«Os espíritos de primeira ordem, que produzem as revoluções, desaparecem; os espíritos de segunda ordem, que tiram proveito delas, permanecem».
François-René de Chateaubriand
Esta é uma pergunta que tem sido colocada em alguns fóruns regionais e mundiais, associados à diplomacia. Pergunta feita de forma provocadora, nomeadamente quando se agudizam conflitos diplomáticos e militares em vários continentes e quando as guerras por procuração assumem proporções inimagináveis.
Têm sido várias as vozes – de diplomatas, de académicos, de políticos e de empresários – a interrogarem-se sobre se o mundo está (ficou) pior ou melhor sem a URSS.
No tempo da sociedade aberta, da globalização (a que a extrema-direita chama a globalização sem alma…), da era do ‘homo comunicatus’, da ordem internacional liberal, algumas esquerdas começam a colocar esta questão. Que deve servir para nos interrogarmos: que mundo teríamos hoje se a URSS ainda existisse? Será que a URSS do partido único agiria no plano internacional (no domínio político, diplomático, económico e militar) como a China dos nossos dias (defensora do comércio internacional e da liberdade económica, adotando uma política exportadora de capitais para comprar ativos e influência geopolítica e geomilitar em outros países?).
Será que a unipolaridade política, normativa, diplomática, militar e económica do planeta, com o ‘Ocidente’ (na prática, os ‘três “ocidentes’: americano, europeu e asiático) a ocupar os espaços vazios, é preferível à bipolaridade? Será que, se a URSS ainda existisse, teríamos tido o ‘desastre’ que tivemos (cada dia que passa isso confirma-se…) com as intervenções militares e políticas no Médio Oriente, cujas repercussões negativas não são mais possíveis de esconder?
O exemplo da desestabilização do norte de África e no Médio Oriente, com repercussões negativas para a segurança da Europa e dos europeus, deve levar-nos a pensar se os nossos ‘ocidentes’ não agiram com soberba e à solta. Provocando menos democracia, mais dor, mais fome, mais guerra, mais insegurança, mais intolerância religiosa. E em outros territórios – por exemplo, no Iraque. E no Iémen, onde a atual guerra por procuração, apesar de ter perdido atratividade mediática, continua a ser um foco de instabilidade, numa região por si muito instável, onde a Arábia Saudita e o Irão tudo fazem para se assumirem como os novos líderes regionais.
Mas existem outras interrogações que fazem sentido, em outros continentes. Desde logo, na América do Sul, como é o caso da Venezuela. E até na nossa Europa. Sobretudo a Leste. Será que hoje teríamos o que temos na Hungria?
Num mundo cada vez mais pequeno, onde quase tudo se pode assistir em direto (catástrofes, guerras, manifestações, competições desportivas, etc.), onde a memória e o passado são cada vez menos considerados e respeitados, não é despropositado que, com a serenidade que se impõe, se procure perceber que mundo teríamos se ainda existisse a URSS.
Sobretudo se a URSS de hoje, com as devidas diferenças culturais e históricas, assumisse uma postura regional e mundial como a China dos nossos dias – um país de partido único que convive bem com o capitalismo, com o liberalismo económico, não se dando mal com a iniciativa privada (antes pelo contrário…), assumindo-se como potência militar, económica e diplomática. Formalmente, como membro ativo de várias organizações e instituições internacionais e informalmente como potência que interfere politicamente na política doméstica de países de vários continentes.
No plano dos princípios, em particular da defesa do estado de direito democrático, da separação de poderes, da democracia demo-liberal e de um vasto catálogo de direitos, liberdades e garantias – onde sobressaem a liberdade de opinião e de informação –, a pergunta ‘O mundo está pior sem a URSS?’ só pode ter uma resposta: não está pior.
Mas num plano mais realista e mais consentâneo com o mundo de hoje, a resposta poderá ser outra. Até porque o mais provável era não termos uma URSS esclerosada como existia mas sim uma URSS em linha evolutiva. Como a China dos nossos dias.
A novas Pátrias europeias do Leste europeu, muitas delas já membros de pleno direito da União Europeia e da NATO (ex-membros do Pacto de Varsóvia), são quem mais razões de queixa têm da ex-URSS. O que temos de compreender e respeitar.
Mas parece claro, também, que a atual Rússia não é de todo a sucessora da URSS, sobretudo no plano internacional.
Apesar de a memória dos povos ser mais forte do que muitos tratados, convenções e até constituições políticas, esta questão – o mundo está pior sem a URSS? – faz todo o sentido, num tempo de fundação de uma nova ordem internacional, política, económica e até diplomática. Aguardando aquilo a que já se tem chamado de uma espécie de regresso à velha Guerra Fria. E a que o ex-embaixador dos EUA na Rússia, Michael McFaul, chamou de «paz quente».
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