De acordo com a Federação de Triatlo de Portugal (FTP) há neste momento 112 clubes de triatlo no país – nove podem ser encontrados na Madeira. No total são quase 3000 os atletas licenciados em todos os escalões – com os homens a dominar, a representar mais de 70% deste universo em relação às mulheres (quase 30%). O organismo garante, ainda assim, que a modalidade tem vindo a ganhar mais adeptos, especialmente entre os mais jovens.
É precisamente nesta faixa etária que já podem ser encontrados vários exemplos de atletas que decidem mesmo fazer da modalidade um plano A.
Atualmente, são mais de 60 os atletas que vivem no Centro de Alto Rendimento (CAR) do Jamor. Nestas contas, uma dezena corresponde a jovens triatletas, que cruzaram caminho depois de terem decidido «levar a sério» a paixão pela modalidade.
Em comum parecem ter, também, o percurso que os trouxe até aqui, já que a maioria dos jovens se iniciou na natação antes de se dedicar definitivamente ao triatlo.
«Quando eles chegam a esta idade já sabem bem aquilo que querem, já não correm o risco de abandonarem a modalidade de maneira precoce», conta ao b,i. o treinador Paulo Antunes, que esclarece, só a partir dos 17 anos é que os atletas podem tomar a opção de viver na residência do centro instalado na capital lisboeta. «Nos atletas com 14, 15, 16 anos isso não pode acontecer. Aquelas rotinas normais de saírem à noite, ou por influência do namorado ou da namorada pode fazer com que eles dispersem um bocadinho, mas neste caso acho que já estão muito focados, até porque também são muito competitivos. Sabem que para conseguirem os resultados que perseguem têm de estar completamente focados nesta rotina. Por outro lado, todos eles formam um grupo de amigos que têm as mesmas rotinas e torna-se mais fácil», continua a explicar Paulo, também ex-atleta de alta competição e campeão nacional de triatlo em juniores na década de 1990.
Afonso do Canto (Clube de Natação Torres Novas) tem 17 anos e é o mais novo do grupo. Andava «nas piscinas» até o professor de natação lhe ter dado a conhecer a modalidade, em 2010. Desde aí, «nunca mais» deixou, relembra. Decidiu em setembro de 2018 ingressar no CAR, onde, agora, faz as suas rotinas. Além dos treinos intensivos, o jovem que pertence ao CNTN frequenta o 12.º ano em Ciências e Tecnologias.
Para conseguir conciliar os treinos com os estudos, Afonso não tem dúvidas de que o segredo do sucesso passa pela organização. «De manhã vou para a escola, entro às 8h15 e saio às 13h. A tarde é dedicada aos treinos. Só na terça-feira é que entro mais tarde e acabo por treinar de manhã. O principal foco na minha vida é a capacidade de organização, conseguir aproveitar todos os tempos livres ao máximo para que consiga fazer as duas coisas, treinar e estudar», diz.
Paulo Antunes regressa à conversa para sublinhar que estamos perante um grupo de jovens atletas que «não perderam nenhum ano escolar» e que conseguem conciliar «as duas coisas com um enorme sucesso».Prova disso é o próprio Afonso, que «no ano passado acabou a escola com uma média de 18, 6 [valores]». O jovem apressa-se a fazer uma pequena retificação: «Não, 19,3 [risos]». A gargalhada é geral na sala de estar do Centro de Alto Rendimento, onde estamos reunidos com os várias jovens promessas do triatlo português.
José Vieira é «17 dias mais velho do que o Afonso». Partilham o clube e o gosto pelas Ciências e Tecnologias, área pela qual também enveredou na escola secundária. Tal como Afonso do Canto, chegou ao CAR no ano passado por influência do treinador de natação do clube de Torres Novas. «Já gostava de andar de bicicleta e de natação, foi só encaixar a corrida», resume José, que pratica a modalidade desde os nove anos.
O dia-a-dia é, por isso, «um bocadinho igual ao do Afonso», com os treinos a ocupar o serão da tarde de segunda-feira a domingo.
É verdade: aqui não há dias de folgas, como faz questão de salientar o treinador. «Os atletas treinam todos os dias da semana e praticamente todos os fins de semana. Por vezes, na altura de competições, temos ali um dia ou outro de descanso, mas são poucos os dias que têm para descansar», declara Paulo. Mas deixa a ressalva: «Claro que nem todos os dias a intensidade do treino é muito elevada, mas eles estão há muitos anos ligados a esta modalidade e a este tipo de rotina».
Muito perto de atingirem a maioridade, os horários do dia-a-dia são, de resto, da inteira responsabilidade dos atletas. «Fica à responsabilidade deles. Todos sabem que o descanso é importantíssimo e acabam por ser eles a gerir, e bem, essa situação», afiança o responsável pelos treinos.
