É possível um processo ser distribuído duas vezes no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) com apenas um dia de diferença? Tanto é que aconteceu: um processo que envolve desvio de fundos do Banco Nacional de Angola foi parar às mãos do juiz João Bártolo e, no dia seguinte, regressou a Carlos Alexandre.
O caso – que diz respeito a um alegado branqueamento de capitais – estava sob alçada do juiz Carlos Alexandre e tinha como procurador Orlando Figueira, tendo entre os arguidos o empresário português Pinto Mascarenhas e o então banqueiro luso-angolano Álvaro Sobrinho.
Recorde-se que, em 2014, passa a ser obrigatório que todos os processos sejam distribuídos eletronicamente. Ora, este caso estava a ser investigado desde 2011 e era Carlos Alexandre o juiz responsável. A distribuição eletrónica foi realizada em 2015, mas algo estranho aconteceu.
Durante a fase de inquérito, a defesa de Armando Vara na Operação Marquês tentou colocar em causa o princípio do juiz natural, pedindo as listas de distribuição dos juízes. O SOL consultou agora estas listas e encontrou algo surpreendente: o processo da burla de mais de 100 milhões de dólares ao BNAsurge na lista… duas vezes. A 13 de abril de 2015 o processo é distribuído de forma automática ao juiz João Bártolo e, no dia seguinte, volta a ser distribuído, desta vez manualmente a Carlos Alexandre.
E por que surge esta redistribuição em 2015 se o processo é mais antigo? Precisamente por causa das novas regras aplicadas a partir de 2014. Até aí, sempre que o processo ia parar ao TCIC, ia parar às mãos de Carlos Alexandre, o único juiz daquele tribunal. No entanto, a partir de setembro desse ano, torna-se obrigatória a redistribuição eletrónica de todos os processos. Abril de 2015 terá sido a primeira data em que o processo teve de regressar ao Ticão, como é conhecido, daí que só nas listas de distribuição dos processos só apareça essa data.
Contactado pelo SOL, o advogado que representou Álvaro Sobrinho neste processo mostrou-se surpreendido com esta nova distribuição: «As ‘batotas’ na distribuição de processos são lamentáveis, violam gravemente uma dos princípios nucleares da Justiça e do Estado de Direito – o princípio do juiz natural –, permitem todo o tipo de manipulação dos processos e lançam as mais sérias dúvidas sobre a isenção e imparcialidade dos Magistrados que pactuem com essa viciação dos procedimentos».
Sem querer fazer referências a este processo, Artur Marques disse ao SOL que a ‘batota’ na distribuição de processos «nunca é inocente, causa danos irreparáveis na imagem e na certeza e segurança da Justiça e pode ser utilizada como instrumento ao serviço de projetos de poder pessoal, que, por natureza e definição, são espúrios e têm de ser combatidos com firmeza».
Questionado pelo SOL sobre o porquê de terem ocorrido duas distribuições com apenas um dia de diferença, o juiz Carlos Alexandre disse não saber do que se tratava: «Informo que desconheço se tal ocorreu e em que circunstâncias». Já o juiz Bártolo informou que o SOL teria de pedir autorização ao Conselho Superior de Magistratura (CSM) para o magistrado responder às questões colocadas, um formalismo que o CSM rejeita ser necessário. O SOL enviou as questões ao CSM , tentando também entrar em contacto direto com João Bártolo, mas, até ao fecho desta edição, não obteve resposta.
CSM arquivou averiguação a Carlos Alexandre
O SOL enviou também um pedido de esclarecimento ao próprio CSM, que se escusou a pronunciar-se sobre esta questão, remetendo para a ata do plenário de 5 de fevereiro. Em causa está a decisão do CSM em relação ao processo de averiguação à distribuição do processo Marquês.
