O provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa vive numa casa alugada à própria Santa Casa e com uma atenção no preço. Com o desconto de 10% que por norma é atribuído a funcionários, o T4 da Alameda D. Afonso Henriques, alugado a 1 de maio do ano passado, fica por um valor mensal de 1620 euros.
Este e outros alegados benefícios, ao que o SOL apurou, têm gerado mal-estar interno. Outro dos casos é o de Maria da Luz Cabral, que entrou para a Santa Casa da Misericórdia em 2016, altura em que renunciou ao lugar que ocupava no Instituto da Segurança Social, no Porto, para rumar à Escola Superior de Saúde de Alcoitão, que pertence à Misericórdia.
Segundo documentos a que o SOL teve acesso, a professora rapidamente subiu a coordenadora – bastou um mês de casa.
E as despesas com deslocações ao estrangeiro são vistas por muitos como ‘excessivas’.
Maria da Luz Cabral também tem uma casa da Santa Casa da Misericórdia, alugada com um desconto de 10%, e terá submetido só entre 2017 e 2018 àquela entidade despesas de deslocação que ascendem a 20 mil euros.
A casa do provedor que é da Santa Casa
Em declarações ao SOL, Edmundo Martinho, provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, confirmou que vive numa casa propriedade da Santa Casa da Misericórdia, mas assegurou que paga o preço de mercado.
Ainda assim, depois de confrontado com a possibilidade de usufruir de um desconto, admitiu: «Isso é um desconto de 10% de que todas as pessoas que aqui trabalham têm, não tenho nenhuma situação particular».
Também a Santa Casa da Misericórdia disse tratar-se de uma situação normal para qualquer funcionário, ainda que o SOL saiba que há muito se discute internamente se estas regalias se aplicam à mesa administrativa: «Ao contrário do que é referido, os imóveis da Santa Casa são colocados para arrendamento ao preço de mercado, bastando consultar o site da instituição para obter a informação necessária quanto à disponibilidade de casas. Caso um colaborador da instituição, seja ele qual for, manifeste interesse em arrendar um desses imóveis, poderá fazê-lo nas condições de mercado, beneficiando de um desconto de 10 por cento».
E avançou mesmo com números: «Atualmente, entre motoristas, diretores, administrativos e outros colaboradores de diversas categorias profissionais, são quase trinta os funcionários da Santa Casa que têm contratos de arrendamento com a instituição, incluindo o provedor da instituição».
De professora a coordenadora em menos de um mês
Maria da Luz Cabral chegou como professora à Escola de Alcoitão no início de maio de 2016, para o Departamento de Política e Trabalho Social, e poucas semanas depois havia intenção de passar a coordenadora, na altura o então vice-provedor Edmundo Martinho, que há muitos anos que conhece Maria da Luz, como ontem confirmou ao SOL, acompanhava de perto os assuntos da Escola de Alcoitão.
O SOL tentou falar com Maria de Luz Cabral durante a tarde de ontem, não tendo sido possível estabelecer contacto até à hora de fecho desta edição.
Num documento a que o SOL teve acesso pode ler-se: «O Conselho de Gestão da Escola Superior de Saúde de Alcoitão deliberou concordar com a nomeação da Professora Maria da Luz Leite Cabral para o cargo de coordenadora do Departamento de Política e Trabalho Social, sendo para o efeito proposta a sua ‘equiparação’ à categoria profissional de Técnico Superior Docente – Professor Coordenador».
Mas o mesmo não se revelou viável, uma vez que não tinha o grau de doutor nem de especialista. E concluia: «Termos em que a integração da docente em apreço na categoria profissional de Técnico Superior Docente – Professor Coordenador não será um cenário possível, uma vez que a trabalhadora não cumpre os requisitos legalmente exigíveis».
No despacho da Santa Casa referia-se ainda que a diferença salarial entre uma e outra categoria era de 163.69 euros – de 3437,34 euros para 3601,03 euros. A concluir, sugeria-se uma alternativa à intenção de dar à professora o salário correspondente ao de um coordenador: «Sem prejuízo do exposto, os coordenadores de departamento, sob proposta do conselho de gestão da ESSA, poderá ser atribuída uma remuneração específica ou acrescida pelo exercídio dessas funções».
Ontem, o atual provedor esclareceu que não se seguiu esta solução e que a docente ficou a ganhar o mesmo que um professor adjunto, mas depois de ser confrontado com a redação do despacho, que continha a fundamentação de um parecer jurídico, admitiu que mais tarde foi atribuido um valor acrescido a Maria da Luz.
