Manga, o novo álbum, tem uma forte influência da cidade, para onde se mudou há três anos, e, aliás, vem embalado pela Nova Lisboa, batizada por Dino D’Santiago – o «filho feliz da lusofonia» – e bem medida por Branko, Sara Tavares ou Carlão. Protagonistas de uma nova pop centrada na Grande Lisboa, sem complexos de inferioridade, capaz de virar o espelho e captar atenções globais. Para Lisboa, e para Mayra Andrade, uma cabo-verdiana do mundo, em processo de transformação e afirmação de uma identidade.
Mudou-se para Lisboa há três anos. Porquê?
Porque precisava de viver num sítio onde me sentisse bem. Onde as pessoas e as energias se renovassem, com o sol, o rio e a hospitalidade. Houve um momento em que Lisboa surgiu como escolha óbvia. Queria sentir-me bem quando regresso das viagens, agora, e não daqui a vinte ou trinta anos.
No texto de apresentação do Manga fala de um «momento muito lusófono».
Sim, da minha vida. Lisboa já é muito lusófona, eu é que fui muito francófona. Mudar-me para cá influenciou muito este momento e acabou por se refletir no disco.
Por que razão se fixou em Paris?
Porque é uma espécie de Meca da chamada world music, embora para mim seja para a música em geral. É uma capital musical muito importante. Não teria trocado isso por nada. Foram 14 anos a viver lá, foram quatro discos, com editora, banda e management em Paris. Eles continuam lá, simplesmente precisava de uma base de vida um pouco diferente. Paris é mais stressante, não há sol e o céu muito baixo (ri-se). E eu sou uma planta muito verde, preciso de sol e isso afeta muito o meu estado espírito.
Veio encontrar uma Lisboa mais aberta à lusofonia?
Sim, Lisboa está num momento muito vivo com a criatividade aguçada. Está mais cosmopolita, não sei se mais do que nunca, mas pelo menos do que nos últimos vinte anos. O facto de a crise em Portugal ter sido mais longa do que no resto da Europa fomentou a criatividade. A música eletrónica underground e a cena lusófona estão muito presentes na vida das pessoas em Lisboa. Não é preciso ser cabo-verdiano ou guineense para ouvir. Isso surpreendeu-me muito quando me mudei para cá. Noto que a minha música é recebida cá como se fosse portuguesa. São pessoas que convivem com essa criolidade há muito tempo. Isso é muito agradável para uma artista que tem que abrir caminhos fora do seu país.
Uma cidade mais inclusiva?
Acho que Lisboa se tornou uma cidade mais aberta de forma geral. Nem sei se haveria outra opção porque o mundo invadiu Lisboa e Lisboa tem mais é que se abrir e tirar o melhor disto. Tenho alguma dificuldade em falar da inclusão e na evolução do racismo em Portugal, e não falo só de Lisboa, porque não cresci cá. Vivo cá há três anos e tenho uma situação muito privilegiada pelo que faço. E quando és uma artista as pessoas já te recebem de forma muito particular. Tive uma infância muito feliz em Cabo_Verde, e embora tenha vivido fora – e obviamente já fui vítima de racismo – não cresci trancada numa sociedade com uma mentalidade pequena e racista. Eu sei que há gente que sofre destas questões toda a vida, e isso influencia muito a forma como nos relacionamos com os outros. Conheço muitos cabo-verdianos e jovens africanos que me falam do racismo vivenciado cá, e como isso marcou a juventude. Só me resta esperar que eles sintam uma diferença para que eles, os filhos e os filhos dos filhos não tenham que lidar com esse racismo que ainda existe.
Do que observa, esse racismo está presente no dia-a-dia ou é sobretudo sistémico?
Acho que é um todo. Onde se mandam bocas no dia a dia também existe racismo institucional. No mercado de trabalho e em outras oportunidades. As pessoas precisam de perceber que somos iguais para que todos tenhamos as mesmas hipóteses. Só se podem julgar as pessoas se o padrão for igual para todos. É muito complicado julgar pessoas que foram discriminadas e maltratadas pelas suas origens. Pela religião, pela opção sexual…O racismo dificilmente está reservado a uma categoria dentro da nossa organização social. Não existe um racismo institucional se não houver um racismo de rua. O tronco é comum, as ramificações são variáveis.
O entusiasmo crescente pela música de raiz lusófona e afro-lisboeta ajuda a derrubar muros culturais e barreiras sociais de origem racial?