Esta lista de distribuição dos processos no TCIC surge na Operação Marquês depois da defesa de Armando Vara e de José Sócrates ter tentado colocar em causa o princípio do juiz natural. Em 2013, ano em que foi aberto este inquérito, Carlos Alexandre era o único juiz do TCIC, mas, a partir de setembro de 2014, o tribunal passa a ser ‘dividido’ com João Bártolo. É nessa altura que a distribuição deixa de ser manual e passa a ser eletrónica. Os advogados de defesa defendiam que, nessa altura, o processo teria de ser redistribuído de novo de forma eletrónica, sendo essa tarefa presidida por um juiz.
Carlos Alexandre sempre defendeu que os problemas com o programa informático Citius tinham impossibilitado a redistribuição automática na fase de inquérito, daí que se tenha optado por recorrer ao procedimento manual.
Agora, o órgão de disciplina dos juízes decidiu arquivar este processo de averiguação, aberto no ano passado. Na ata do plenário de 5 de fevereiro, pode ler-se: «Em processo de averiguações relativamente ao funcionamento do ‘Citius’ no Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa foi deliberado, por unanimidade, tomar conhecimento do expediente respetivo, aprovar a proposta do exmo. sr. inspetor judicial de arquivamento».
Além do pedido de esclarecimento ao CSM, o SOL pediu também uma reação à juíza presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa para tentar perceber se existe alguma situação em que se justifique distribuir duas vezes o mesmo processo, mas não obteve resposta.
A fraude ao BNA
O processo no centro desta dupla distribuição envolve uma alegada fraude ao Banco Nacional de Angola (BNA) e, entre os arguidos, Álvaro Sobrinho e Pinto Mascarenhas.
Na origem do inquérito aberto pelo Departamento Central de Instrução e Ação Penal (DCIAP) está uma queixa da República de Angola às autoridades portuguesas, que dava conta de uma alegada fraude, através da falsificação de documentos num valor de cerca de 137 milhões de dólares (cerca de 110 milhões de euros) entre 2007 e 2009.
O Ministério Público começou a investigar um alegado caso de branqueamento de capitais relacionado com uma transferência de 4,5 milhões de dólares (3,3 milhões de euros) efetuada por Álvaro Sobrinho para a conta de um empregado português, através de uma offshore. As autoridades angolanas suspeitavam que estes 4,5 milhões faziam parte dos 137 milhões de dólares da alegada fraude ao BNA.
O caso acabou por ser arquivado.
Ligações a Orlando Figueira
Recorrendo ao método manual, aquele processo acabou mesmo por regressar às mãos de Carlos Alexandre.
E quem era o procurador do Ministério Público que conduziu inicialmente o inquérito aberto pelo DCIAP? Orlando Figueira.
As ligações entre o procurador condenado no âmbito da Operação Fizz e o juiz do Ticão já são antigas e chegaram a ser notícia.
Amigos há quase 30 anos, Carlos Alexandre chegou mesmo a pedir dinheiro emprestado ao procurador. Figueira emprestou 10 mil euros ao juiz, que, no âmbito da Operação Fizz, explicou o porquê de ter pedido esta ajuda monetária: Carlos Alexandre admitiu que precisava de ajuda para continuar a construção de uma casa na sua terra natal, Mação. Tinha pedido um empréstimo de 100 mil euros à Caixa Agrícola, mas este só seria libertado às prestações, conforme a evolução da obra. Em outubro de 2015, como a obra não tinha avançado, o banco não libertou 10 mil euros, daí que Carlos Alexandre tenha decidido recorrer ao amigo.
O juiz do TCIC disse ainda que aceitou o dinheiro sem suspeitar que estivessem subjacentes atos de corrupção.O magistrado explicou que, quando o banco libertou a verba, fez, em março de 2016,um depósito para devolver o empréstimo.
Tudo isto acontece numa altura em que Carlos Alexandre era o juiz responsável pelo processo dos Vistos Gold e pouco tempo antes de Orlando Figueira ser contratado para defender o angolano Eliseu Bumba neste processo.
O ‘superjuiz’ nunca chegou a pedir escusa nesse processo.