Sacrifícios que valem a pena
Muitos destes jovens não têm família em Lisboa, mas a paixão pelo triatlo falou mais alto. É o caso de Mariana Vargem e Guilherme Pires, com 18 e 19 anos, respetivamente. Mariana Vargem (Clube Naval do Funchal) é natural da Madeira e também foi das últimas a chegar ao CAR, onde entrou em setembro passado. Pratica triatlo há nove anos. «Os meus pais sabiam que eu gostava de fazer estas três modalidades então meteram-me lá [clube do Funchal]», relembra. Desde o escalão de Benjamin que faz provas de nível nacional, mas começou a «ser mais a sério» quando, em Juvenil, percebeu que «poderia ir à primeira prova internacional». Hoje tem a certeza de que a meta passa por ir o «mais longe possível», mas que os objetivos a curto prazo incluem a participação nos campeonatos da Europa e do Mundo. Estar longe da família e dos amigos é, garante, o mais difícil, mas tem a certeza de que fez a escolha certa para tornar possíveis os compromissos desportivos a que se propôs.
Já Guilherme Pires (OutSystems Olímpico de Oeiras), de 19 anos, é o mais velho deste grupo. Há dois anos deixou a Covilhã e mudou-se para Lisboa. Até agora, não se arrependeu. «É um balanço muito bom. Percorrer 300 km para estar aqui é um sacrifício, mas acho que com este espaço é muito mais fácil para conseguir conciliar tudo. O facto de ter a faculdade aqui ao pé também me ajuda muito a poupar tempo», assegura. Desde que integrou o Centro de Alto Rendimento, o jovem, que estuda engenharia informática, destaca a evolução que tem feito não só a nível desportivo como a nível pessoal, que assevera, só é possível graças a este grupo. Começou, à semelhança dos seus colegas, pela natação e depois transferiu-se para um clube «da região».
Tenta, de resto, ir à Covilhã uma vez por mês, mas às vezes não é possível. As saudades são, por vezes, o fator mais complicado de gerir, mas Mariana, que se identifica com esta situação, diz que no final do dia tudo vale a pena. «Às vezes é um pouco difícil, ter de ficar aqui sozinha nos fins de semana, mas agora já me habituei», remata a jovem madeirense.
Além de Paulo Antunes, há uma outra figura de extrema importância para estes jovens. Chama-se Rafael Domingos (Estoril Praia Credibom) e na sala de estar é unânime, todos são unânimes: «É o tutor!». Percebemos, entretanto, que a alcunha surgiu numa altura em que havia uma certa carência no CAR – faltava alguém que fizesse a ligação entre os atletas e a direção do centro, bem como a ligação entre os atletas e a federação. «Às vezes, há certas coisas de que os atletas precisam e não têm mas depois não há uma grande ligação com a federação ou com o centro. No CAR, cada modalidade tem um tutor», clarifica Rafael. Rafael Domingos está no CAR desde 2011 e tem um papel fundamental na integração dos novos atletas. «Vêm muito envergonhados, não sabem onde são as instalações, ou o que vão fazer. Quando os atletas dizem que querem ir sair à noite eu tento orientá-los no sentido de os alertar: ‘se calhar é melhor não fazeres isso visto que agora vais ter provas’. Fazemos um bocadinho de tudo», revela o tutor, que torna possível perceber desde cedo a importância que assume dentro do grupo que está distribuído pelos vários sofás desta divisão.
Rafael recorda um exemplo recente: «A Mariana e o Zé, por exemplo, eram pessoas muito envergonhadas e introvertidas [quando chegaram], mas ao longo do tempo foram-se soltando. No caso da Mariana. que não tem cá os pais porque estão na Madeira, tivemos de ser nós a ir com ela fazer a matrícula para a escola. É giro vê-los crescer».
Em comum com estes jovens, naturalmente, tem o interesse pela modalidade, que o triatleta do Estoril Praia começou por praticar enquanto desporto escolar, em Abrantes, no ano de 2009.
Seguiu-se a oportunidade para entrar no Centro de Alto Rendimento em Montemor-o-Velho e, em 2013, deu-se então a mudança para o Jamor.
Madalena Almeida (Clube de Natação Torres Novas) é mais uma das jovens triatletas que se junta aos treinos (bi)diários orientados por Paulo Antunes. Ao contrário dos colegas, não dorme nem faz as alimentações no CAR, pois o facto de morar perto permite-lhe agilizar as rotinas de forma independente. Pratica triatlo há seis anos e sempre gostou muito de correr, mostrando desde cedo apetência para os corta-mato escolares. O pai foi, entretanto, o responsável pela sua introdução no triatlo. Tal como todo o grupo, Madalena também estuda. Está na Faculdade, a frequentar o curso de Gestão de Desporto. As rotinas, afirma, não são um sacrifício: «O nosso grupo de amigos acaba por ser muito com quem estamos diariamente e acabamos por organizarmo-nos. Não sinto que haja assim um sacrifício diário».