Certamente que sim. Há uma nova geração de portugueses muito mais viajada e consciente dos problemas da colonização. E nós próprios, ex-colonizados, também somos uma nova geração muito mais bem resolvida, graças às lutas travadas pelos nossos pais e avós. É um dos lados bons da globalização. Há uma troca maior entre povos, culturas e gerações.
Toda a música tem uma geografia mas a relação pode ser universal. É um fator de aproximação entre povos?
Sim, e ainda bem. Sou de um país que fala uma língua que pouca gente percebe. Eu canto sobretudo em crioulo cabo-verdiano e somos um milhão e quinhentos mil a compreender a língua – contando com a diáspora. A música vai para além da língua. A mistura que resultou na música cabo-verdiana é muito forte. Entra pelos poros e circula pelas pessoas. É o que me permite cantar pelo mundo. As pessoas não percebem o que eu digo mas dizem-me sempre: «tenho a sensação de que percebi tudo o que disseste». É fantástico porque cada um tem espaço para contar as próprias histórias e deixar-se levar pela emoção.
A referência de Cabo Verde ainda é Cesária Évora ou vozes mais recentes como a da Mayra já são reconhecidas?
As pessoas começam a reconhecer. Já existe a consciência de que a cena cabo-verdiana se renovou bastante e que há artistas a desenvolver um trabalho muito próprio, muito menos ligado a uma tradição. Mas sem dúvida que a grande referência é a Cesária Évora e, pelo que ela fez pela música cabo-verdiana, vai sê-lo durante muitos e muitos anos. Cabe-nos trazer outros cenários para a música de Cabo_Verde.
Os cabo-verdianos da área metropolitana de Lisboa tendem a ser muito unidos. Quando voltou para Lisboa, foi à procura da comunidade?
Sim. Para ser muito sincera, onde quer que viva procuro conhecer locais e as minhas amizades e convivências não estão muito ligadas à nacionalidade das pessoas mas sim à troca entre cada um. Agora, é certo que estar em Lisboa é como estar em casa porque há muitos cabo-verdianos. Faz bem ter a comunidade nos concertos e andar pela rua e ouvir falar cabo-verdiano. E saber onde ir comer uma boa cachupa. Ouvir música cabo-verdiana nas festas. Sou muito cabo-verdiana mas também muito cosmopolita e aberta ao mundo. Sempre foi muito importante ser independente e ter o meu espaço. Mesmo quando vivi em Cabo Verde, que é muito pequeno. Procuro não estar sempre nos mesmos sítios, com as mesmas pessoas. Gosto de ter grupos de amigos diferentes.
Como é que foi a infância em Cabo Verde?
Foi rodeada de muita gente. Tínhamos água uma ou duas vezes por semana e a televisão funcionava algumas horas por dia. Isso permitia-nos ter imenso tempo para brincar juntos. Havia esse sentido muito forte de comunidade. Organizávamos campanhas de limpeza, plantávamos árvores e elegíamos a Miss Condomínio (ri-se). Continuamos a ter uma ligação muito forte, organizamos almoços na época de Natal e vai toda a gente já com montes de filhos. Passávamos muitos fins de semana na montanha e no campo com as batucadeiras, montávamos tendas e ocupávamos bungalows. Havia convívio, muita música e um nível de segurança diferente. Vejo que os meus sobrinhos, embora tenham tablets e iPhones, continuam a brincar muito na rua e a conviver. A brincadeira de rua marca muitas infâncias. Comecei por falar na falta de água, de luz e de televisão porque o que parece ser uma dificuldade fomenta laços de amizades. Lembro-me que quando um vizinho não tinha água, cada um levava um garrafão para ele se aguentar mais uns dias. A minha infância foi um conto de fadas.
A entreajuda é uma das marcas sociais de Cabo Verde?
Sim, sem dúvida. Às vezes para mal também. Quando a comunidade é muito pequena, às vezes as pessoas autorizam-se a dar opiniões onde não foram chamadas. É o tal espaço e liberdade que me faz falta. Mas sem dúvida que, nas horas felizes, o cabo-verdiano sabe festejar muito bem e, nas horas tristes, há um sentido de comunidade muito forte. Quando se perde alguém na família, o luto é vivido de forma muito intensa. Há quem diga que demais porque não há espaço para a pessoa se recolher e estar sozinha. Há que abrir as portas e receber a comunidade toda que vem para dar força. Apesar do desgaste, porque é preciso dar de beber e comer a essa gente toda durante sete dias. Há prós e contras, mas os prós são muito fortes. Não estás sozinho.
Quando deixa Cabo Verde, vai para onde?
