Em seis anos, apenas Damien Chazelle foi capaz de interromper o domínio mexicano. Em seis anos, cinco vezes o Óscar de Melhor Realizador foi entregue a um de três mexicanos: Alfonso Cuarón, Guillermo del Toro e Alejandro G. Iñárritu, ‘the three amigos’, como são conhecidos em Hollywood.
No ano passado, quando Guillermo del Toro venceu o Óscar de Melhor Filme com A Forma da Água, entre os que o aplaudiam de pé na plateia do Dolby Theater, em Los Angeles, estava Alfonso Cuarón. Este ano, no último domingo, foi das mãos de del Toro que Alfonso Cuarón recebeu o Óscar de Melhor Realizador, por um filme a preto-e-branco, pessoal, em espanhol com sotaque mexicano e com não atores entre o elenco que, depois de fazer sucesso tanto em Veneza como na Netflix, de forma improvável fez o seu caminho até aos Óscares: Roma.
Um dos grandes vencedores de uma noite que em Hollywood se voltou a fazer de protagonistas mexicanos, aos quais nos últimos anos se tem juntado um outro: Alejandro G. Iñárritu, que nem em ano off em estreias deixou de ser notícia em mês de Óscares. Dias depois de Alfonso Cuarón fazer história nos prémios da Academia de Cinema norte-americana, o realizador de Birdman e O Renascido era anunciado como presidente do júri para a edição deste ano do Festival de Cinema de Cannes, que decorre entre os próximos
dias 14 e 25 de maio.
Entre Cuarón e Iñárritu, cada um vencedor de quatro Óscares até aqui, as contas serão difíceis de acertar. E vem Guillermo del Toro, logo de seguida, que conta dois entre o seu acervo de prémios, ambos por A Forma da Água, que no ano passado venceu quatro. ‘The three amigos’, assim ficou conhecido em Hollywood o grupo de três realizadores mexicanos que chegaram para tomar Hollywood e os Óscares — e que parece ter
vindo para ficar.
O epíteto vem do título de um livro que conta a história do seu cinema. Uma história cujo início se poderá situar na viragem do milénio, quando em 2001 Cuarón chegou aos Óscares com Y Tu Mama También, de Alfonso Cuarón, nomeado na categoria de Melhor Filme Estrangeiro. É também desse ano Amores Perros, a primeira longa de Alejandro González Iñárritu que se fez logo título obrigatório na sua filmografia: protagonizado por Emilio Echevarría e Gael García Bernal, seguiu-se-lhe 21 Gramas (2003) e, logo depois, em 2006, era já Brad Pitt a estrela do realizador mexicano, em Babel. Depois de um Biutiful ainda em espanhol, com Javier Bardem, Iñárritu fez tremer Hollywood com uma sucessão de dois filmes em inglês que marcaram os Óscares em duas edições seguidas: um impressionante Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância), que e O Renascido, o filme que deu a Leonardo Di Caprio o seu primeiro Óscar.
Dois anos depois viria a vez de Guillermo del Toro, com um filme que teria, à partida, tudo para correr mal — a história de uma mulher das limpezas que não consegue falar e que se apaixona por uma criatura marinha escondida num laboratório em que o Governo leva a cabo experiências científicas durante a Guerra Fria — mas que se transformou não só num sucesso comercial, como fez o seu caminho até aos Óscares, de onde saiu o grande vencedor no ano passado.
Por essa altura, Barry Jenkins, que no ano anterior fizera também ele História com Moonlight, um filme com um elenco composto apenas por atores negros que lhe deu os Óscares de Melhor Realizador e de Melhor Filme (depois do percalço do anúncio do vencedor errado para La La Land). «Wow wow wow», escreveu no Twitter há um ano. «Imaginem o que era, em cinco anos, uma pessoa e os seus dois rapazes ou raparigas lá de casa, ou uma mistura dos dois, ganhassem todos os mais prestigiados prémios no ofício que amam e ao qual dedicaram as vossas vidas. É… o PARAÍSO».
