O amigo de Sá Carneiro que era admirado por soares

Cartoonista, escultor, investigador do acidente de Camarate, apaixonado por motas, cavalos e aviões. Augusto Cid, autor de algumas das mais brilhantes sátiras políticas das últimas décadas, morreu aos 77 anos.

O amigo de Sá Carneiro que era admirado por soares

O país perdeu esta sexta-feira um dos seus mais geniais e acutilantes cartoonistas. Augusto Cid, antigo colaborador do SOL, faleceu de doença prolongada aos 77 anos. Além de cartoonista, Cid era também escultor, um observador arguto da atualidade política, apaixonado pela aviação (sabia pilotar pequenos aviões) e investigador do acidente de Camarate, que em 1980 vitimou Sá Carneiro.

Nascido em 1941 na Horta (ilha do Faial, Açores), foi, já em Lisboa, um estudante irreverente. «Junto ao cinema Império, na Alameda, há uma escolinha, do outro lado da rua. Eu era conhecido porque passava a vida de orelhas de burro à janela», confidenciou numa entrevista ao SOL em dezembro de 2016. «O meu pai tinha alguma tristeza pelo meu comportamento. No fim da vida teve a alegria de perceber que afinal fazia alguma coisa porque quando ele morreu estava eu a fazer uma escultura de 27 toneladas para Macau».

Em 1959 esteve um ano nos Estados Unidos, onde dava aulas de pintura e vendia desenhos de cavalos, que tinha aprendido a montar na quinta do avô, no Algarve. Passou pelas Belas Artes mas nunca concluiu o curso – tinha uma confiança inabalável no seu talento e na sua criatividade, pelo que preferiu sempre manter-se um autodidata.

 Fez tropa em Tavira e até podia ter escapado à guerra – o avô propôs-lhe que fosse estudar uns tempos para Paris. «Mas em Tavira adoeci com uma gripe qualquer e fui parar ao posto de saúde, à enfermaria do próprio quartel, onde estava um tipo ao meu lado que lia revistas, ouvia música. Eu não percebia o que ele tinha. Um dia perguntei-lhe: ‘Ouve lá, o que é que tens? Estás aqui a fazer o quê? Estás ótimo’. E ele apontou para a cabeça. ‘Ah, és maluquinho!’ ‘Não, vê bem o que se passa aqui’. Então vi que ele não tinha o osso da testa». Esse encontro levou-o a recusar furtar-se ao combate. Esteve colocado no Cazombo, no Leste de Angola. Sobre a guerra disse da mesma : «É uma boa escola da vida. Só tem um pormenor: é que se pode morrer com facilidade durante o ensinamento».

Voltar da guerra sem traumas

Nesse período começou a fazer cartoons sobre a vida dos soldados. «Quando vi que havia umas páginas de cartoons numa revista militar pensei: ‘Olha, lá está, posso trabalhar com eles, mesmo que seja mal pago’. Mas não era mal pago, curiosamente. Davam-me 150 paus por cartoon. Nessa altura 150 paus era dinheiro. E eles gostavam muito dos meus desenhos, quando eu estava uma semana sem mandar perguntavam porque é que eu não mandava. Faziam várias vezes concursos e o prémio era 500 escudos e eu ganhava quase sempre, portanto ganhava mais nos desenhos que fazia que como furriel». 

Mas nem tudo foram rosas. Em África assistiu também a situações terríveis. «Saíam numa camioneta Mercedes grande, coberta com lona, a um determinado dia da semana, carregada com 30 ou 40 pretos para abater». Um dia disseram-lhe que tinha uma missão para cumprir. às quatro da manhã. «Queriam experimentar o que é que eu faria numa situação dessas. Disse logo: ‘Não vou. Se é para aquilo que me explicaram, não vou e acho que isto devia ser denunciado’. Acabou por ir outro sargento no meu lugar porque colecionava orelhas, tinha frascos de orelhas que nunca mais acabava». Ainda assim saiu da guerra sem traumas. «Acho que cumpri a minha missão e por isso em vez de voltar com problemas na cabeça voltei sem eles». 

‘O cartoon é sinónimo de democracia’

De regresso a Lisboa, colaborou em publicações como o Povo Livre, órgão oficial do PSD, de que foi militante, O Diabo, Semanário, O Independente e o SOL.

«Vejo o cartoon como uma coisa muito séria e como uma crítica importante. Os países que não têm democracia não têm cartoonistas. Portanto, o cartoon é um sinónimo de liberdade e democracia», disse também ao SOL, por ocasião da publicação do seu livro Porreiro, Pá (ed. Guerra & Paz), que João Pereira Coutinho considerou o «melhor resumo» e «o melhor comentário» aos «inacreditáveis quatro anos» do Governo de Sócrates.

Cid fez centenas de caricaturas de políticos como Eanes, Sá Carneiro, Soares, Cavaco, Paulo Portas e José Sócrates. O socialista era seu fã. «Se saía um cartoon em que ele era muito mal tratado, dizia-me: ‘Tem de me dar esse cartoon’».

Os amigos que morreram em Camarate

Além das suas geniais sátiras, Cid destacou-se também na investigação do acidente de Camarate, que estava plenamente convicto de ter sido um atentado, e participou em várias comissões de inquérito. «Fui lá fora, comprei livros, gastei uma fortuna. Esta investigação custou-me os olhos da cara», disse ao SOL. O caso de Camarate valeu-lhe também um processo de Francisco Pinto Balsemão, em que foi obrigado a indemnizar em cinco mil contos (25 mil euros) o atual patrão da Impresa.

Cid justificou sempre o seu envolvimento nesta investigação com a amizade que tinha para com Sá Carneiro. «Era uma obrigação que eu tinha para com as pessoas que iam dentro do avião e que eram minhas amigas. Eu era amigo do Sá Carneiro, da Snu Abecassis e do António Patrício [Gouveia]. Aprendi na guerra que não se deixa ninguém para trás. […] E ali, se eu ignorasse Camarate, deixava para trás três amigos, pelo menos». Além de ter sido militante do PPD, o cartoonista criou também o símbolo do partido, as três setas a apontar para cima.

Nos últimos anos já não conseguia desenhar. Escrevia no iPad e tinha abdicado da paixão pelas motas, que alimentou durante 55 anos. Mesmo assim, em 2016 ainda inaugurou a sua escultura monumental do Santo Condestável Nun’Álvares Pereira, no jardim Ducla Soares, no alto da avenida Torre de Belém, perto do estádio do Restelo.