Dois portugueses sem igual cruzaram-se nas estrelas do céu de Lisboa no dia 9 de Outubro de 1976. Se um Sporting-Benfica é sempreum jogo especial, então poderemos dizer que este foi extravagante. Houve nele Eusébio e Carlos Lopes. Homenagem e despedida. Ou, como cantavam os Beatles – «You say Goodbye and I say Hello, hello, hello».
Quando lerem que o último jogo oficial de Eusébio pelo Benfica teve lugar no Estádio da Luz no dia 29 de Março de 1975, frente ao Oriental, podem estar certos da informação. Quando vos garantirem que o último jogo de Eusébio com a camisola encarnada de águia ao peito foi em Casablanca, Marrocos, num amigável contra uma seleção africana, no dia 18 de Junho de 1975, têm o direito de torcer o nariz. Porque ele voltou a jogar pelo Benfica. Por causa de Carlos Lopes. Dificilmente os astros poderiam alinhar-se de forma tão singela.
A notícia tinha laivos de entusiasmo: «Milhares em Alvalade, esta tarde, na homenagem que o Sporting dedica ao vice-campeão olímpico dos 10 quilómetros. Atrações aos punhados: desde Yazalde, já em Lisboa, à estreia do brasileiro Clésio num Sporting-Benfica futebolístico que até mete Eusébio (nas águias) a provar se (ainda) serve para as grandes andanças. Ciclismo, atletismo, medalhas e parabéns: festa com todos, como se adivinha».
Pois… não era difícil de adivinhar.
Yazalde e Eusébio tinham deixado o Sporting e o Benfica um ano antes. Estavam de regresso a casa.
Quarenta e tal mil pessoas encheram o estádio com alegria. A rivalidade estava lá, mas desta vez um pouco mais disfarçada pelo ambiente caloroso de um abraço fraterno. Afinal, Benfica e Sporting são ambos filhos da mesma mãe Lisboa.
O Benfica tinha um treinador inglês (o Sporting também, Hagan). Façanhudo. Nariz enorme, sempre plácido:_John Mortimore. Não me lembro de o ver sorrir, quanto mais rir. Antes do jogo, na cabina, Eusébio pediu-lhe para dizer umas palavras aos antigos companheiros. Saiu-se assim: «O futebol, para mim, nunca pode ser uma brincadeira. Eu jogo sempre a sério! E mais: não gosto de perder! Venham comigo, vamos ganhar mais este jogo!».
Entretanto, a pista que rodeava a relva de Alvalade transformava-se numa passerelle para antigas vedetas: Tomás Paquete, João Vieira, Palhares, Costa, Joaquim Ferreira, Manuel de Oliveira, Alberto Matos…
Ninguém estava disposto a perder pitada.
E as provas. 100 metros: vitória de Vítor Mano; 400 metros: vitória de Cachola; 1500 metros: vitória de Fernando Mamede. Adriano Rodrigues triunfando no salto em comprimento; Raposo Borges no salto à vara.
Havia para todos os gostos. Com a promessa de futebol para encerrar o festival.
Eusébio será sempre Eusébio
Discursos inflamados. Elogios a Carlos Lopes, todos eles mais do que merecidos – ficou lá dependurado na parede branca na qual o retrato dos enormes se destacam em brilho eterno.
E Joaquim Agostinho. O grande_Agostinho. Pedalando largo para uma ovação formidável.
Quando Yazalde apareceu na boca do túnel, estralejaram palmas a esmo. Vinha de cabelo curto, diferente do Chirola gadelhudo que fazia golos atrás de golos para gáudio dos leões. E Eusébio a seu lado, capitão de equipa, mancando ligeiramente da perna direita, sofrendo como tanto sofreu na fase final da sua carreira, os joelhos desfeitos pela crueldade do jogo que amou.
Do lado do Sporting jogaram Matos,_Amândio, Laranjeira, Zezinho,_Da Costa, Barão, Vítor Gomes, Valter, Manoel, Yazalde, Libânio, Fraguito, Marinho, outro Valter, guarda-redes, e o estreante Clésio, promessa que passaria por Portugal como cão em vinha vindimada.
Do lado do Benfica jogaram Álvaro, Bastos Lopes, Barros, Alhinho, Romeu, José Luís, Shéu, Chalana no fulgor dos seus 20 anos, Nelinho, Cavungi, Alberto, José António e José Domingos.
E Eusébio, claro!
Coitado do Cavungi: queriam colocar-lhe um autocolante nas costas dizendo: «Eu sou o novo Eusébio!». Não era. Nunca foi. Nunca poderia ser.
Eusébio não se repete.
Carlos Lopes também não.
Faltava muita gente. A seleção nacional preparava-se para defrontar a Polónia, na fase de qualificação do Campeonato do Mundo de 1978, marcado para a Argentina. José Maria Pedroto não permitira que os seus escolhidos se distraíssem da agenda, em estágio no_Porto. Foi um desastre: derrota por 0-2 e uma eliminação tão dura quanto precoce.
Outros quinhentos…
Ah! Vítor Baptista também não compareceu. Parece que tinha mais do que fazer. Logo ele que dizia de si próprio: «Sou o maior!».
Não deram pela sua falta em Alvalade. Gente ilustre às pázadas. O clima solto puxava às brincadeiras, às pilhérias, pressentia-se que o jogo não iria fugir a essa toada.
Engano. Nada mais do que um engano.
Um Benfica-Sporting nunca é brincadeira. Está entranhado na pele de quem defende aquelas camisolas e aqueles emblemas que a derrota não é pura e simplesmente aceitável sem que a luta dure até ao fim.
Eusébio podia manquejar mas tinha pormenores de classe absolutamente extraorinários. Ah! E Chalana? Que azougue! Que alacridade!
Yazalde procurava o golo com afã. Mas as balizas negavam-se-lhe. Já os defesas do Benfica atrapalhavam-se com os seus movimentos ferozes. Fraguito e Marinho queriam provar a injustiça de não terem sido convocados por Pedroto. José Luís e Nelinho pareciam Mercúrios com asas nos pés.
João Rocha, o presidente do Sporting, não cabia em si de contente. Ele queria era ver o seu povo feliz!
Manoel, o Manoel do O, que num dérbi chegou a ser Manoooel à custa de um hat-trick, foi Manooel: marcou os dois golos do Sporting. Chalana, Cavungi e Nelinho marcaram os três golos do Benfica.
Dois-a-três: não havia razões de queixa para o que os protagonistas desse dérbi tão especial tinham feito durante os noventa minutos._A pouco e pouco, quase contrariados, os mais de quarenta mil felizardos foram saindo, misturando-se na cidade. Há sempre uma certa melancolia que se segue às festas. Carlos Lopes sorriu.