Quando tinha apenas nove anos, Henry Molaison (1926-2008) sofreu uma queda. O impacto fez com que estivesse inconsciente durante cinco minutos. A partir dos dez anos começou a ter convulsões, que foram piorando à medida que crescia, impedindo-o mesmo, já adulto, de trabalhar. Quando chegou aos 27, foi submetido a uma cirurgia que prometia dar resposta ao problema que há tantos anos o impedia de levar uma vida normal como qualquer outra pessoa. A intervenção – que removeu bilateralmente uma porção do seu lobo temporal medial, incluindo dois terços do hipocampo – parou as convulsões, mas a verdade é que Molaison nunca mais foi a mesma pessoa: lembrava-se da sua infância, mas a partir da operação deixou de conseguir criar novas memórias episódicas – aquelas que dizem respeito ao que nos acontece na vida.
O caso de Henry Molaison ficou conhecido na literatura científica como H.M. e continua, ainda hoje, a ser um dos mais lembrados na neurociência. E a exposição Cérebro – mais vasto que o céu, inaugurada hoje na Fundação Calouste Gulbenkian, não o esquece: como notou o comissário científico da mostra, Rui Oliveira, numa visita guiada para a comunicação social na última quinta-feira, abriu horizontes sobre o nosso conhecimento do cérebro e da memória, mostrando que a cada zona do cérebro corresponde determinada função. No caso de Molaison, como brincou Rui Oliveira, qualquer pessoa que tenha conhecido a partir da operação, nunca chegou a conhecê-la realmente; foi o caso dos médicos que o acompanharam depois da cirurgia, a quem uma e outra vez, sempre que os consultava, tinha de ser apresentado.
Mais do que expor um conjunto de factos nus e crus – que um cérebro tem 86 mil milhões de neurónios e 100 biliões de sinapses e faz um trilião de cálculos por segundo, por exemplo –, até 10 de junho a mostra propõe, nas palavras introdutórias do comissário, «uma viagem ao cérebro desde o seu passado ao seu futuro», recorrendo, para isso, à ciência, à arte e à filosofia. Está organizada em três etapas: a origem e a história do cérebro, o presente do cérebro e a complexidade da mente humana e o futuro do cérebro e de que forma é um modelo para os sistemas de inteligência artificial. Mesmo antes de começar a viagem, o visitante é recebido com uma das peças em destaque: um cérebro humano plastinado. Para que o visitante tenha «uma experiência estética e emocional do cérebro» e «não começasse logo a ser bombardeado por factos sobre o cérebro», explicou o comissário, a mostra é introduzida por uma instalação de vídeo do neurocientista norte americano Greg Dunn, intitulada Self-Reflected, acompanhada por música de Rodrigo Leão.
Chegados à primeira etapa da exposição há uma peça que se destaca: no tecto, um neurónio 3D com 12 metros de comprimento cujas sinapses se acendem à passagem dos visitantes. E, como na arte, o cérebro também tem o seu lugar ao longo da história, há várias obras a explorá-lo nesta viagem, como aguarelas de David Goodsell e peças de Santiago Ramón y Cajal logo na primeira etapa, a par de outras que vão pontuando o percurso.
Ainda no passado do cérebro, é possível ver modelos em três dimensões de cérebros de peixes, por exemplo, bem como peças inesperadas: um crânio do final do Neolítico descoberto em 1908 na gruta da Lapa da Galinha, em Alcanena, com vestígios de trepanação – prática ancestral que consistia em abrir os crânios em caso de dor ou até, elucidou Rui Oliveira, perante algo que estava mal «do ponto de vista comportamental» – ou um papiro cirúrgico com cerca de cinco mil anos.
No arranque da segunda etapa – o presente do cérebro e a sua complexidade –, vê-se mais uma peça-chave, designada ‘orquestra de cérebros’. Quatro telas projetando um cérebro cada uma formam um círculo no centro do qual existem headsets para os visitantes colocarem e, sentados, visualizarem nas telas a atividade do seu próprio cérebro, uma peça que conta também com a mestria de Rodrigo Leão. Como? Contar é estragar a surpresa.
Claro que a mostra tem uma forte carga tecnológica e interativa, especialmente evidente nesta etapa, com diferentes jogos que permitem aos visitantes aprofundar o seu conhecimento sobre o funcionamento e a complexidade deste órgão. É o caso do jogo do efeito de Stroop, em que o participante deve indicar a cor em que cada palavra está escrita e não a cor que aparece escrita no ecrã. O jogo – que gera alguma confusão, em particular quando a cor que pinta a palavra e a cor que está escrita são diferentes – deve o seu nome ao criador, o psicólogo Ridley Stroop, e é uma importante ferramenta na psicologia. Ainda mais desafiante é, no entanto, um outro, desta vez de memória e no qual o chimpanzé Ayumu, do Instituto de Investigação em Primatas da Universidade de Quioto (Japão), se saiu muito bem, como ilustra o vídeo que acompanha o jogo.
Na última etapa da exposição, é-se surpreendido com outra obra de arte, mas porque o futuro será certamente feito de inteligência artificial, os seus autores são robôs, criados pelo artista Leonel Moura. «Ao contrário do que a maioria dos artistas quer fazer, que é controlar muito a sua obra, optei por criar robôs capazes de fazer a sua própria obra», explicou o artista, que especificou que se limitou a criá-los e que são eles que pintam as obras: «Só criei os robôs. A partir daí, são eles que fazem. Mesmo os algoritmos que uso dão o máximo de decisão às máquinas. A partir dos sensores, eles veem o que estão a fazer e em cada momento tomam decisões». Os resultados destes criadores inusitados também estão expostos para todos os cérebros que queiram admirá-los.