Terá sido a primeira viagem de circum-navegação uma proeza «exclusivamente espanhola»? À partida, a tese parece difícil de sustentar, dado que foi justamente um português, o navegador Fernão de Magalhães, o mentor da empresa. Ainda assim, foi essa a conclusão a que chegou a Real Academia de História espanhola. Um relatório divulgado esta semana enumera treze pontos que explicam por que Portugal não merece colher os louros pela famosa expedição. E conclui: «Com estes dados, absolutamente documentados, é incontestável a plena e exclusiva espanholidade da empresa».
Como seria de prever, as conclusões não caíram bem entre os historiadores portugueses. «A Academia Portuguesa da História não pode concordar com o texto da Real Academia, por ele omitir o essencial da vida de Fernão de Magalhães», reage Manuela Mendonça, presidente da Academia Portuguesa da História. Por ‘essencial’ entenda-se «a aprendizagem que fez em Portugal e os conhecimentos que adquiriu na Índia, onde permaneceu cerca de oito anos e onde contactou com o interesse das ‘ilhas das especiarias’, cujo caminho depois procurou por Ocidente».
Também João Paulo Oliveira e Costa, catedrático da FCSH (Universidade de Lisboa) e especialista na História da Expansão, contesta o veredicto da Real Academia espanhola: «Esses feitos [em particular a descoberta da passagem do Atlântico para o Pacífico] resultaram, sem dúvida, dos conhecimentos que havia acumulado ao serviço da coroa de Portugal. Magalhães foi um produto do esforço então quase centenário dos portugueses de exploração dos mares. Por isso, é natural e legítimo que o Estado Português se queira associar às comemorações».
Do outro lado da barricada encontra-se o historiador britânico Felipe Fernández Armesto, professor na Universidade de Notre Dame, em Indiana (EUA). Em email de resposta ao SOL, declara:_«No essencial, penso que o decreto da Real Academia (embora não subscrevesse cada uma das suas palavras, nem teria sido seu signatário, uma vez que prefiro manter-me longe destas polémicas) é consistente com os factos:_as autoridades portuguesas rejeitaram a proposta de Magalhães e ele transferiu a sua lealdade para Castela». E_continua: «Uma tentativa de exploração através da rota proposta por Magalhães só fazia sentido do ponto de vista espanhol:_Portugal já tinha uma rota viável pelo oceano Índico; por isso qualquer iniciativa desse género, fosse comandada por Magalhães ou por qualquer outro líder, partiria, em qualquer cenário imaginável, de Espanha e não de Portugal».
A disputa entre espanhóis e portugueses pela paternidade da circum-navegação parecia um assunto resolvido com o anúncio, em janeiro deste ano, da candidatura a património da humanidade da primeira viagem de circum-navegação do globo, promovida em conjunto pelos dois países. No entanto, depois de uma primeira investida em que acusava Portugal de apagar o papel dos espanhóis na primeira volta ao mundo, o jornal ABC voltou à questão – e usando palavras fortes. Numa manifestação de orgulho ferido, o diretor da publicação falou mesmo em «estupefação e vergonha face às notícias sobre a ilegítima apropriação por parte das autoridades portuguesas da paternidade da expedição». E foi para que se pusessem os pontos nos is que solicitou à Real Academia um esclarecimento. Entretanto, a questão assumiu proporções inesperadas, tendo chegado até já aos órgãos de comunicação da América Latina.
Augusto Santos Silva respondeu esta semana, declarando que o seu interlocutor não é «um jornal conservador espanhol nem a Real Academia», mas sim o Estado Espanhol. E rematou: «Foi um português que atravessou com uma frota comandada por si o imenso Pacífico, e que descobriu o estreito, o Estreito de Magalhães».
João Paulo Oliveira e Costa não tem dúvidas:_«Considero que esta polémica é um grande disparate. […] Nem Portugal nem a Espanha precisam de manipular a História para se afirmarem como estados modernos e intervenientes no concerto das nações». Fernández Armesto usa quase as mesmas palavras. «Penso que esta disputa é uma tolice». E continua:_«Não devemos atribuir a nós próprios o mérito pelas conquistas do passado tal como não nos devemos culpar pelas suas falhas. Se as instituições espanholas e portuguesas quiserem investir, em colaboração ou separadamente, na comemoração de Magalhães, devem fazê-lo desinteressadamente, ao serviço da educação e do conhecimento, não do orgulho nacional».