Um relatório da Real Academia de História espanhola divulgado recentemente gerou mal-estar entre os historiadores portugueses. O documento, que resultou de um pedido do diretor do jornal ABC (que manifestava “estupefação e vergonha face às notícias sobre a ilegítima apropriação por parte das autoridades portuguesas da paternidade da expedição” de Fernão de Magalhães), rematava: “É incontestável a plena e exclusiva espanholidade da empresa”.
Não há, de facto, como negar que foi ao serviço da Coroa de Castela que a frota composta por cinco navios partiu de Sanlúcar de Barrameda (foz do Guadalquivir) a 20 de setembro de 1519, depois de o navegador nascido em Sabrosa em 1480 ver o Rei D. Manuel rejeitar os seus planos. E caberia ao basco Juan Sebastián Elcano, após a morte de Magalhães, completar a volta ao mundo em setembro de 1522.
Ainda assim, vários historiadores portugueses defenderam que não pode ser negligenciada a importância dos conhecimentos científicos e de navegação que Magalhães acumulou em Portugal. Ao Observador, o historiador José Manuel Garcia, autor de A Viagem de Fernão de Magalhães e os Portugueses (ed. Presença), declarou: “Se não fosse Fernão de Magalhães, os espanhóis nunca teriam feito aquela viagem. Aliás, nunca mais a fizeram". Ao semanário SOL, João Paulo Oliveira e Costa, catedrático da FCSH (Universidade de Lisboa) e especialista na História da Expansão, defendeu que os feitos de Magalhães “resultaram dos conhecimentos que havia acumulado ao serviço da coroa de Portugal”. Oliveira e Costa tem a convicção inabalável de que “Magalhães foi, sem dúvida, um produto do esforço então quase centenário dos portugueses de exploração dos mares”.
E o que dizem os historiadores lá fora? Falámos com o britânico (mas filho de pai espanhol) Felipe Fernández Armesto, autor de Pioneiros – A História Épica das Explorações do Homem ao Longo dos Séculos (ed. D. Quixote). Para este professor da prestigiada Universidade Notre Dame, em Indiana (EUA), o edito da Real Academia espanhola “é consistente com os factos”.
Na sua opinião, faz sentido que duas nações continuem a discutir a importância que tiveram num acontecimento que ocorreu há 500 anos?
Penso que tudo isto é uma disputa tola. Não devíamos atribuir a nós próprios o mérito pelas conquistas do passado, tal como não devemos culpar-nos pelos seus erros. Não faz sentido os espanhóis ou os portugueses congratularem-se com as navegações do início da época moderna da mesma maneira que não faz sentido o Papa pedir desculpa pelas cruzadas ou Barack Obama pela escravatura. Se as instituições espanholas ou portuguesas quiserem investir, em colaboração ou separadamente, na celebração de Magalhães, devem fazê-lo desinteressadamente, ao serviço do conhecimento e da educação universal, não do orgulho nacional.
Em janeiro, os governos dos dois países anunciaram uma candidatura conjunta da rota de Magalhães a património da UNESCO. Como vê o contributo de cada um dos países para esta expedição?
Não faz qualquer sentido pensar na expedição de Magalhães como um assunto português. Foi uma iniciativa ativa e assumidamente anti-portuguesa, concebida para afastar Portugal do comércio nas Molucas e obtê-lo para Castela. Foi a todos os níveis um fracasso, uma vez que Portugal ficou com esse comércio, a maioria dos que participaram na expedição morreu e a rota de Magalhães revelou-se impraticável.
Concorda, então, com o relatório da Real Academia de História espanhola?
Penso que o edito da Real Academia (embora não subscreva cada palavra dele, nem pusesse a minha assinatura por baixo, uma vez que acho melhor permanecer afastado destas querelas) é consistente com os factos: as autoridades portuguesas rejeitaram a proposta de Magalhães e ele transferiu a sua lealdade para Castela.
Com todo o conhecimento e experiência que os navegadores portugueses acumularam acha que, se Magalhães tivesse nascido noutro país, a expedição teria sido igualmente bem-sucedida?
Essa pergunta sobre “o que teria acontecido” se o que aconteceu não tivesse acontecido não tem resposta possível e, na minha opinião, é inútil. A minha tarefa é estabelecer os factos tal como sucederam. No meu entender, uma tentativa de exploração através da rota proposta por Magalhães só fazia sentido do ponto de vista espanhol: Portugal já tinha uma rota viável pelo oceano Índico; por isso qualquer iniciativa desse género, fosse comandada por Magalhães ou por qualquer outro líder, partiria, em qualquer cenário imaginável, de Espanha e não de Portugal.
No seu livro Pioneiros – A História Épica das Explorações do Homem ao Longo dos Séculos, desvalorizou a expedição de Magalhães, argumentando que não inaugurou uma nova rota marítima. Não acha que o pioneirismo, visão e sacrifício de Magalhães e da sua tripulação desempenharam um papel decisivo na história das explorações marítimas?
Circum-navegar o mundo não fazia, evidentemente, parte do projeto de Magalhães: foi um efeito secundário que ele não podia prever, e que aconteceu de forma improvisada depois da morte em viagem de Magalhães. Ser o primeiro a circum-navegar o mundo é um pouco como ser o primeiro homem na Lua: bonito mas não serve para nada, exceto como contributo para emoções fáceis de autoestima – e com um custo exagerado.