‘O líder populista faz as regras e muda-as, como Maduro em 2015’

Manuel Alcántara diz que uma das características do populismo latino-americano é a irresponsabilidade fiscal ao depender as suas políticas da venda de matérias-primas

Manuel Álcantara, especialista em política latino-americana da Universidade de Salamanca não vê Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, e Donald Trump, chefe de Estado norte-americano, como populistas, defendendo que mais do que olhar para o discurso, são as políticas públicas que mostram se um líder é  populista. Nesta entrevista, dada antes dos acontecimentos na Venezuela, Alcántara referia que Nicolás Maduro é um populista, porque quando perdeu as eleições em 2015 arranjou uma assembleia diferente para controlar o poder legislativo.

A América Latina sempre foi um palco para o populismo ao longo do século XX. Em que é que os novos populismos diferem dos velhos?

A grande diferença no caso latino-americano é que os novos populismos surgiram quando a região já tinha uma experiência com a democracia e um certo desenvolvimento do Estado. Há uma crise da representação política,  da democracia representativa e  dos partidos políticos que não houve nos anos 1940 e 1950. Porque a experiência democrática de então era muito pobre. Quando  Chávez chegou ao poder na Venezuela, os venezuelanos levavam mais de 30 anos de democracia e um sistema de partidos aceitável, mas este sistema colapsou e a chegada de Chávez foi assim como a de um salvador. Isto também aconteceu no Equador e na Bolívia, onde os partidos políticos colapsaram. Estes três Estados já funcionavam razoavelmente. Estavam acostumados a debater políticas sociais e distributivas, o  que não acontecia nos anos 1930, quando o Estado era absolutamente liberal e nada intervencionista. Estas duas situações novas são as que me parecem novidade. 

Quais são as características destes novos populismo?

Têm líderes muito fortes, a situação económica do país é muito boa em consequência da subida dos preços das matérias-primas, geram partidos a partir de cima e mantêm um discurso anti-Estados Unidos muito forte. 

É então mais de contexto do que características aquilo que os difere. 

Exato.

O discurso populista de Bolsonaro, no Brasil, é completamente novo na América Latina ao focar-se na violência e na família tradicional.

Não creio que Bolsonaro seja populista. A imprensa define-o como populista, mas há que esperar para se analisar o que faz o Governo brasileiro. Bolsonaro é um homem conservador, de direita, numa situação de reação a 14 anos de governos do Partido dos Trabalhadores e num contexto de crise económica. Não lhe chamaria populista, seria confundir a situação.

O messianismo também está muito presente, bem como a criação de partidos a partir de cima, como o PSL, que não existia a nível nacional e que cresceu com Bolsonaro. 

Sim, mas vejo essas características como estratégias de propaganda, de comunicação política, que, sim, são próximas de outros populistas, mas não acho que  seja o ponto fulcral. Como não são características da sua carreira política, dos anos que passou no Congresso ou de que as políticas que vá aplicar sejam populistas. Será um governo de direita clássica e de interesses dos grandes latifundiários e agrários e isso não tem nada a ver com populismo.

Existiu sempre aquela ideia do povo contra a oligarquia, mas Bolsonaro não é o caso. 

A ministra da Agricultura [Tereza Cristina] provém da oligarquia terratenente. Não digo que Bolsonaro seja da oligarquia, mas irá defender os seus interesses. É algo que não aponta para um populismo clássico.

Disse que a estratégia de Bolsonaro pode ter características populistas, mas que não é populista. O populismo é uma ideologia, estratégia ou ambas?

É ambas, mas o que verdadeiramente define o populismo são as políticas. Defendo que há duas grandes divisões de populistas: os  no poder e os na oposição. Não me interessa os populistas na oposição: é objeto de estudo, mas acho que há aí mais confusão porque falar é grátis. Quando se vai para o Governo e se aplicam determinadas políticas, imediatamente tudo muda. Pensemos na Grécia. Tsipras, todo o mundo o via como populista há quatro anos, mas agora já ninguém o vê assim: é um Governo ortodoxo, que faz políticas sociais populares, mas que aceita as normas da União Europeia. Passou-se o mesmo com o Podemos. Estou convencido que se o partido entrasse num executivo em Espanha governaria como um partido de esquerda e com a sua lógica, além de ter uma coligação com a Izquierda Unida. Pensar que Pablo Iglesias é um líder populista é uma confusão muito grande. 

Disse que o que distingue os populistas são as políticas quando chegam ao Governo, que políticas?

Uma política populista clássica é o que chamam de irresponsabilidade fiscal. É dizer que se gasta mais do que se tem numa situação económica favorável.

Aceitar esse termo da irresponsabilidade fiscal não é ir ao encontro dos limites impostos pela UE ao investimento? 

Claro. A Itália confronta a UE por querer um teto de investimento maior. Isso é uma discussão política e vê-la-ia como populista se o Governo italiano tivesse a capacidade de usar rendimentos externos por ter um produto de exportação. A irresponsabilidade fiscal no populismo tem a ver com uma situação de bonança externa, o que a torna ainda mais irresponsável por não estar a gastar o dinheiro dos outros, mas do petróleo ou do gás. A irresponsabilidade fiscal está ligada por uma conjuntura de sorte, diríamos.