Senegal quando tinha seis anos. É uma realidade muito diferente onde se veste, come e olha de forma diferente. A música, a dança…E está frente a frente, a quinhentos quilómetros de Cabo Verde. Até então, só tinha ido até Lisboa. E tinha algumas memórias de Cuba [onde nasceu]. Foi uma descoberta. «Uau, o mundo é mesmo diferente». Foi uma introdução muito positiva ao continente africano. E foi onde aprendi a falar francês. Estive lá até aos oito anos.
E depois?
Fui para Angola. Outro choque muito grande. Vivi lá de 93 a 95 quando o país ainda estava em guerra. A imagem das crianças de rua, dos mutilados de guerra e da cidade desfigurada marcou-me muito enquanto criança. Mas a alegria do povo angolano sempre me surpreendeu. Lembro-me de pensar: como é que eles riem? Como é que eles dançam? São tão simpáticos. O povo angolano é muito resiliente. O cabo-verdiano também, mas nós não sofremos quarenta anos de guerra civil.
E a seguir?
Volto a Cabo Verde por um ano e depois vou para a Alemanha.
O seu padrasto era diplomata.
Sim, Embaixador de Cabo Verde.
Como é que se dá na Alemanha?
Foi um choque cultural forte (ri-se). E climático. Quando penso na Alemanha, penso muito no frio. Físico, mas também na alma. Estudei em escolas francesas e vivi num internato, onde passava a semana toda. Notava-se que, na rua, o trato era diferente e infelizmente não fiz muitos amigos alemães. Os povos são diferentes e cabe a cada um adaptar-se, mas lembro-me que em adolescente me sentia feia. Não encaixava nos padrões._Sentia-me mesmo muito feia. E regressar a Cabo Verde aos catorze anos foi (suspira sorrindo). Aqui olham para mim de outra forma, notam que eu existo. A Alemanha teve outras coisas boas. Lembro-me de ir muito a museus, de ver muitos concertos de música clássica, em igrejas. Pude conhecer uma realidade diferente. Claramente não foi o país onde desabrochei como jovem, mas foi uma fase muito importante para aperfeiçoar a minha capacidade de adaptação. E a independência, porque vivi num internato entre os doze e os catorze anos.
Crescer nómada privou-a de alguma juventude?
(acena com a cabeça) Pois. Não gosto de dizer que fui privada porque foi uma oportunidade que me preparou para a vida que tenho hoje. Se consegui ir viver sozinha para Paris aos dezassete anos, foi também pelo percurso de vida que tive. Agora, quando começava a criar laços tinha de me vir embora. E ainda não havia email. Era um corte muito violento para uma criança. Chorava sempre imenso. Dizia que não queria ir e que ficava sozinha. Quando regressei a Cabo Verde dos catorze aos dezassete – uma idade decisiva – senti que as pessoas já tinham laços e que tinha de lutar muito para ser aceite. Voltar a ter o meu lugar. Há um lado doloroso neste percurso. Sentir-me um anexo e ver se me deixam entrar. Naquela idade, é complicado. Em Cabo Verde, fui discriminada por ter vivido fora e pelas oportunidades que tive. São problemas de luxo mas marcam.
Os países por onde passou têm uma cultura musical de rua bastante vincada, talvez com exceção da Alemanha. Onde aparece a música?
Não subestime a cultura musical da Alemanha. Eu era obrigada a levar todas as pessoas que nos visitavam a conhecer a casa de Beethoven. A herança musical alemã é muito grande, só que é mais erudita. Eu nasci cantora. Lembro-me de cantar aos três anos, com quatro pedi um violão à minha mãe e organizava uma orquestra no quarto com os vizinhos. Tinha montes de instrumentos no quarto. Adorava aquela posição de comandar toda a gente e cantar (ri-se). Não surgiu em nenhum desses países, é uma vocação, mas todos esses países me deixaram alguma coisa que depois resultou na música que faço. Na permeabilidade a outras culturas e na forma descomplexada que sempre tive de usar a música tradicional cabo-verdiana para fazer algo próprio.
Paris foi uma necessidade?
Eu já era muito francófona. Estudei oito anos em escolas francesas, entre a infância e adolescência. Ganhei um concurso internacional no Canadá em 2001 e recebi uma bolsa para estudar canto em que me era dada a hipótese de escolher um país de língua francesa. Para mim, França e Paris foram óbvios.
Que papel foi tendo Lisboa durante esse crescimento?