«Mais tarde, já não sei quanto tempo depois, nem sei se ainda lá estava na escola, foi decidido que a função de coordenador de departamento dava direito a uma remuneração acessória adicional», disse, não sabendo se o salário acabou por ficar igual a um professor coordenador, ou seja, se a diferença era de 164 euros. E adiantou ainda que o valor que ficou a auferir era igual ao dos coordenadores dos outros departamentos.
As viagens pessoais que são profissionais
Sobre o facto de em documentos internos estarem registados pagamentos de ‘viagens’ e estadas «pessoais», Edmundo Martinho afirmou que «na Santa Casa não se pagam viagens pessoais a ninguém», reforçando que «viagens pessoais no sentido de particulares é impossível que aconteçam». O provedor assume que estes registos sejam os normais das pessoas que trabalham na Escola de Alcoitão e que muitas vezes se têm de deslocar parapara Moçambique.
Mas nenhuma das viagens foram para Moçambique – foram, sim, para o Brasil, para a Grécia, para a Madeira e Reino Unido.
Moçambique é onde atualmente está a professora no âmbito de um projeto da Escola de Alcoitão, à qual não pertence, uma vez que entretanto fora nomeada para a Unidade de Missão para o desenvolvimento e concretização do Projeto S. Roque, também da Santa Casa.
«Era preciso alguém que coordenasse a unidade de missão e os serviço indicaram o nome dela. Foi à Mesa da Santa Casa e a mesa aprovou», explicou o provedor.
Quanto aos descontos na renda da casa, Edmundo Martinho disse o mesmo que no seu caso: que foi aplicado o desconto para colaboradores, descontos que passam por si e que por isso consegue garantir que não vão além dos 10%.
Já quanto ao facto de Maria da Luz ser conhecida internamente por ‘provedora’, pelo alegado peso que tem, Edmundo Martinho rejeita. «Isso é indigno», afirmou, garantindo que apesar de conhecer Maria da Luz há anos nunca houve qualquer benefício pessoal.
O que diz a Santa Casa do caso de Maria da Luz
«A Santa Casa nega que em algum momento tenha decidido atribuir um ‘salário específico’, nomeadamente equiparado a ‘professor doutor’, uma vez que a tabela salarial vigente na instituição obedece a critérios objetivos e rigorosos. De notar ainda que qualquer decisão respeitante à Escola de Alcoitão e à colaboradora em causa estava enquadrada na área da Saúde, com total autonomia e tutelada pela administradora da área», disse ontem fonte oficial, reforçando que nenhuma viagem paga pela Santa Casa é a título pessoal.
«Eventuais viagens ou deslocações feitas por um qualquer colaborador inserem-se dentro das suas funções e todas as despesas inerentes são alvo de um escrutínio rigoroso por parte dos serviços e que é plasmado nas suas contas e recorrentemente auditadas por diferentes entidades. Não só não existem deslocações pessoais/particulares no âmbito e suportadas pela Santa Casa, como todas as viagens profissionais e respectivas despesas obedecem a um enquadramento definido e à autorização específica por parte, neste caso, da administradora da área», adiantam.
Questionada pelo SOL sobre o facto de o irmão de Maria da Luz ter sido contratado pelos Jogos Santa Casa do Porto, fonte oficial explica: «Quanto ao colaborador Bruno Cabral, foi admitido para trabalhar na delegação do Porto, após processo de recrutamento e selecção de acordo com as regras em vigor na instituição».
A concluir, esclarecem ainda que quando em 2016 «a colaboradora Maria da Luz Cabral foi contratada no âmbito da Saúde, tutelada pela administradora dessa área, que foi quem procedeu ao processo de selecção e respectiva entrevista pessoal à candidata, sem qualquer interveniência de outro departamento ou responsável da Santa Casa».
Não é admissível um provedor ter privilégios
Para Paulo Morais, presidente da Frente Cívica, não é admissível atribuirem-se privilégios a um provedor da Santa Casa, nomeadamente na renda da casa: «Não é admissível que o provedor da Santa Casa da Misericórdia utilize como sua habitação um imóvel da Santa Casa da Misericórdia, sejam quais forem as condições. Muito menos quando além do mais ainda usufrui de um privilégio que é um desconto».
O SOL contactou sexta-feira já ao final do dia o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social que já não conseguiu responder até ao fecho desta edição.