Por essa altura já se falava na próxima produção de Alfonso Cuarón, que sob a alçada da Netflix, viria a seguir o mesmo capítulo de uma história que continua.
Olhemos para a lista de vencedores do Óscar de Melhor Realizador dos últimos anos: antes de Alfonso Cuarón, este ano, com Roma (2018), 2017 foi o ano de Guillermo del Toro, com A Forma da Água. E o ano anterior a esse pode ter sido de Damien Chazelle (La La Land), mas nos três anteriores a Academia havia distinguido Iñárritu duas vezes de seguida, por O Renascido (2015), um dos filmes mais premiados de sempre nos Óscares, e Birdman (2014). O ano anterior, e já vamos em 2013, foi de Alfonso Cuarón, com o seu filme anterior, Gravity: bem distante de Roma no género, um thriller de ficção científica em que envia Bullock e Clooney para o espaço, realizado, escrito e produzido pelo mexicano, que bateu nesta categoria Martin Scorsese com O Lobo de Wall Street e que venceu sete Óscares ao todo (incluindo o de Melhor Fotografia para Emmanuel Lubezki).
Os planos de Cuarón para depois de Gravity eram de um drama pré-histórico. Num encontro informal noutro festival, partilhou a ideia com Thierry Frémaux, o diretor de Cannes, que lhe respondeu que era ridícula. Segundo contou recentemente o realizador à Hollywood Reporter, foi Frémaux a sugerir-lhe que fizesse antes um filme mais pessoal. «Fiquei chateado, mas ele estava certo». Pensou então numa ideia que vinha de há muito tempo, a ideia que deu Roma: «Foi há 12 anos que o filme se manifestou pela primeira vez. Não tive coragem, tive medo de o fazer». Mas, depois de Gravity, ganhou a coragem que lhe faltava para regressar, pela primeira vez em 17 anos, ao México, e voltar com um filme a resgatar as memórias da sua infância que poderia ter feito história, não tivesse sido Green Book um surpreendente vencedor do Óscar de Melhor Filme. Porque, mesmo apesar disso (e de esse filme ter sido tão premiado quanto o seu, ou Black Panther ou Bohemian Raphsody), se houve um vencedor no Dolby Theater de Los Angeles no último domingo, não foi um filme, foi um homem, e foi ele, um realizador mexicano, com um filme mexicano, para os Óscares de Melhor Realizador, Melhor Fotografia e Melhor Filme Estrangeiro.
Venha Trump, venha quem vier, Hollywood transformou-se, com a chegada destes três realizadores, território mexicano — e veio Roma, um filme falado em espanhol, protagonizado por uma mulher de origem indígena (Yalitza Aparicio, nomeada para Melhor Atriz ao lado de Olivia Colman, que venceu o seu primeiro Óscar com A Favorita, de Yorgos Lanthimos) ao lado de Marina de Tavira, prová-lo neste ano, fazendo a imprensa e a crítica questionarem-se sobre se poderá ficar 2019 marcado como o ano que mudou o rumo dos Óscares. Porque esta história a preto-e-branco em que o realizador mexicano explorou e revisitou, como disse o próprio em entrevista à Hollywood Reporter, «feridas antigas», não entrará na categoria de Gravity, protagonizado por Sandra Bullock e George Clooney e vencedor de sete Óscares ou dos Birdman e O Renascido com que Iñárritu se rendeu ao inglês e à maior indústria de cinema do mundo nos anos subsequentes.
Com Roma, Cuarón fez história, mas também a Netflix, que de um golpe chegou, com um filme autoral a preto-e-branco rodado na Cidade do México, um filme sobre os desprivilegiados, sobre os invisíveis, com não atores a integrarem o elenco, ao circuito dos grandes festivais (o filme venceu o Leão de Ouro na sua estreia no Festival de Cinema de Veneza, em 2018) e aos Óscares.
