar esse impacto da pobreza?
F.G.: Penso que é preciso repensar os abonos e trabalhar para reduzir as desigualdades. Conseguir de alguma forma que os mais pobres tenham um acesso mais direto à saúde, garantir vias verdes para acesso a prestações não só curativas mas preventivas e de reabilitação.
Como seriam implementadas?
F.G.: É preciso redesenhar o SNS, incluir a Segurança Social. Os abonos deverão ser concentrados na infância e sobretudo nas pessoas em maior risco, os mais pobres, desempregados, famílias com rendimento social de inserção e sobretudo quando há crianças. Está demonstrado é que investindo nestes grupos que se corrigem mais desigualdades.
Isso é possível num SNS tendencialmente autossuficiente ou só com maior cooperação entre setores público, privado e social, a discussão que está em cima da mesa com a revisão da Lei de Bases da Saúde?
D.S.: A Saúde tem acima de tudo de envolver outros setores, a Segurança Social, a Educação. Não se pode pensar o SNS apenas com serviços médicos.
F.G.: Vamos entrar nesse período de debate da Lei de Bases e estamos sempre disponíveis para dar contributos. O que entendemos é que há uma necessidade de robustecer o Estado Social através do Serviço Nacional de Saúde. Quando criámos o SNS em 1979 não tínhamos os problemas que hoje enfrentamos. E se é verdade que não se questiona a legitimidade para o setor social e privado crescerem, e eu próprio hoje acabo por intervir no setor social – e temos na Cruz Vermelha Portuguesa um hospital importante em Lisboa –, não podemos dizer que está tudo bem, nomeadamente no que diz respeito à distribuição dos recursos humanos e na regulamentação da atividade. Não faz sentido um arquiteto, e isto dizia a minha mulher que era arquiteta, trabalhar num serviço público de manhã e à tarde estar num atelier privado. De manhã a cabeça dele também vai estar a pensar na conceção do projeto da tarde.
O caminho é pela exclusividade?
F.G.: É preciso perceber que esta confusão nasce há muitos anos porque os salários eram muito baixos. No tempo dos nossos pais os salários eram escandalosamente baixos. A luta nos serviços públicos era para adquirir um título para se pôr uma tabuleta no consultório particular para dizer que o médico que estava ali a dar consultas era assistente ou interno dos hospitais e tinha feito os concursos para lá chegar.
E ganhar freguesia.
F.G.: Podia ganhar pouco no público, mas adquiria experiência e saber e era no privado que exercia a profissão. Ja não estamos nos anos 60, o paradigma mudou. É preciso desenhar fronteiras nítidas entre os vários setores: o público, o privado e o social. E é bom que os médicos se dediquem em exclusivo a cada um.
Defende neste seu novo ensaio o fim da ADSE.
F.G.: Foi um erro na altura da criação do SNS os legisladores terem acabado com todos os subsistemas menos a ADSE. Isto é uma questão ética, moral até. Faz algum sentido criar um sistema público mas os funcionários públicos terem direito a ir ao privado com benefícios especiais? Não faz sentido nenhum.
Escreve que a ADSE tem contribuído para desnatar o setor público.
F.G.: Indiretamente. Subsidiando consultas no setor privado, naturalmente é isso que acaba por acontecer. Os hospitais procuram contratar os melhores especialistas do setor público e pagar melhor graças aos financiamento que recebem da ADSE.
Os partidos à esquerda e o Governo partilham dessa leitura de que o setor público tem sido desnatado pelo crescimento do privado, mas não propõem o fim da ADSE. É um tabu?
F.G.: Eu nao sei ler isto com esquerda e direita. A ADSE nasce num tempo em que não havia hospitais públicos. No nosso tempo na faculdade de Medicina tínhamos no país ao todo três hospitais públicos, os outros eram das misericórdias. Éramos um país pobre, mergulhado numa guerra, dirigido por um ditador. É neste país que Salazar cria em 1963 a ADSE. Porquê? Porque os funcionários públicos tinham ordenados quase que simbólicos, muito baixos. Entendeu-se que para terem alguma capacidade de trabalho tinham direito a ir ao médico privado com subsídio da função pública. Houve uma inversão e nunca acompanhámos isto.
Daniel Sampaio concorda?
D.S.: Concordo a 200%, se me é permitida essa expressão. É um debate absolutamente necessário. Por exemplo a ADSE não paga aos hospitais quando os funcionários da ADSE são internados, há uma série de prorrogativas que causam disfunções. A principal é esta que o Francisco disse, de a pessoa poder optar por um serviço privado. Permitiu o desenvolvimento dos hospitais privados, e isso teve essa vantagens porque hoje temos bons médicos e boas consultas também no privado, mas ao mesmo tempo enfraqueceu o SNS.
F.G.: E são canalizados para a ADSE 600 milhões de euros por ano.
Resultam quase em exclusivo dos descontos dos funcionários públicos. Acabando a ADSE, estas pessoas terão de recorrer aos hospitais públicos e não continuariam a descontar. Haveria capacidade de resposta?
F.G.: Tem de ser tudo repensado naturalmente. Mas há uma lei básica da economia de saúde: quanto maior oferta, maior procura.
Ao longo destes anos de amizade, que momentos recordam com mais saudade?