Vim sempre a Lisboa durante a minha infância. Passava cá o Natal e parte do verão. O meu avô era português, vivia em Carnaxide. Conheci muito bem o Jardim Zoológico. Gostava muito de vir cá. Quando comecei a cantar profissionalmente, aos dezassete ou dezoito anos, já só vinha a Portugal fazer concertos. Passaram a ser viagens curtas. Lembro-de vir cá e pensar: «mas a sério que o Inverno assim é aqui?!?». Era uma relação muito pontual, mas fui sempre bem acolhida aqui. Houve um momento em que comecei a pensar com muito mais urgência que precisava de sair de Paris porque já não me sentia feliz. Ainda pensei em ir para Barcelona. Mas para quê? Não conhecia ninguém. E alguém me disse: porque não Lisboa? Claro! Foi durante tanto tempo uma opção não contemplada quando saí de casa da minha mãe, porque vir a Lisboa era estar em casa e vir para casa, e eu queria muito a minha independência. Mas aos vinte e nove, trinta, pensei: mas é claro! Preciso de casa, preciso de estar na Europa, de mais sol e de convívio. E Lisboa ainda é mais genuína do que Barcelona.
No final do ano passado, houve um espetáculo do Branko no Terreiro do Paço em que se juntaram uma série de vozes como a Mayra Andrade, a Sara Tavares, o Carlão, o Dino D’Santiago e o Cachupa Psicadélica.
(interrompe sorrindo) A Nova Lisboa.
Que nova cidade é essa que esta música representa?
Toda a gente é essa Nova Lisboa porque, o que inspira o que eu ou o Dino escrevemos, são as pessoas no dia a dia. E a forma como as pessoas se relacionam entre elas e com a cidade. Nós temos o privilégio de oralizar e de transmitir o que é essa Nova Lisboa. É uma pergunta ingrata (sorri). Diria que a Nova Lisboa sacode a poeira. É uma cidade descomplexada e em movimento._Tem ginga, tem identidade, por mais variável que ela seja, e reivindica-a. É uma Lisboa sexy que atrai. Há imensa gente atraída pela cena musical. E essa Nova Lisboa não é só o que está a fazer em 2019. É o que se vem fazendo nos bairros de há dez anos para cá.
A canção ‘Reserva Pra Dois’, gravada com o Branko, fê-la chegar a novos públicos?
Com certeza. A canção já foi gravada há uns anos e aconteceu num momento em que já pensava num próximo disco. O Lovely Difficult saiu em 2013, estive dois anos em digressão, e depois houve um período muito longo em que mudei de país e de estilo de vida, e estive à procura de caminhos. Durante muito tempo, tanto queria ir para o Norte como para o Sul. E esta colaboração abriu um precedente para o que me autorizei a fazer depois. Gosto de trabalhar com artistas que me tragam algo diferente. Foi como uma semente, vim cá, plantei e percebi que me fez chegar a um público que não me conhecia dessa forma, e me sentiu mais próxima.
Encontrou o Norte.
Ou o Sul (ri-se).
Cresceu com privilégios, estudou em colégios e pôde viajar. Sentiu necessidade de beber da cultura de rua?
Se for a Cabo_Verde, é muito provável no mesmo espaço possa encontrar o primeiro-ministro ou o Presidente da República, um músico e um pescador. Vir de Cabo_Verde já implica lidar com a realidade. As pessoas mais privilegiadas não têm um terço, em recursos, do que uma pessoa privilegiada tem num país desenvolvido. Continua a ser um país africano pobre – há países africanos muito, muito ricos – em que os recursos são sobretudo humanos. Mesmo frequentando colégios privados e convivendo com pessoas de um nível sociocultural acima da média, continuamos a comer cachupa em casa e a ouvir música de Cabo_Verde em casa. E a querer passar o tempo livre em Cabo Verde. Quando vou a Cabo_Verde, estou de chinelos a conviver com pessoas que fazem parte da minha vida desde sempre. Eu sou aquilo. Estar confortável num meio diferente não significa estar desconectada das minhas origens.
Qual é o sumo desta Manga?
É a feminilidade. A sensualidade. É um fruto ácido e doce. Tem texturas diferentes e a cor altera-se em função do estágio em que está. Como mulher, é uma metáfora boa. E é a rainha das frutas tropicais – a minha fruta favorita!
Que momento da sua vida reflete?
Sobretudo de auto-afirmação. Na vida de uma mulher, a partir dos trinta há uma transformação muito profunda. Às vezes silenciosa, mas muito consistente. Custa-me falar disso (ri) porque talvez só as mulheres entendam isso. Sinto-me muito mais segura do que sou. Afeta-me muito menos a opinião das pessoas. É como se a essência do ser se tornasse muito mais concentrada.