O ‘paitrocínio’
Melanie Santos é atualmente um dos principais rostos do triatlo português. Pode dizer-se que a triatleta do Benfica já conquistou um estatuto especial dado que é uma atleta internacional com provas dadas. No ano passado, sagrou-se Campeã Absoluta de Triatlo, foi a segunda na Taça da Europa em Quarteira, fez alguns pódios em Taças do Mundo e alcançou um 5.º lugar em Abu Dhabi, uma prova do circuito mundial do World Triathlon Series (WTS). Como tal, os objetivos da jovem de 23 anos passam diretamente pelas medalhas, pelo Campeonato do Mundo e pela qualificação para os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, em que os atletas têm que escolher as provas a disputar para se poderem qualificar (sendo que as competições pontuáveis são as Taças do Mundo e o WTS (World Triathlon Series)). Melanie relembra como começou o seu percurso pelo triatlo e tem consciência das dificuldades para chegar a este patamar.
Pratica triatlo há oito anos e recorda que entrou na modalidade por via de uma espécie de concurso de caça-talentos em Rio Maior. «Na altura, existia a detenção de talentos que consistia em nadar e correr. Fazíamos testes para apurar novos talentos que integrassem a modalidade», diz.
Já fez o seu dia-a-dia no CAR, mas hoje não tem dúvidas de que o centro acaba por ser mais importante numa determinada fase da carreira e que, de certa forma, deixa de corresponder às expectativas de quem se permite sonhar mais alto. «Acho que os Centros de Alto Rendimento são muito importantes para as faixas etárias mais novas, que ainda são menores, e acaba por ser um acompanhamento mais próximo já que os pais não estão por perto. Mas quando temos objetivos muito mais ambiciosos às vezes o CAR não acompanha isso. Chega a uma altura em que já conseguimos ter uma situação financeira mais estável e preferimos não dormir cá e utilizar o CAR para treinar e não para viver», clarifica a jovem de Alcobaça.
A rotina de treinos é muito semelhante à dos restantes colegas: todos os dias de segunda a domingo, «entre quatro a seis horas diárias». «Nadamos todos os dias, pedalamos quase todos os dias. São todos os dias a treinar», reforça.
Apesar das ambições e da boa-disposição, Melanie salienta que só chegou até este patamar graças ao investimento feito pelos seus pais. «Se não fossem os meus pais a patrocinar-me não teria chegado aqui», admite, adiantando que neste momento os patrocínios já não são um problema por estar «numa fase muito boa da carreira».
Paulo Antunes faz-se ouvir mais uma vez, desta feita para confirmar a tese da jovem do Benfica. E diz mesmo que esta até pode ser, no limite, uma razão para o abandono da modalidade. «Estes atletas aqui, como se costuma dizer, têm o ‘paitrocínio’, que acaba por não ser fácil e pode muitas vezes criar algumas pressões dentro do próprio seio familiar, pelo que acabam por abandonar a modalidade», constata.
Melanie faz, entretanto, a comparação para o Centro de Alto Rendimento de Montemor, que considera «muito melhor» – a atleta diz até que sentiu «grandes diferenças» quando foram transferidos para o Jamor. «Via-se que havia um cuidado acrescido para que os atletas que estivessem nesse centro tivessem as melhores condições, até comparativamente aos atletas estrangeiros. Aqui, em Lisboa, a questão é que isto é para vários atletas e depois há sempre o entrave de que não há dinheiro e que têm outras prioridades», lamenta. Até porque para a triatleta do Benfica o problema não está apenas na falta de investimento na modalidade, mas, acima de tudo, na maneira como este é distribuído. «A verdade é que eu acho que o dinheiro existe, está é mal distribuído. Por exemplo, para os atletas, renovar esta sala [sala de estar onde decorre a conversa], não tem grande importância, mas essas são as prioridades. As prioridades estão mal direcionadas», critica. «Quando mudarem isso e começarem a trabalhar nos pequenos pormenores, que são os mais importantes, acho que conseguem que estes atletas não sintam esta carência de patrocínios e que possam melhorar para que então consigam os tais patrocínios que os vão ajudar a chegar ao topo», atesta.
Com a conversa a chegar ao fim, já todos sabem o que se segue: o treino da tarde, claro. O treinador pede rapidez: «Bora, bora, vamos lá despachar». O grupo segue em passo apressado.
E se alguma coisa correr menos bem, o tutor Rafel entra novamente em cena. «Nos momentos de frustração vamos ao tutor», confessa o grupo, que prefere permanecer em silêncio quando confrontados com as vezes que já pensaram em desistir.
Melanie passa os olhos pelos sofás e deixa a questão no ar: «Oh, não digam que nunca pensaram».