Cuarón fez questão de o lembrar, no discurso com que recebeu de Guillermo del Toro o Óscar de Melhor Realizador no último domingo, em que agradeceu às suas atrizes, a estreante Yalitza Aparicio acompanhada de Marina de Tavira, dizendo que elas «são o filme». E lembrou depois as empregadas domésticas de todo o mundo, com um agradecimento à Academia «por reconhecer um filme centrado [na história de] uma mulher indígena, uma das 70 milhões de pessoas que por todo o mundo não têm os mesmos direitos que têm os outros trabalhadores».
Sobre trabalho invisível — ou não tão visível, no caso — há que notar que falar sobre os ‘three amigos’ que, vindos do México, tomaram Hollywood não é falar apenas nestes três nomes, mas nos nomes que têm gravitado à volta deles: os diretores de fotografia Emmanuel Lubezki, conhecido como Chivo, que tem trabalhado tanto com Cuarón como com Iñárritu, entre outros, vencedor já de três Óscares, e Rodrigo Prieto (O Lobo de Wall Street, Argo e Brokeback Mountain) e ainda Eugenio Caballero, diretor de arte de filmes como O Labirinto do Fauno, de Guillermo del Toro, ou Roma.
Escrevia Ioan Grillo num artigo de opinião publicado pelo New York Times no rescaldo dos Óscares do ano passado que «o sucesso dos ‘amigos’ mostra a força de um círculo artístico»: porque Cuarón, del Toro e Iñárritu são, como notava Jenkins, realmente três amigos. «Três amigos de longa data que se encorajaram uns aos outros a correr riscos. Começaram a fazer filmes quando a indústria mexicana estava em baixo, na década de 1980, dominada por filmes vulgares passados em bares e à sombra das telenovelas. Os ‘amigos’ contrariaram a tendência com histórias negras sobre o VIH, lutas de cães na cidade e terror histórico».
De filmes como A Princesinha (1995) ou Predadores de Nova Iorque (1997), de Alfonso Cuarón e Guillermo del Toro, respetivamente, os realizadores foram capazes de dar o salto para mega produções que marcaram Hollywood já neste século: Gravity, no caso do primeiro, e A Forma da Água, no segundo. Para Iñárritu, que se estreou na longa-metragem apenas em 2000, foi mais curto o caminho entre esse seu primeiro filme, Amores Perros, e Birdman ou O Renascido.
Entre o que têm produzido nos últimos anos, Roma, de Alfonso Cuarón, é uma exceção não só pela forma ou pelo marco de viragem que poderá representar tanto na história da Netflix como na dos Óscares, mas também por marcar o regresso ao México que Cuarón não visitava há 17 anos. Mas como nota Grillo, de novo, apesar «de a maior parte dos seus filmes não serem explicitamente sobre o México, esse background está presente», ainda que de forma subtil, e cita o crítico Salvador Franco sobre o terror em Guillermo del Toro: «Os filmes de del Toro mostram a crença que as pessoas têm em espíritos e demónios que se encontra nas pequenas aldeias mexicanas». E é irrefutável a ideia de que há qualquer coisa do realismo mágico latino-americano no seu cinema.
Iñárritu fá-lo de uma outra forma ao «quebrar o otimismo moral de Hollywood» quando «retrata um mundo mais disfuncional». Quanto a Cuarón, basta olhar para Great Expectations, uma produção norte-americana já naquele ano de 1998, protagonizada por Ethan Hawke e Gwyneth Paltrow, para perceber que não precisa do México como pano de fundo para falar sobre questões de classe como em Roma. Enquanto Cuarón prepara um telefilme, anunciado já como o seu próximo projeto com Casey Affleck como protagonista, Guillermo del Toro está voltado para Pinóquio — o que será uma «versão negra do conto infantil». De Iñárritu não se conhece ainda o próximo projeto. Soube-se esta semana que será presidente do júri em Cannes, já em maio. E isso também dirá muito sobre o lugar que ocupam hoje estes ‘three amigos’.