Famílias políticas europeias: albergues espanhóis ou clubes de ideias?

Um racista é um racista, seja em Portugal ou na Hungria. Um cultor da democracia iliberal é-o tanto em Lisboa como em Bucareste. Uma defensora da perda de independência do poder judicial é-o em Varsóvia ou em La Valletta. Os partidos políticos europeus, a pretexto de serem quantitativamente grandes, não o podem ser à custa…

«A morte é a parceira maior do amor. Juntos governarão o mundo».

Sigmund Freud

 

Nas últimas duas décadas, as famílias políticas europeias, com poucas exceções, têm-se assemelhado a autênticos albergues espanhóis.

Tal é a vontade de terem mais partidos e movimentos políticos nas suas fileiras, que escancaram as portas a formações e movimentos políticos do norte, centro e sul da Europa que nada têm que ver com a sua natureza. Assim, veem agora a sua coerência ideológica ser posta em causa. E se, durante vários anos, as principais famílias políticas europeias aumentaram o número de filiados, de eleitos e de lideranças de governos nacionais, recentemente começou a verificar-se o fenómeno inverso.

Há grandes clivagens internas em matérias estruturantes para a vida da Europa e dos europeus – designadamente a propósito do Estado de Direito, da separação de poderes, da Justiça, das políticas de defesa, de segurança, asilo e imigração, relações com a Rússia, adesão da Turquia à União Europeia, etc.

O PPE (Partido Popular Europeu) é bem o exemplo disso. Recebeu no seu interior até mais do que um partido político por país. Como é o caso do PPD/PSD e do CDS/PP. Mas o mesmo sucedeu com o grupo socialista.

Estas duas formações políticas europeias, sobretudo, têm sido abaladas nos últimos anos por divergências e decisões muito polémicas (e, nalguns casos, de difícil conformidade com o Direito Comunitário vigente) por parte de Governos de países liderados por partidos políticos seus membros.

No que respeita ao PPE, o caso da Hungria é o mais evidente. Com decisões desconformes com o Estado de Direito e a separação de poderes, tomadas pelo primeiro-ministro Vítor Orban e pelo seu Governo. Bem como o desrespeito por decisões dos órgãos competentes da União Europeia em relação à política externa (sanções contra a Rússia e anexação da Ucrânia) e em relação à política de asilo, imigração e refugiados.

Mas existem mais casos. Na Polónia, na Áustria e em outros países do leste da Europa. Também Malta e a Roménia, com Governos liderados por personalidades e partidos políticos do grupo socialista, são exemplos de falta de coerência ideológica.

Nesse sentido, o PPE decidiu recentemente suspender o partido de Vítor Orban. Demorou a tomar a decisão. Aliás, várias vozes até defenderam a sua expulsão. O desafio ao Grupo Socialista Europeu está lançado em relação a Malta e à Roménia. Vão ou não fazer o que fez o PPE em relação aos húngaros?

Poder-se-á perguntar: mas que importância isso tem? Algumas pessoas continuam a entender que a política europeia é política europeia — e que isso são minudências das ‘cortes’ políticas e partidárias europeias, sem especial relevância prática.

Não concordo. Por muitas razões. Desde logo, porque a política europeia já é política doméstica. É uma área relevante da vida política quotidiana portuguesa. Ainda por cima, a menos de dois meses das eleições europeias, não podemos deixar que, no espaço público e no espaço mediático, haja na Europa partidos políticos da mesma família a defenderem posições completamente diferentes em relação a matérias fundamentais.

Em nome dos valores europeus, em nome da clareza política, isso não deve acontecer. É desconstruir a ideia correta do que é e deverá ser o projeto europeu.

Um racista é um racista, seja em Portugal ou na Hungria. Um cultor da democracia iliberal é-o tanto em Lisboa como em Bucareste. Uma defensora da perda de independência do poder judicial é-o em Varsóvia ou em La Valletta. Os partidos políticos europeus, a pretexto de serem quantitativamente grandes, não o podem ser à custa do sacrifício dos valores europeus, da abdicação dos seus ideais e dos principais princípios fundadores do direito comunitário.

É por estes e outros exemplos que a identidade europeia e a consciência europeia estão como estão. Mal. Mas também é verdade que dizer-se isto a quem já só pensa à europeia e está na Europa é muitas vezes pura perda de tempo. Porque, entre serem albergues espanhóis e meros clubes de ideias, o espaço é curto.

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