D.S.: Tenho muitas saudades da Maria João, mulher do Francisco, que infelizmente faleceu. As amizades que são feitas na adolescência como a nossa são geralmente muito sólidas mas a certa altura eles foram foram para África. Quando regressaram a Maria João teve um papel fundamental na reaproximação da família George aos antigos amigos. A forma como o casal nos recebia e como a Maria João cozinhava…
Muito bem?
D.S.: Não era muito bem, era excecional. A Maria João integrava a cozinha europeia com o sabor africano, com a cultura senegalesa. Eram convívios muito bons e tenho muitas saudades. Fizemos dezenas de jantares, quer em Beja quer na Praia Grande.
Quem mais ia?
F.G.: Era o nosso grupo da Praia Grande. Eduardo Ferro Rodrigues e a mulher, António Correia de Campos, muitas vezes o irmão do Daniel. Éramos um grupo que se juntava e conversava sobre muita coisa mas sobretudo sobre como melhorar as condições do país. Um jantar histórico foi aquele em que fizemos um exercício a que o Jorge chamou de colocar estacas [é desse encontro a fotografia nesta página]. Colocar estacas para o que viria a ser a primeira candidatura presidencial.
A sua mulher e a sua filha terem falecido num acidente reforçou de alguma forma o seu sentido de missão na saúde publica?
F.G.: Nunca relacionei as coisas. A primeira pessoa com quem falei foi o Daniel, estava a receber a notícia ao telefone.
D.S.: Houve uma relação com o trabalho, isso foi claro. O Francisco começou imediatamente a trabalhar. Várias pessoas vieram ter comigo: ‘Diz-lhe para não ir, tem de viver o luto…’ Disse sempre que o deixassem organizar-se. E é muito importante passar isto às pessoas: quando há situação de luto grave, a melhor pessoa para saber como gerir o que se está a passar é o próprio. Ele percebeu muito rapidamente que se começasse a trabalhar de forma intensiva isso ia ajudá-lo. É preciso dizer que há aqui uma qualidade que é absolutamente única: a forma como este homem leva a sério o trabalho, onde quer que seja. Não brinca em serviço. Mesmo agora com a idade e o prestígio que tem podia vir para a Cruz Vermelha mas estar a viver uma reforma dourada. Vamos ver daqui a cinco anos o que é que foi feito: tenho a certeza de que será muito.
Têm outro ponto em comum: apesar do envolvimento cívico, nunca entraram na vida política ativa. Porquê?
F.G: Não ponho de parte um dia ser presidente de uma Junta de Freguesia.
Pensei que ia dizer da República…
F.G.: [risos] Não, da Junta.
D.S.: Acho que é uma característica que vem dos nossos pais. O pai do Francisco foi muito importante na organização dos hospitais.
F.G.: E o teu pai na organização da saúde pública.
D.S: No fundo podiam ter sido só médicos no seu setor mas não, tiveram sempre uma visão global dos problemas e acho que vem daí esta forma de estar.
F.G.: E sobretudo o sentido de que é preciso lutar contra desigualdade e pobreza.
Em ano eleitoral, o que prescreveriam ao país e aos partidos?
F.G: Interesses do país acima de todos os outros e ter em conta sobretudo que há muitos portugueses que vivem com imensas dificuldades. É preciso encontrar formas de termos mais igualdade e mais Estado Social.
D.S.: Subscrevo. Precisamos de ter uma atitude verdadeira em relação aos problemas. Falamos de alguns mas há outros: na saúde mental há imenso a fazer.
Jubilaram-se os dois aos 70 anos, idade limite no Estado, algo que agora poderá mudar. Sentiram mágoa por serem forçados a sair?
D.S.: Nisso temos uma certa divergência. Eu acho que as pessoas deveriam poder trabalhar mais uns anos. O Francisco utiliza um argumento importante, que é a necessidade de haver renovação nos lugares.
F.G.: A administração pública não é uma empresa privada, é uma grande companhia com 10 milhões de sócios, não podemos comparar isto ao privado. É um erro esta resolução em que se aproximam agora situações que não são comparáveis em termos de reforma.
D.S.: Mas os 70 anos de hoje são diferentes dos 70 anos do tempo em que a lei tinha sido feita…
F.G.: Subscrevo essa parte, mas isso é diferente de dizer que depois dos 70 deverias continuar diretor do serviço de psiquiatria e eu como diretor-geral da Saúde.
D.S.: É preciso aproveitar as pessoas. Assim como estava é muito abrupto. Estávamos completamente ativos e no dia seguinte fazíamos 70 anos e acabou. Eu na véspera de fazer 70 anos era diretor de serviço. Trabalhei até às seis da tarde, era o dia em que ficava até às seis no Hospital de Santa Maria. As pessoas diziam ‘vá-se embora, amanhã já não é diretor’. Eu disse ‘não, estou em funções, amanhã não estou mas hoje estou.’
F.G.: Foi exatamente o que eu fiz.
Como foi o acordar no dia seguinte a ter deixado a DGS?
F.G: Preparei-me e devo dizer que me ajudaste Daniel. Começaste a preparar a tua lição de despedida um ano antes. Pensei para comigo: ‘Se ele prepara um ano antes, eu também terei de o fazer.’ Essa preparação que fiz contribuiu no plano psicológico para enfrentar a tudo com naturalidade.
D.S.: E há que dizer, não sendo vaidosos, que somos exemplo de duas pessoas que estão reformadas mas continuam ativas. A reforma não significa que as pessoas fiquem em frente à televisão sem fazer nada.