O populismo latino-americano tem também um fator exógeno, o intervencionismo norte-americano. Não estará relacionado com a pressão dos EUA no continente, como acontece com a Venezuela, ou, no caso europeu, com a UE?

Sim, sem dúvida. A UE é diferente por a Itália ser membro do clube. Os italianos têm influência na política da UE, pode negociar-se entre líderes europeus e no Parlamento Europeu. Os Estados latino-americanos não têm capacidade para fazer frente aos EUA. 

A figura do caudilho ainda está muito presente no populismo?

Sim, a personalização na política é algo comum em todo o mundo. A personalização está sempre presente na política e é muito raro encontrar um cenário político em que os líderes não são conhecidos. A diferença com o populismo é que [Angela] Merkel não está acima das instituições: as regras do jogo controlam Merkel e ela aceita-as. No populismo não é assim, o líder populista faz as regras do jogo e muda-as constantemente. 

Considera Trump populista?

Não, mas [Hugo] Chávez, [Rafael] Correa e [Evo] Morales são populistas. Controlam de imediato o poder judicial e legislativo. Quando Chávez morreu, em 2013, e Maduro foi eleito Presidente, a oposição ganhou as eleições em 2015. E que fez Maduro? Convocou uma assembleia distinta com regras de jogo diferentes para controlar o legislativo. 

Podemos ver um choque entre populismos de esquerda e de direita na América Latina? Trump e Bolsonaro contra Maduro e Morales.

Não acho que Trump seja populista por estar controlado. Tem de negociar com o Congresso e com os congressistas do Partido Republicano. Trump não se impôs e se fosse populista tê-lo-ia feito face ao partido, que tem divergências com Trump. Também acho que é o que vai acontecer no Brasil. Para se falar de um partido populista, ele tem de ter a visão de controlar tudo. O líder de direita que poderia ser mais populista na América Latina era Álvaro Uribe, na Colômbia. A sua forma de atuar é a ideia do tudo ou nada: só há amigos e inimigos. Situa-se à direita, por ser amigo dos EUA, tem valores muito conservadores, religiosos e da família e é amigo dos grandes interesses no país. Uma forma de ver a vida política populista é através da manipulação das regras do jogo, alterá-las, mas quando o Tribunal Constitucional Colombiano lhe disse ‘não podes ser reeleito’, Uribe aceitou. Nesse momento, rompeu-se a ideia de ser populista. 

Trump ameaçou contornar o Congresso para construir o muro na fronteira com o México. O que faz um líder ser populista: a intenção ou a concretização?

Os atos é que interessam. Morales avançou com um referendo para poder ser reeleito e o povo disse não. Morales não quis saber e manipulou o Supremo Tribunal  para poder ser reeleito. 

Prevê algum confronto na América Latina entre os EUA e seus aliados e a Venezuela?

Sim, o atual grande problema na América Latina chama-se Venezuela. Primeiro, por ter impacto nos países vizinhos com a expulsão da população – agora mesmo podem haver dois milhões de venezuelanos na Colômbia. A situação económica na Venezuela é muito má. Segundo, o Governo venezuelano vai usar a lógica do inimigo de fora: querem dar um golpe e causar uma guerra civil no país. Vão usar essa confrontação como Cuba usou no passado para reforçar a unidade. Será uma tensão permanente. A Colômbia acabou de lançar a iniciativa Prosur para substituir a Unasur, reconfigurando num polo os presidentes mais ativos, o da Colômbia e do Chile. Vai convencer muito rapidamente Bolsonaro e Macri. É claramente para isolar a Venezuela. 

O Podemos aprendeu com os populismos da América Latina, que características transferiram para a Europa?

Mais que características foi a própria aprendizagem. Ficou muito claro em Espanha, entre 2014 e inícios de 2015, quando pensaram que podiam reproduzir um cenário muito latino-americano. Não tiveram em conta três questões: a diversidade territorial de Espanha, que nunca foi um país homogéneo e onde existem várias sensibilidades. Não há um povo ideal como se podia encontrar na Venezuela. A segunda questão foi a UE, que condiciona bastante o jogo. E, por fim, os partidos, que perderam muitos votos, mas que não desapareceram. Estes elementos impediram a estratégia de construção de uma hegemonia. Quando perceberam que esta via estava totalmente perdida, mudaram de rumo. Hoje, o Podemos não tem nada a ver com o Podemos de há quatro anos. É apenas mais um partido de esquerda. Não há matriz populista.

Falou dos elementos, mas qual a estratégia que aplicaram?

Em primeiro lugar, tentar ultrapassar o PSOE. O primeiro confronto deu-se no centro-esquerda, com o Podemos a pensar que podia dominar à esquerda. É o grande trauma de Pablo Iglesias. Em 2015 começou a falar disso e nas eleições de 2016 fracassou. 

Qual a relação entre populismo, media e fake news? 

O populismo tem um cariz muito emocional e o desenvolvimento da comunicação de uma determinada realidade tem um foco muito dirigido às emoções. As novas tecnologias reproduzem informações muito breves, muito de títulos, onde a razão e a possibilidade do debate são quase impossíveis. Está tudo reduzido a frases muito curtas e a aspetos muito emotivos. Diríamos que casa bem com uma proposta emocional do populismo e não com um partido político muito estruturado que debate todos os prós e contras.